sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A DAMA AFOGADA



                                          Fonte: Fundação Perseu Abramo
                                   


Lincoln Secco


Existe uma situação no xadrez em que um jogador em absoluta inferioridade consegue empatar a partida. O seu Rei está ameaçado por todos os lados e ele não pode fazer nenhum movimento. Ainda assim, não está em cheque e nessa situação sem saída declara-se o empate. Alguns chamam a isso de “Rei afogado”.
É óbvio que a presidenta Dilma Roussef está numa situação assim: a que poderia ser chamada de Dama afogada, caso as regras do Xadrez não tivessem sido inventadas por homens.
Cercada por todos os lados, é preciso dizer que não é de somenos importância que a primeira mulher presidenta tenha resistido ao apelo pela renúncia. Talvez a sua força individual nesse isolamento venha a ser o único legado de um governo desastroso.

Colapso
Durante a crise do governo tucano em seu segundo mandato, embora o PT liderasse manifestações de rua e o petista Tarso Genro tivesse sugerido a renúncia de FHC, o partido jamais contou com apoio do PMDB (e obviamente da mídia) para um golpe contra um presidente em baixa popularidade e marcado pela ilegitimidade de uma reeleição comprada no Congresso. Quando o PT chegou ao governo imobilizou os movimentos sociais, como era de se esperar e, assim, o partido constituiu o polo negativo de um circuito que reproduz uma Democracia Racionada. Claro que ele visou reformar por dentro, mas a única saída seria em algum momento o curto – circuito.
Só que depois de junho  de 2013 o polo negativo que compunha o circuito fechado da dominação democrática desapareceu e tornou supérflua a esquerda integrada, especialmente porque ela é parecida, mas não é igual à Direita. Ela aceitou a Economia como o reino intocável, mas insistiu em alguns gastos sociais.
Ao  PT cabia a partir dali superar o lulismo e montar uma nova Frente em 2014 sem o PMDB. Correria o risco de perder a eleição, mas veria agora o PSDB promover o ajuste fiscal. Ou vencer e entrar numa crise de governo minoritário, mas com mobilização social. Mantendo a estratégia conciliadora só obteve um governo sem maioria no congresso e na sociedade.
Ainda assim, em 2015 o fio desencapado não foi o PT e sim lideranças frustradas de outros partidos. Parece que as elites políticas, empresariais e judiciárias chegaram à conclusão de que o PT não é mais necessário.
A crise pela qual passamos não terá fim em seis meses ou mesmo em alguns anos, qualquer que seja o desfecho da disputa pelo poder. Poderá adormecer, mas voltará à tona a cada luta eleitoral, judiciária e midiática, especialmente se o PT tiver uma candidatura competitiva em 2018. 

Sociedade Afogada
Pode ser que dessa vez o nível de violência social tenha subido tanto que não possa mais ser domesticado. Não me refiro à violência bárbara e costumeira da história do Brasil. O atendimento social armado do qual fala Paulo Arantes já revela o quanto o Estado se previne!
O PT moveu, sem que o quisesse, as placas tectônicas da sociedade. Só que, embora civil, ela nunca foi civilizada. As pessoas passaram a se acotovelar nos aeroportos, antes espaços privilegiados da classe média. Agrediram-se acovardadas sob a proteção da internet. Engarrafaram mais o trânsito em cidades que nem chegaram a ser espaços de cidadania. Não chegaram a ler os livros e a frequentar o sindicato, dois elementos da formação básica de qualquer esquerda.
Basta andar nas ruas quentes e inóspitas de São Paulo. Elas eram até mais  sujas e violentas nos anos 1980, mas faltavam-lhe ainda esse olhar recíproco de ódio sem esperança. Mesmo sem jornais e com sindicatos restritos a setores oligopolizados, o PT se organizava em núcleos de base, logo  abandonados em favor do projeto eleitoral.

Cinema
Para sugerir uma leitura da  crise recorro a três filmes. Entre o de Sergio Bianchi (Cronicamente Inviável, 2000) e o de Kleber Mendonça Filho (Som ao Redor, 2012) há uma transformação surda. O primeiro com o ceticismo em torno de alguns exemplos individuais; o segundo construindo os conflitos sociais no tecido das relações de indivíduos concretos. Bianchi fez o retrato no qual as personagens são necessariamente inviáveis.
Já o filme de Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta ) chegou às telas no fim da aventura lulista (2015) exaltando a ascensão da filha de uma empregada doméstica. Mas ali, apesar de cenas tocantes como a da empegada que aperta as bolinhas de plástico de uma embalagem (que um espectador de classe média não entenderá), a personagem central é um títere de uma estrutura e recebe a consciência de fora. O bem intencionado filme de Muylaert é uma autocrítica da classe média.
Kleber Mendonça Filho seleciona um condomínio no Recife como espaço de mediação entre aquilo que o cerca e a vida cotidiana dos moradores, empregados e seguranças. A polícia e a extorsão estatal são para os de fora. Aquela vida é perpassada pela totalidade das relações sociais: a mudança e a não mudança transparecem na atmosfera de medo. Assim, ele só precisa de ruas vazias. Na própria imobilidade do cotidiano há História: a do coronelismo moderno e a da vingança social.
Acredito que dormimos sem suspeitar que um Tsunami de violências se forma.  As nossas elites trabalham todos os dias para isso.