sábado, 24 de dezembro de 2022

Eficiência estatal e economia socialista

O colapso da união soviética resultou da ineficiência estatal na planificação econômica do país, fato que promoveu um estrato social burocrático nela envolvido que, mais qualificado sob prisma profissional e muito numeroso diante dos enormes desafios, apenas substituiu a classe burguesa na opressão da classe trabalhadora, consumindo uma parcela substancial do produto do trabalho do proletariado soviético.

Tal ineficiência, todavia, decorria da ausência da tecnologia da informação, advinda com a revolução digital ou microeletrônica (que somente aflorou no último quartel do século passado), na coleta e processamento dos dados econômicos.

Atualmente, a existência da inteligência artificial exibiria o condão de reduzir drasticamente o aparato burocrático envolvido na planificação econômica socialista, dotando o Estado soviético de grande eficiência nesta tarefa, com reduzido consumo do produto social engendrado pela classe trabalhadora.

Gorbachev teria sido melhor sucedido na história da humanidade se tivesse escolhido investir na autonomia soviética em matéria de tecnologia da informação e inteligência artificial para fins de planificação econômica socialista, mas agora foi relegado ao limbo dessa história.

O Partido Comunista Chinês parece estar no caminho correto, ao priorizar a revolução digital na China, colimando ulterior planificação econômica total da economia do país com supedâneo na tecnologia da informação apta a tornar o Estado mais eficiente e menos onerosa para sua classe trabalhadora.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

INOVAÇÃO TECNOLÓGICA COMO MERCADORIA

Consoante já ventilado neste portal eletrônico, por diversas vezes, a primeira revolução industrial do capitalismo, ocorrida em solo britânico no século XVIII, afetou primordialmente o processo de produção de capital, com a introdução de inovações tecnológicas nesse âmbito, sem no entanto incidir no processo de circulação de capital, isto é, sem revolucionar as mercadorias em seu valor de uso. 

Já a segunda revolução industrial, em fins do século XIX e início do século passado, incidiu tanto no processo de produção como no processo de circulação de capital, com introdução de inovações tecnológicas também nas próprias mercadorias, que exibiam novos valores de uso para satisfazer a novas necessidades humanas. 

No que pertine à revolução digital ou microeletrônica, do final do século passado até o momento atual, observa-se uma novidade muito importante, eis que agora as próprias inovações tecnológicas passaram a exibir o caráter de mercadoria.

Sim, pois, com a aludida revolução digital, as próprias inovações tecnológicas, que antes afloravam à margem da produção capitalista, passaram a ser produzidas em escala industrial no âmago do modo capitalista de produção, assumindo o jaez de mercadorias.

Logo, as revoluções industriais, que antes da tecnologia da informação, típica da revolução digital, ocorriam em saltos determinados, foram assimiladas pelo capital e passaram a figurar como produto dele, e mesmo como sua principal mercadoria, de tal sorte que tais revoluções, por assim dizer, institucionalizaram-se e se tornaram constantes e corriqueiras. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)   

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

EDUCAÇÃO E TEORIA MARXISTA DO VALOR

Constitui persistente equívoco sustentar a existência de uma suposta aporia no âmago da teoria marxista do valor, pelo seguinte:

O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário para sua produção, mas a mercadoria consubstanciada na força de trabalho parece destoar de tal regra, eis que não seria produto do trabalho assalariado, mas do esforço coletivo dispensado no âmbito familiar, de tal sorte que haveria uma aporia na teoria marxista do valor econômico.

Esta situação parece amoldar-se relativamente bem quanto ao trabalho eminentemente manual, típico das duas primeiras grandes revoluções industriais do capitalismo, portanto até meados do século passado, quando a qualificação da força de trabalho era substancialmente reduzida e exigia pouca formação no âmbito extrafamiliar da escola. 

Todavia, a revolução digital ou microeletrônica provocou uma reviravolta no caráter do trabalho, que de eminentemente manual passou a primordialmente intelectual, exigindo então uma qualificação que somente a formação escolar pode oferecer. 

Ora, o trabalho dos professores na escola consiste evidentemente em trabalho assalariado, de tal sorte que a força de trabalho exigida pela revolução digital é produzida primordialmente por esse trabalho assalariado, o que refuta por completo a existência da aporia acima mencionada.

A principal questão que se nos antolha hodiernamente axial para compreender o funcionamento do capitalismo da revolução digital consiste, então, em saber como ficou a taxa de mais-valia diante do aumento do valor da força de trabalho, agora produzida pelo trabalho assalariado da categoria social dos professores. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Da fábrica ao home office

Já tive a oportunidade de aventar que as duas primeiras grandes revoluções industriais do capitalismo incidiram primordialmente no capital constante, com o decorrente aumento da composição orgânica do capital. As fábricas foram seu palco por excelência, onde o desenvolvimento do capital fixo e o aumento da força produtiva do trabalho fizeram-se notar, e os novos valores de uso, de jaez ainda material, exsurgiram para satisfação de novas necessidades humanas.

A revolução digital ou microeletrônica, por seu turno, produziu um novo proscênio de trabalho: as fábricas foram substituídas pelos escritórios e estes, atualmente, pelo denominado home office, com a decorrente diminuição dos aportes em capital constante e desenvolvimento de um novo produto eminentemente virtual, o software.

Tal decréscimo do capital constante foi acompanhado por um incremento nos investimentos em capital variável, em razão da exigência de maior qualificação da força de trabalho, com a decorrente diminuição da composição orgânica do capital.

Resta avaliar como reagiu a taxa de mais-valia diante do aumento do valor da força de trabalho, para haurir o atual desempenho das taxas de lucro do capital.

São conjecturas e indagações a desenvolver.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Singelo escrito exploratório

Parece haver certa querela envolvendo o âmago da teoria marxista do valor, consistente no seguinte: O valor de determinada mercadoria é resultante do tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário para sua produção, mas a mercadoria consubstanciada na força de trabalho não parece ser resultante deste tipo de trabalho industrial abstrato que engendra todas as demais mercadorias, mas sim resultante do trabalho dispensado no âmbito familiar e escolar.

Haveria aí uma discreta aporia na teoria marxista do valor? Penso que não, pelo seguinte: As duas primeiras grandes revoluções industriais do capitalismo, respectivamente nos finais dos séculos dezoito e dezenove, alteraram profundamente o capital constante, provocando aumento significativo nos valores nele investidos, sem modificar substancialmente o valor da força de trabalho que compõe o capital variável, de que resultou um aumento da composição orgânica do capital.

Já a terceira revolução industrial, do final do século passado, incidiu basicamente no capital variável, eis que seu principal produto ou mercadoria consiste no software, que exige maior qualificação da força de trabalho, o que aumentou o valor da força de trabalho e os investimentos, portanto, em capital variável, ao mesmo tempo que diminuiu os aportes em capital constante, de que resultou uma diminuição na composição orgânica do capital.

Logo, a força de trabalho tornou-se mais intelectual do que manual, exigindo maior tempo de formação no âmbito escolar, ou extrafamiliar, mas seu valor aumentou no geral.

São singelos rabiscos exploratórios para desenvolvimento ulterior.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Prometeu

Consoante já assente neste portal eletrônico, a primeira revolução industrial incidiu sobre o processo de produção sem atingir o processo de circulação de capital, eis que manteve praticamente inalterados os valores de uso nela implicados.

Mas esta revolução industrial do século dezoito colimava maximizar a mais-valia absoluta extraída do capital variável, sendo certo que o aumento da força produtiva do trabalho dela decorrente consistiu em resultado secundário das mudanças no processo de produção.

Outro resultado destas mudanças foi o declínio tendencial das taxas de lucro derivado do aumento da composição orgânica do capital. Esta tendência declinante acabou por engendrar uma nova onda de salto tecnológico no final do século dezenove para compensar tal tendência, sendo certo que, agora, tal onda incidiu no processo de circulação de capital mediante criação de novas necessidades humanas e novos valores de uso respectivos, máxime nos setores de transportes e telecomunicações, os quais guardavam o condão de acelerar o processo de circulação de capital, além de exibir preços elevados em razão de sua utilidade inédita.

Mas esta segunda revolução industrial também teve como resultado secundário um novo aumento da composição orgânica do capital, com o decorrente declínio tendencial das taxas de lucro, o que conduziu a uma terceira onda de inovações tecnológicas no segundo quartel do século passado, a assim designada revolução digital ou microeletrônica.

Esta, por seu turno, logrou a proeza de manter ou diminuir a composição orgânica do capital, pois o seu produto ou mercadoria mais significativa consiste em algo de jaez ou utilidade mais virtual do que material, a saber, o denominado software, que demanda um processo de produção com relativamente pouco capital constante, enquanto utiliza muito capital variável consubstanciado no trabalho eminentemente intelectual.

Mister assinalar, outrossim, que o software também guarda o condão de acelerar o processo de circulação de capital e exibe elevados preços de acordo com sua aptidão inovadora. Dessume-se, portanto, que o aumento da força produtiva do trabalho, ou produtividade, consiste em resultado secundário ou efeito colateral das revoluções industriais do capitalismo, e não seu escopo primordial.

São conjecturas sujeitas ao crivo crítico.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A utopia do capital

Parece que, efetivamente, o aumento da composição orgânica do capital conduz a um declínio tendencial das taxas de lucro, de tal sorte que a utopia do capital consiste em aumentar esta taxa mediante a criação de novas necessidades humanas e novos valores de uso respectivos, os quais exibem elevada utilidade e altos preços, sem afetar a composição orgânica.

A primeira revolução industrial compensou este aumento da composição orgânica mediante aumento da mais-valia absoluta, enquanto a segunda revolução industrial compensou o aumento da composição orgânica mediante criação de novos valores de uso no âmbito dos transportes e telecomunicações, os quais exibiam elevados preços e aumentavam a velocidade de rotação do capital.

A terceira revolução industrial, do último quartel do século passado, simplesmente logrou a façanha de evitar o declínio tendencial das taxas de lucro ao manter ou diminuir a composição orgânica do capital, eis que seu processo produtivo e suas mercadorias exibem-se primordialmente virtuais, vale dizer, prescindem de capital constante em grande quantidade e utilizam intensamente o capital variável consubstanciado no trabalho eminentemente intelectual, sendo o software sua principal mercadoria.

São conjecturas a conferir.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

AMARTYA SEN

Em recente entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo e publicada aos 12 de novembro do corrente ano, o conspícuo economista indiano Amartya Sen sugere, em linhas gerais, que "a economia é secundária, as pessoas é que importam", formulação esta muito interessante e oportuna no Brasil em tempos de oposição entre austeridade fiscal e responsabilidade social, e onde os "humores do mercado" interferem em políticas públicas.

Este antagonismo entre pessoas e economia proposto por Sen, conquanto muito interessante e oportuno, não constitui, todavia, constatação inédita: ele reflete, na verdade, o vetusto fenômeno que o arcabouço teórico marxista denomina "alienação"

Sim, pois o velho Karl Marx já admoestava que os seres humanos, na produção e reprodução da sua vida imediata material, contraem relações de produção que escapam à sua volição e os separam em classes sociais distintas e antagônicas, bem assim em diversos Estados-nações em permanente, ou latente, conflito.

Nesse diapasão, seria inclusive inapropriado cogitar na existência de uma "humanidade", dados os antagonismos acima mencionados: eis o fundamento, verbi gratia, do anti-humanismo teórico formulado pelo filósofo marxista-estruturalista Louis Althusser, para quem os indivíduos não passam de meros vetores estruturais do capital.

Eu, particular e humildemente, discordo em parte do grande Althusser, pois quer me parecer que ele desconsidera o fato de que o evolver do tempo histórico, na sucessão dos distintos modos de produção, conduz à constituição de uma classe social proletária que, completamente despojada dos meios de produção, exibe um jaez universal capaz, potencialmente, de superar os aludidos antagonismos de classes e Estados-nações, para atingir um novo modo de produção em que a verdadeira humanidade aflorará, com suplantar o fenômeno da alienação e proporcionar um patamar superior de consciência social. 

Quer me parecer, por derradeiro, que somente nesse novo modo de produção universal e humano as pessoas, como pretende Amartya Sen, serão consideradas mais importantes do que a economia, ou melhor dizendo, a economia estará a serviço das pessoas.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)       

BREVES INCURSÕES DIALÉTICAS

Em sua obra Ciência da Lógica, o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel disciplinou o pensamento a se conduzir de forma dialética, captando o movimento e a dinâmica do tempo histórico mediante, grosso modo, o trinômio tese-antítese-síntese. 

De proêmio, parece que apenas o pensamento obedece tal trinômio dinâmico, sendo certo que a síntese exibe-se como a culminância desse processo cognitivo, a revelar a potência e a relevância da intelecção daquele que a atinge. 

Vejamos, nesse diapasão, exemplos hauridos da ciência da Física:

O cientista escocês James Clerk Maxwell, verbi gratia, ao conjugar as forças da eletricidade e do magnetismo, obteve uma síntese assombrosa no eletromagnetismo, e não por acaso o grande desafio da física moderna consiste precisamente na consecução da síntese entre a teoria da relatividade e a mecânica quântica, na coloquialmente denominada teoria de tudo, ou teoria de campo unificado. 

Mas a síntese dialética não acontece somente no âmbito do pensamento, ela ocorre sobretudo na própria realidade objetiva que o pensamento colima apreender. Senão vejamos. 

A história econômica pode se exibir como um bom exemplo nesse aspecto: a revolução industrial inglesa do século XVIII incidiu primordialmente sobre o processo de produção de capital, sem afetar de maneira importante o processo de circulação, a saber, sem introduzir grandes inovações nas necessidades humanas e respectivos valores de uso, o que levou a um declínio tendencial nas taxas de lucro do capital que, por seu turno, foi combatido, em registro antitético, pelos novos valores de uso concebidos na segunda revolução industrial que ocorreu entre os séculos XIX e XX, os quais apresentavam elevados preços pela sua utilidade inédita e, demais disso, ao revolucionarem os meios de comunicação e transporte, exibiam o condão de aumentar a velocidade de circulação de capital. 

A revolução microeletrônica, ou digital, do segundo quartel do século passado, por seu turno, parece configurar uma síntese desta dinâmica histórica das revoluções industriais do capital, ao afetar de forma homogênea e na mesma intensidade, ao que parece, os processos de produção e circulação de capital, aumentando a velocidade de ambos numa rotação mais célere do capital. 

São singelas incursões sujeitas a ulterior desenvolvimento e ao crivo crítico.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)


segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Festina Lente

Faz-se mister encetar uma célere glosa marginal ao texto imediatamente precedente publicado neste portal eletrônico, intitulado “Hipóteses embrionárias sobre teoria econômica”, nos seguintes termos:

Sob prisma histórico, o capital manifesta-se inicialmente apenas como dinheiro, isto é, remanesce adstrito ao âmbito da circulação de mercadorias, sendo certo que penetrará no âmbito da produção de mercadorias somente após a assim designada acumulação primitiva, com o advento da revolução industrial inglesa do século XVIII.

Mas a relação de produção consubstanciada na mercadoria pressupõe o antagonismo entre o âmbito da produção e o da circulação, sendo certo que, se os produtores pelejam pelo predomínio do trabalho como determinante do valor das mercadorias, os mercadores insistem na sua utilidade como determinante do respectivo valor: disso resulta, no plano da teoria econômica, a oposição entre as vertentes marginalista e marxista de determinação do valor das mercadorias.

Os mercadores auferem lucros comprando baratas e vendendo caras as suas mercadorias, de tal sorte que lhes interessam valores de uso exóticos de elevada utilidade marginal e preços exorbitantes, como é o caso das especiarias oriundas do Oriente. O antigo sistema colonial lastreia-se precisamente nesse jaez exótico dos valores de uso: no que pertine ao Brasil, por exemplo, os ciclos econômicos definem-se pelos distintos valores de uso, como açúcar, ouro e café.

O aludido antagonismo entre produtores e mercadores pela determinação do valor e preço das mercadorias resolve-se historicamente de forma favorável a estes últimos, mediante a subsunção real do trabalho no capital advinda com a revolução industrial inglesa do século XVIII, quando o capital apropria-se do âmbito da produção e comprime os ganhos dos produtores à sua subsistência mais básica, extorquindo-lhes a mais-valia.

Mas a revolução do processo de produção conduz tendencialmente a um declínio das taxas de lucro do capital, de tal sorte que as revoluções industriais ulteriores incidiram também no processo de circulação, mediante a criação de valores de uso inéditos de alta utilidade e maiores preços.

(Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador).

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

HIPÓTESES EMBRIONÁRIAS SOBRE TEORIA ECONÔMICA

Karl Marx encetou pioneiramente, no primeiro capítulo de sua obra magna, uma distinção seminal entre os dois aspectos da mercadoria, a saber:

1. Seu valor de uso, ou aptidão para satisfazer necessidades humanas concretas, vinculado ao processo de circulação de capital e que deu origem, de certa forma, à teoria marginalista do valor, ou teoria da utilidade marginal decrescente, que serve basicamente para revelar a dinâmica do preço de um mesmo valor de uso;

2. Seu valor tout court, determinado pelo tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário para produzi-la, vinculado ao processo de produção de capital, e que deu origem à assim designada teoria do valor-trabalho, que serve para distinguir os valores comparativos entre as diversas espécies de mercadorias, vale dizer, entre os diversos valores de uso.

Destarte, parece que os preços das mercadorias são determinados em duas etapas, a saber:

1. Inicialmente pelo processo de produção de capital, onde predomina a teoria marxista do valor-trabalho;

2. Depois, no processo de circulação de capital, onde incide a teoria da utilidade marginal decrescente. 

Assim, a contraposição à tendência declinante das taxas de lucro, descrita por Marx, seria operada com novos valores de uso que exibem alta utilidade marginal e, portanto, maiores preços, de que decorrem as revoluções industriais criadoras de novos valores de uso e necessidades humanas, e não apenas de novos processos produtivos. 

Parece também que, por isso, a primeira revolução industrial, do século XVIII, afetou primordialmente o processo de produção de capital, sem incidir de forma intensa na criação de novos valores de uso, ao passo que as revoluções industriais ulteriores incidiram sobre o processo de circulação de capital, com a criação de novas necessidades humanas e novos valores de uso respectivos. 

São singelas e embrionárias hipóteses, sujeitas ao crivo crítico. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

          

quarta-feira, 22 de junho de 2022

CONJECTURAS SOBRE HISTÓRIA A CONTRAPELO

Nos estertores do modo feudal de produção na Europa ocidental, diviso três setores de maior relevo para a produção e reprodução da vida material da sociedade, correspondentes a classes sociais distintas, a saber:

1.Produção: correspondente à classe trabalhadora predominantemente agrária;

2.Distribuição: correspondente à burguesia mercantil, responsável pela circulação de mercadorias por meio do dinheiro, que guarda o condão de desinibir o setor 1 por intermédio do estímulo à divisão social do trabalho e, via oblíqua, ao aumento da força produtiva do trabalho e respectivo excedente econômico;

3.Violência: correspondente à classe aristocrático-militar da nobreza armada, responsável pela extração de grande parcela do excedente econômico produzido pelo setor 1 e que, portanto, inibe o pleno desenvolvimento dos setores 1 e 2.

No processo revolucionário britânico do século XVII, quedou evidente que o setor 2 estabeleceu compromisso político com o setor 3, mediante o pagamento a este da renda da terra, em detrimento do setor 1, que sofreu o processo de acumulação primitiva de capital, sendo despojado dos seus meios de produção, notadamente através dos denominados "enclosures" (cercamentos). 

Se, ao contrário, o setor 2 tivesse empreendido acordo político com o setor 1 em detrimento do setor 3, decerto que a história teria enveredado por outros rumos, e talvez hoje estivéssemos vivendo sob condições socialmente mais justas e prósperas. 

São singelas conjecturas a desenvolver, sob inspiração da história a contrapelo propugnada por Walter Benjamin. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)                              


       

sábado, 18 de junho de 2022

Que tal um samba?

     Desde que a ouvi, as vozes da minha cabeça estão a cantar a canção nova do Chico. É um samba festivo, que propõe a alegria à brutalidade da realidade atual: para espantar o tempo feio, para remediar o estrago, que tal um trago? um desafogo, um devaneio.

    Chico já fez um samba sobre a possibilidade dessa alegria em contraponto com a obscuridade, outro momento histórico – a ditadura havia durado demais (se durasse apenas um mês, uma semana, um dia, um instante, já seria demais): “eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia”. Se em “Apesar de Você” eu percebo que Chico profetizava a inevitável explosão da alegria popular quando acabasse aquele período sombrio – desaparecimentos, prisões políticas, tortura, repressão – em “Que Tal um Samba”, embora comece com a inspiração de uma certa frivolidade dos pequenos prazeres, um trago, o devaneio, um gol de bicicleta, ele nos convida através da beleza pura de sua música a darmos a volta por cima: “já depois de criar casca e perder a ternura, depois de muita bola fora da meta, de novo com a coluna ereta, que tal? juntar os cacos, ir à luta, manter o rumo e a cadência, esconjurar a ignorância, que tal? desmantelar a força bruta...” A canção veio em boa hora – esse momento de grande exposição midiática da violência sob a floresta restante, produziu uma dor filha da puta, incapacitante, semelhante em muitas formas ao sofrimento que emanava dos porões da ditadura. Todavia, agora é a hora do movimento. Se no ar paira a mudança dos nossos rumos políticos, a transformação do tecido social não se faz num instante, num dia, numa semana, num mês. Num voto. Mas vamos! Fortalecermonos na nossa cultura e basear a reconstrução do nosso país no prazer, na beleza, no riso, na diversidade, no amor. No samba, que engendra a potência. 

Que tal um samba?

Cláudia Corá

18/06/2022

terça-feira, 14 de junho de 2022

Como será o Golpe no Brasil?


Lincoln Secco & Fernando Sarti Ferreira


Quem dará o golpe no Brasil? Com esse título Wanderley Guilherme dos Santos publicou seu livro em 1962i apenas dois anos antes do golpe de primeiro de abril de 1964. Em 2022 a dúvida não é quem, mas como. É claro que se pode indagar sobre o suporte: policial, miliciano, “popular” ou militar. Mas o golpe já foi anunciado pelo próprio presidente da república. É ele ou alguém em seu nome que vai desferir o golpe.


A declaração do Ministro da Defesa em 10 de junho de 2022 afrontando o TSE reforçou o total alinhamento do exército com o governo Bolsonaro. Depois de 25 anos de voto eletrônico agora os militares começaram a suspeitar do processo eleitoral. Ao contrário do que se imagina, isso não é a politização do exército, pois ele nunca deixou de agir politicamente a favor dos seus privilégios corporativos e dos interesses dos Estados Unidos. A única novidade dos últimos anos foi a descoberta do seu baixo nível cultural e despreparo técnico.ii


Diferentemente de 1964 nenhuma força golpista dispõe de projeto ou disposição para exercer uma ditadura e o golpe pode muito bem se dar naquilo que Maringoni denominou “o modo xepa” que “não tem plano, projeto ou roteiro”iii.


Paralelos


Portanto não há paralelo com o que houve em 1964. Talvez o mais parecido com a forma do novo coup d'état seja a revolta integralista de 1938 porque o bolsonarismo, assim como as galinhas verdes de Plinio Salgado, é um fenômeno de massa e um conjunto bizarro de ideias incoerentes de natureza fascista.


A tentativa de tomada do poder em 10 de maio de 1938 contou com apoio da oposição liberal ao governo Vargas, como alguns ex líderes do levante paulista de 1932 (Júlio de Mesquita Filho, por exemplo). O mais grave, porém, foi o fato das tropas de Severo Furnieriv terem cercado o Palácio Guanabara sem resistência da polícia ou das forças armadas. Só a guarnição pessoal do presidente chefiada por Benjamin Vargas e Gregório Fortunato (ex combatentes contra a revolta paulista de 1932) resistiram.


Naquela noite o exército nada fez e só interveio em defesa do governo depois de horas de passividade, à espera de um desfecho que poderia ter significado a morte de Getúlio Vargas. Finalmente, Eurico Gaspar Dutra debelou a intentona integralista. Até hoje não temos certeza do que esteve por trás da inação militar, mas o ataque a Vargas pode ser visto como instrumento oportuno para um golpe do próprio exército, o qual já estava no poder, mas poderia se livrar ao mesmo tempo do ditador e dos integralistas; ou até mesmo firmar compromisso com Plínio Salgado, o qual possuía muitas simpatias entre os militares.


Golpe a la Capitólio


O golpe a ser desfechado no Brasil carece de estratégia, mas paradoxalmente tem um objetivo: aprofundar a destruição do estado brasileiro. Uma alternativa, portanto, seria um golpe caótico como o que foi tentado por Trump nos Estados Unidos.


No dia 6 de janeiro de 2021, horas antes do congresso estadunidense se reunir para ratificar o resultado das eleições do ano anterior, o ainda presidente Donald Trump realizou a poucas quadras dali um ato político com seus apoiadores. Com o tema “Salvem os EUA”, o evento foi a coroação de uma longa campanha de descrédito do processo eleitoral estadunidense – diga-se de passagem, muito menos organizado que o processo brasileiro. No palco, figuras de proa do trumpismo, como o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani – até os anos 2000, modelo de “gestor” preferido entre liberais brasileiros-, exortavam a multidão a intervir na sessão que seria presidida pelo vice-presidente Mike Pence. “Lutem como o diabo”, disse então o presidente Trump.


Antes mesmo de terminar o discurso, um grupo de manifestantes fantasiados começou a se dirigir ao prédio do Capitólio. Ao mesmo tempo, Mike Pence abria a sessão lendo uma carta pela qual deixava claro que não iria embarcar na aventura de Trump. Na hora seguinte, sem encontrar resistência, os manifestantes foram se aglomerando e avançando em direção ao interior do prédio. É digno de nota que os oficiais de segurança mais resistentes à horda fascista eram negros, como se pode ver nas cenas do documentário Four Hours at the Capitol, do diretor Jamie Roberts. Impossível não pensar como para além do compromisso ideológico entre as força de segurança e o fascismo não houve ali também uma aliança racial. Basta comparar a repressão das forças policiais ao movimento negro com os eventos no Capitólio.


Com deputados, senadores e assessores correndo em desespero, sendo empurrados para lá e para cá por seguranças engravatados e com pontos de comunicação nos ouvidos, como no filme Don't Look Up quando o meteoro se aproxima, a sessão foi interrompida. Um dos prédios mais protegidos do mundo foi tomado por um verdadeiro exército de Brancaleone. No documentário acima citado, tão impressionante como a farra feita pelos manifestantes - um misto de delinquência adolescente com uma excursão de turistas de classe média – foi a covardia da classe política estadunidense. As cenas que protagonizaram durante a invasão, mas principalmente os depoimentos dados por senadores, deputados e assessores posteriormente para o documentário são extremamente desmoralizadores e constrangedores. Nada diferente do desfecho da aventura. Após horas de ocupação, a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e o candidato eleito, Joe Biden, foram à rede nacional implorar para que Trump retrocedesse. O presidente foi à Internet e, após celebrar a invasão, pediu para que os manifestantes voltassem para casa.


No entanto, nem sempre o mais espetacular é o mais importante. É claro que o fracasso do 6 de janeiro de Donald Trump tem outras razões, como a falta de apoio entre os próprios membros de seu partido e a resistência da cúpula das Forças Armadas estadunidensesv.


Já Bolsonaro, ao contrário de Trump, parece ter muito mais fiadores para o seu golpe. Se os bolsonaristas decidirem fazer algo semelhante, seja no Supremo Tribunal Federal, no Tribunal Superior Eleitoral ou na Câmara de Deputados, diferentemente dos fascistas de 1938, não serão confrontados por nenhuma força repressiva, mesmo que tardiamente. Quiçá a cumplicidade das forças de segurança seja até mais gritante aqui que nos EUA. Bolsonaro pode se restringir a ameaças, arruaças, protestos de ruas e os seguidores provocarem escaramuças ridículas. Mesmo assim, e tendo em vista o grau de comprometimento das forças de seguranças brasileiras com o presidente e sua secular vocação genocida, essa encenação poderá provocar muito mais mortos e feridos que a aventura trumpista. Na periferia a violência tende sempre para os extremos.


Conclusão


Qualquer que seja a forma, uma marcha, arruaça, invasão ou até o mais efetivo desfile militar com tropas cercando os três poderes, uma tentativa de golpe, mesmo a mais ridícula, é grave. Ela corrói ainda mais a legitimidade institucional do poder e constrange o próximo presidente a conviver com uma força armada explicitamente opositora.


A marcha sobre Roma em 1922 também era uma passeata cômica de uma massa de ressentidos mal armados que poderia ter sido desbaratada facilmente pelo exército italiano, mas os fascistas já tinham comparsas no estado e as classes dominantes estavam paralisadas. E como no Brasil, não havia qualquer ameaça revolucionária, já que o biênio vermelho havia sido derrotado e o partido comunista era muito pequeno. Elas temiam mais o crescimento eleitoral do socialismo reformista, uma força desinteressada em qualquer revolução e incapaz de resistir ao fascismo.


Four Hours at the Capitol termina com uma série de imagens de agentes do FBI cumprindo mandados de prisão contra as lideranças do 6 de janeiro. Se a ideia era, como em boa parte do cinema ficcional estadunidense, mostrar que as instituições liberais são capazes de corrigir qualquer desvio, ameaça e injustiça, a verdade é que estas cenas trazem uma forte lembrança da sequência final de O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman. A operação policial para desbaratar os experimentos do professor Hans Vergérus não passa de pirotecnia, incapaz de frear forças que já foram colocadas em marcha. No Brasil, há dúvidas se mesmo o simulacro de repressão e prisão aconteça.


iSaiu pela coleção cadernos do povo brasileiro da editora civilização brasileira. A coleção era dirigida por Álvaro Vieira Pinto e Ênio Silveira e o desenho de capa da edição original é de Eugênio Hirsch.


iiA esse respeito ver o artigo de José Luís Fiori e William Nozaki, in https://aterraeredonda.com.br/o-fracasso-dos-militares/


iiihttps://www.diariodocentrodomundo.com.br/xepa-fase-superior-do-bolsonarismo-por-gilberto-maringoni/ ivCarone, E. O estado novo. São Paulo: Difel, 1977, p. 270.


  1. Os jornalistas Carol Leonning e Philip Rucker, em um livro chamado I Alone Can Fix It, relatam as tratativas feitas por Mark Miley, chefe do Alto Comando das Forças Armadas dos EUA, durante as jornadas de janeiro de 2021. O livro teve ampla divulgação na imprensa brasileira, mas segue sem edição no nosso país.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

NOVAS CONJECTURAS FILOSÓFICAS, OU O MATERIALISMO HISTÓRICO COMO "EXISTENCIALISMO SOCIAL"

 

Hegel parece ter sido o pioneiro a conferir inteligibilidade à história das sociedades mediante sua lógica dialética, muito embora seu idealismo absoluto tenha atribuído verniz um tanto opaco e irreal aos indivíduos concretos. 


Em sua crítica mordaz a esse pensador, Kierkegaard, no entanto, claudicou, pois se debruçou competentemente sobre a história do indivíduo concreto, descurando, todavia, da história das sociedades e sua lógica dialética.             

Mas a crítica existencialista ao idealismo hegeliano rendeu bons frutos, máxime ao postular que "a existência precede a essência".

Sim, pois o materialismo histórico contido em "A ideologia alemã", de certa forma, adotou esse brocardo existencialista ao expor, ainda que um tanto esquematicamente, a história das sociedades na sucessão dos modos de produção até a vindoura humanidade real sob o comunismo, com a superação de sua fragmentação em classes sociais distintas e em diversos Estados nacionais. 

Nesse diapasão, postularíamos que o materialismo histórico, nos termos acima, pode ser tomado como um certo "existencialismo social" em que existência (isto é, o devir histórico e concreto das sociedades humanas) precede a essência (a verdadeira humanidade, despojada de divisões entre classes sociais e Estados nacionais, mas, ao contrário, mundialmente reunida sob a égide do comunismo).

Nem é por outra razão que o próprio Karl Marx asseverou a certa altura, analogicamente, que "a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco", vale dizer, "as categorias que exprimem as relações da sociedade burguesa, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada (...)"

Nesses casos, a essência somente se evidencia na totalidade do devir, na obra acabada, isto é, na existência, que no materialismo histórico sempre é concreta e diacrônica.

São conjecturas submetidas ao crivo da apreciação crítica.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, ensaísta)     

sexta-feira, 6 de maio de 2022

UM ASPECTO DE SADE

 UM ASPECTO DE SADE

Na produção e reprodução da vida material da sociedade humana, faz-se mister considerar seus três fatores constitutivos: trabalho, violência e sexo (ou atividade sexual).

Quanto ao trabalho e à violência, já tive a oportunidade de desenvolver a ideia consoante a qual esta última consiste na antítese da primeira, o que resta evidente nas origens históricas da propriedade privada dos meios de produção, e aqui exoro licença para copiar ipsis literis um excerto do meu texto sobe Marx e Freud publicado neste blog, a saber:        

“No que pertine à gênese histórica da propriedade privada dos meios de produção, no caso, da propriedade fundiária, basta reter, por ora, que seus dois alicerces são: em primeiro lugar, o trabalho, mediante o qual certo grupo ou indivíduo apropria-se de determinados meios de produção delimitados, transformando a natureza em objetos satisfativos de suas necessidades fisiológicas ou espirituais; em segundo lugar, a violência, por meio da qual tal grupo obsta a turbação de sua posse por outros grupos ou indivíduos, privando-os, destarte, da satisfação das respectivas necessidades com tais meios de produção já previamente apropriados. Ora, se na propriedade privada coletiva de meios de produção dos membros das comunidades primitivas, vale dizer, no impropriamente denominado comunismo primitivo, a contradição entre trabalho e violência ainda resta latente, na constituição do Estado escravista antigo ela se desenvolve e engendra, de um lado, uma classe de escravos que só realiza trabalho, figurando também como meio de produção; e, de outro, uma classe aristocrático-militar cuja única atividade consiste em extorquir o produto do trabalho escravo por intermédio da violência. Mutatis mutandis, o Estado feudal guarda a mesma natureza do escravista, distinguindo-se deste apenas de forma quantitativa, na proporção da menor extorsão do produto excedente aos servos da gleba, bem menos espoliados que os escravos”

Decerto, por intermédio da violência, antítese do trabalho, a classe social de proprietários dos meios de produção submete a classe trabalhadora e extorque-lhe o excedente do produto econômico. Porém, a produção e reprodução da vida material da sociedade humana não se adstringe ao âmbito econômico, isto é, ao trabalho dos indivíduos concretos, mas pressupõe também a produção e reprodução desses próprios indivíduos concretos mediante a atividade sexual.

Tal atividade sexual, por óbvio, não se decompõe, como na atividade econômica, em classes sociais distintas que exercem respectivamente o trabalho e a violência, mas bifurca-se em gêneros distintos com funções distintas, a saber, o feminino e o masculino.

Destarte, por um processo de mímese, que cabe ainda estudar com mais profundidade, a atividade sexual frequentemente evoca e incorpora, em atos concretos e imagens psíquicas, a violência e a submissão típicas da antítese do trabalho na atividade econômica. 

Evidentemente, o sadismo consiste no mais acabado fenômeno social e psíquico atinente a tal mímese, sendo certo que o Marquês de Sade foi, até o momento, o mais explícito expoente deste fenômeno no âmbito literário. 

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)        

quinta-feira, 5 de maio de 2022

HOMENAGEM A KARL MARX NOS 204 ANOS DE SEU NASCIMENTO

(Admoestação prévia: numa atitude fundamentadamente cartesiana, Karl Marx costumava duvidar de tudo, razão pela qual dedicamos este singelo texto à sua gigantesca figura histórica)  

Titã inconteste do pensamento ocidental, Karl Marx certa feita sentenciou, a propósito da história humana, que a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco, proposição na qual divisamos, humildemente, um certo equívoco, dês que versa sobre espécies biológicas distintas, de tal sorte que se nos antolha, com a devida permissão da ousadia extrema, discretamente aporético tratar da história do homo sapiens mediante uma analogia pertinente à evolução das espécies, se é que me fiz entender.


Ora, conquanto separados pelo tempo histórico, pelas classes sociais e pelos distintos modos de produção, parece-me que os seres humanos ainda conservam as características que os subsumem na aludida espécie do homo sapiens, o que me conduz a um registro cujo teor, tal qual permaneceu retido em minha memória, consiste na descoberta, em sítio arqueológico romano, de uma placa de mais de dois mil anos de existência em que se insculpia a admoestação para que eventual visitante tomasse o devido cuidado com o cão bravio da respectiva residência!


Demais disso, quer me parecer que quanto mais enfatiza o tempo histórico, com sua sequência de modos de produção e classes sociais, tanto mais abstrato e racionalista exibe-se o discurso, ao passo que, ao contrário, quanto mais tal discurso destaca os indivíduos em sua materialidade prática e empiricamente evidente, mais concreto ele se nos afigura, condição esta que encerra como corolário a imperiosidade de se haurir, das investigações históricas, certo caminho mediano para uma maior aproximação da realidade, se é que isto possa de fato existir.


É cediço que o autor acima mencionado, o conspícuo Mouro de Trier, também esgrimia, a meu sentir de forma absolutamente certeira, que na distinção entre os sexos masculino e feminino já se inscreve o jaez gregário do homo sapiens, com resultar complexo in extremis estimar com aceitável precisão onde reside o marco limítrofe entre indivíduo e sociedade no exame historiográfico.         

Cabe obtemperar, todavia, que os indivíduos até podem ser considerados, por uma moderna e festejada doutrina francesa, como meros vetores de determinações das estruturas sociais, portanto desprovidos, digamos assim, de vísceras, mas aquilo que efetivamente soterra tais estruturas e as substitui por outras consiste em algo que o ser humano experimenta no mais recôndito âmago de suas entranhas cruentas: a fome!


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador, bacharel e licenciado em história pela Universidade de São Paulo) 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Eleições: Lula e Alckmin, Terceira Via, Bozo. Registrando Obviedades.

 A chapa Lula-Alckmin deve ser fechada até o fim de abril. Não vejo outros nomes sendo cogitados a sério para a vaga de vice do Lula. O PT precisa dos votos do Alckmin? A pergunta nem é essa, a pergunta é: o Alckmin tem votos? Por óbvio que o PT não precisa desses votos. Mas precisa do simbolismo desse acordo para acalmar a oposição liberal a sua candidatura e principalmente a seu futuro governo. Alckmin é elitista, liberal no pensamento econômico, profundamente conservador quanto aos costumes, com uma ligação odiosa com a Opus Dei, organização da extrema direita católica, que apoiou a ditadura de Franco na Espanha. Não só não tem nenhuma afinidade com as ideias que, pelo menos nos corações e mentes da militância, norteiam a política petista, ideias estas de inclusão da população mais pobre, valorização do trabalho e desenvolvimentismo e independência nacional, liberalidade nos costumes, como também sempre atuou no sentido contrário quando esteve no poder. A seu favor conta um histórico de fidelidade e honestidade. Pelo que se sabe, não procurou a política com objetivos fisiológicos, de enriquecimento pessoal, foi fiel a seu partido enquanto ele foi um partido de verdade, respeita os acordos que firma e é um interlocutor civilizado ao negociar esses acordos. Estes dois últimos aspectos são avalizados pelo Haddad, experenciados durante sua prefeitura de São Paulo. Não é um político carismático, como fica óbvio pela alcunha que ganhou de “Picolé de Chuchu”, nem muito habilidoso, dado o fato de ter alimentado o monstro Dória que o traiu e terminou de afundar seu partido. Não temo que venha a articular um golpe contra Lula, como Temer foi capaz de fazer com Dilma, mas acho que existe o risco de, caso Lula venha a se afastar da presidência, por doença, o que é possível por conta de sua idade avançada, assumindo a presidência, dê uma guinada de cento e oitenta graus nos rumos do governo.

A candidatura do Marreco acabou, como já tinha sido anunciado que aconteceria até abril, por todo mundo que sabia alguma coisa de política e se manifestava com alguma honestidade intelectual. Uma candidatura obviamente condenada ao fracasso. O sujeito é antipático, arrogante, ignorante e tem sérias limitações cognitivas. Além disso, ou por isso mesmo, não tem nenhuma aptidão para o diálogo e a articulação política. Não tem nenhuma proposta e baseia sua campanha no antipetismo e no combate à corrupção, a suposta causa de todos os males do país. Uma plataforma duplamente vencida. O antipetismo está passando e as pessoas hoje veem a economia e não a corrupção como o principal problema. Está isolado desde o início e sua candidatura só saiu do traço por conta de intensa e exaustiva campanha da imprensa corporativa, principalmente a Globo, único setor, além de um segmento corporativista do judiciário, que o apoia. Antes mesmo de sair candidato, já havia ganhado a pecha de traidor, tanto para a esquerda quanto para a direita. À esquerda por ter traído a justiça e a pátria, ao entregar tanto uma quanto outra a interesses estrangeiros em troca de ganhos pessoais e à direita por ter barganhado com o Bozo um ministério e, ao ser contrariado, sair do posto atirando contra seu chefe e benfeitor (e beneficiário de seus desmandos na justiça). Para confirmar a má fama, agora trai o partido que o acolheu e pagou polpudo salário além de disponibilizado vultuosas verbas de campanha e muda-se para o monstrengo União Brasil, a Arena rediviva, em busca de mais fundos, a convite de um de seus caciques. Verdade seja dita que nenhum dos dois partidos o quer, pois, sua rejeição no eleitorado hoje já consegue ser maior que a do Bozo. Um fenômeno, de fato, esse marreco. Fazemos votos que em algum momento a justiça seja finalmente feita, após amplo direito de defesa que ele sempre negou a suas vítimas, e ele seja encarcerado por um bom tempo, junto com o resto da quadrilha de Curitiba.

Outro que afunda, em índices de intenção de votos pífios, é Doria, o jestor, como dizia o saudoso Paulo Henrique Amorim. Eu não tenho acompanhado a política paulista, mas, aparentemente, seu governo de São Paulo é desastroso, apesar de ter conduzido a vacinação de maneira correta e relativamente eficiente. Aparentemente, este foi o único mérito de sua jestão. Seus índices de rejeição parecem ser altíssimos, a ponto de ninguém, nem seu candidato à sucessão no governo do estado, querer tê-lo no palanque, segundo artigo publicado na imprensa. É pedante, arrogante, autoritário, elitista e sua aversão aos pobres é tão evidente que é incapaz de gerar qualquer empatia com a maioria da população. Tem massacrado o funcionalismo, do professor ao pesquisador ao barnabé, o que gera um enorme contingente de pessoas a lhe fazerem oposição. Diante de sua inviabilidade, há uma espécie de motim ou guerra civil dentro do PSDB, onde Eduardo Leite, o desconhecido, tenta dar o golpe nas prévias e assumir a candidatura presidencial. É o penúltimo prego no caixão da legenda.

Junto com Marreco e Dória, vai-se a imaginária terceira via, sonho inefável da imprensa corporativa, entreguista e golpista, que nunca decolou e também não vai decolar com Ciro ou Eduardo Leite ou qualquer outro nome inventado e sem história. As pesquisas e a história têm demonstrado que tanto o PT quanto o Bozo têm, além de um teto de votos, inferido pelo seu índice de rejeição, um piso de votos. Este é de trinta por cento para o primeiro e vinte e um por cento para o segundo. Para uma candidatura da tal terceira via emplacar, precisaria somar pelo menos os vinte e um por cento do piso do Bozo para tirá-lo do segundo turno. Hoje, nem somando os índices de todos os nomes apresentados para essa empreitada chega-se perto disso. A eleição vai ser mesmo plebiscitária: barbárie ou democracia. Fantasia autocrática e violenta ou experiência de administração bem-sucedida. Morte ao preto pobre e bandido ou inclusão, trabalho e consumo. É assustador que a escolha apresentada seja essa, e que a possibilidade da opção pela barbárie possa vencer novamente, mas esses são os fatos.

Finalmente, o inominável, o Bozo, cresce ligeiramente nas pesquisas. Muita gente parece ter se assustado, mas é o esperado, não há nenhuma surpresa nisso. Com o desaparecimento da terceira via, os votos desta migram, majoritariamente para a extrema direita. Ou alguém acredita que os parcos votos do Marreco e do jestor poderiam migrar, significativamente, para o Lula? Os eleitores da terceira via são os antipetistas alfabetizados, envergonhados pela grosseria do elemento que hoje ocupa indevidamente a cadeira presidencial. E o incomível tem o seu carisma torto, é um fascista raiz e a sua tropa de desajustados sociais o reconhece e se identifica. Além disso ele tem enormes recursos financeiros e tecnológicos, advindos não só de uma burguesia nacional atrasada, ignorante e de mentalidade colonial escravagista, mas também da extrema direita internacional do qual se tornou um  baluarte, apesar de sua inépcia, sem falar dos interesses da geopolítica estadunidense que sempre trabalhou e trabalhará para que nenhum país se estabeleça como uma economia ou liderança rival no continente americano. A eleição provavelmente será suja e violenta, com notícias falsas, hoje constrangedoramente chamadas de fake news, sendo distribuídas intensamente e em larga escala para dezenas de milhões de eleitores e vários episódios de atentados pelas milícias fascistas, fortemente armadas durante o desgoverno do Bozo, com eventuais episódios fatais mesmo nos bairros de classe média dos grandes centros. Digo isso porque episódios fatais no campo, nas pequenas cidades e nas periferias dos grandes centros são a regra, já são a regra hoje.

Encerro dizendo que mesmo apesar de tudo, acho que o mais provável é mesmo a eleição do Lula e o fim desse período trágico de nossa história, para um novo começo, difícil, lento, suado, da construção de um país que nos orgulhe a todos, principalmente o povo mais pobre, preto, mestiço, indígena que são os deserdados desta terra. E repito a palavra de ordem sempre levada pelo nosso camarada, o Satânico Dr. Mao: O Socialismo Avança e o Capitalismo se Esfacela! E acrescento: Uahahahaha! (risada de monstro).


Pedro Crem

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Elementos históricos para uma epistemologia materialista:


1. Parto da seguinte premissa: a proximidade da verdade epistêmica exibe-se diretamente proporcional à distância histórica ou dissociação entre sujeito e objeto do conhecimento.


2. Anteriormente ao advento da revolução neolítica, os seres humanos ainda se subsumem completamente na natureza, descabendo cogitar em dissociação entre sujeito e objeto do conhecimento.


3. Com o advento da revolução neolítica, os seres humanos passam a transformar a natureza consoante suas necessidades concretas, de tal sorte que que há uma discreta ruptura entre sujeito e objeto do conhecimento. Os indivíduos ainda mantêm a posse dos meios de produção e ainda preservam considerável autonomia para determinar o tempo e o ritmo de trabalho, situação esta que remanesce até os estertores da idade média, caracterizada pela atividade agropecuária e artesanato. Na orbe epistêmica, portanto, o sujeito do conhecimento ainda coincide com o indivíduo humano, o qual permanece ainda muito subsumido na natureza e, destrate, pouco distante do objeto do conhecimento.


4. Com o advento da manufatura, na idade moderna, os indivíduos trabalhadores perdem em certa medida a posse dos meios de produção e já não determinam completamente o tempo e o ritmo do trabalho, numa subsunção meramente formal do trabalho no capital que já provoca maior distanciamento entre sujeito e objeto do conhecimento. Observam-se os pródromos da vindoura classe proletária, sendo certo que a filosofia de Baruch de Espinosa, ao fulminar radicalmente qualquer transcendência divina, vulnerou a ideia de um observador dissociado ou fora do Universo e, por conseguinte, a acepção de um tempo e um espaço absolutos, com viabilizar os fundamentos da ulterior teoria da relatividade de Albert Einstein, com sua concepção peculiar do espaço-tempo.


5. Com o advento da revolução industrial inglesa do século XVIII, caracterizada pela ascensão da maquinaria e grande indústria e pela subsunção real do trabalho no capital, os indivíduos trabalhadores perdem completamente a posse e a propriedade dos meios de produção, bem assim a determinação individual do tempo e ritmo do trabalho, constituindo plenamente uma classe proletária internacional que encerra o potencial de emancipar a humanidade e unificá-la perante a natureza, do que se dessume uma máxima distância entre sujeito e objeto do conhecimento, resultando no socialismo científico de Marx e Engels.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 23 de março de 2022

BREVE DISCURSO DAS HIPÓSTASES: INDIVÍDUO E SOCIEDADE

Os seres humanos convivem com abstrações em seu cotidiano há milênios: mais especificamente, desde o momento em que passaram a trocar mercadorias entre si.

Sim, pois a intercambialidade entre os diversos valores de uso das mercadorias pressupõe que exista algo em comum entre as mesmas: ora, esse denominador comum entre mercadorias de distintos valores de uso consiste no fato de que são fruto do trabalho humano. 

Todavia, o trabalho para pescar um peixe exibe-se distinto do trabalho para produzir farinha de mandioca, logo o trabalho que determina a equivalência entre distintos valores de uso corresponde ao trabalho humano abstratamente considerado, despido de suas determinações concretas, de tal sorte que o valor de certa mercadoria determina-se pelo tempo de trabalho humano ABSTRATO necessário à sua produção: eis a origem da teoria econômica do valor-trabalho. 

Já tive a oportunidade de obtemperar, na publicação imediatamente precedente deste portal, que os indivíduos humanos, quando apartados de suas relações sociais de produção, não passam de meras abstrações ou quimeras. Mas as relações de produção, se consideradas independentemente dos indivíduos humanos concretos que lhes dão suporte, também configuram abstrações: eis o problema da interação entre indivíduo e sociedade.

Destaque-se que a multiplicidade das necessidades individuais concretas enseja a multiplicidade dos valores de uso e, por conseguinte, a divisão social do trabalho e a troca de mercadorias: em tais necessidades individuais concretas, portanto, reside o nascedouro da relação de produção representada pela mercadoria e seu derivado historicamente ulterior, o capital. 

Destaque-se, também, que cada indivíduo humano singularmente considerado encerra necessidades concretas idênticas às dos demais indivíduos, mas também guarda necessidades concretas singulares ou partilhadas com poucos indivíduos: observe-se que já na distinção entre os gêneros (feminino, masculino etc.) há diferenças entre necessidades concretas individuais.

Mas, sob o domínio do modo capitalista de produção, um mesmo valor de uso pode ser produzido por distintos capitais individualmente considerados, sendo certo que tal multiplicidade é historicamente mitigada pela tendência capitalista à centralização e decorrente formação de oligopólios e monopólios. 

É mister obtemperar ainda que, sob o capitalismo, há uma tendência à padronização e repetição das mercadorias e do próprio trabalho, de tal sorte que o trabalho abstrato, acima mencionado, tende a realizar-se em um trabalho homogêneo, repetitivo e padronizado nas distintas plantas fabris, fenômeno que é intensificado pela centralização de capital. 

O comunismo mundial, portanto, conquanto despido das fraturas sociais derivadas das lutas de classes, deverá deparar-se com os problemas da interação entre indivíduo e sociedade, máxime com a questão da satisfação das necessidades individuais concretas, as quais, se não se exibem absolutamente singulares para cada caso, podem ser vinculadas a poucos indivíduos humanos. Em todo caso, será imperiosa a divisa: de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades. 

Eis alguns temas, discretamente dispersos, para debater.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)  

  

quarta-feira, 9 de março de 2022

FRAGMENTO SOBRE RAZÃO E ABSURDO

O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel descortinou pioneiramente a lógica dialética que habilita o estudioso a capturar a intelecção da história da humanidade, mas o fez de maneira formal e idealista, sendo certo que seus discípulos Karl Marx e Friedrich Engels despojaram esta inteligibilidade de seu cariz abstrato, com atribuir um conteúdo concreto ao evolver humano no curso do tempo, de sorte que se desvelou, destarte, a sucessão dos distintos modos de produção ao longo da história, cuja dinâmica rege-se pelas contradições entre relações de produção e forças produtivas, que se manifestam, por seu turno, por meio de lutas de classes. 

Impõe-se, então, indagar: por que motivo a intelecção da história da humanidade, pela lógica dialética e pelo materialismo histórico, somente foi exequível tardiamente, entre os séculos XVIII e XIX?  

Ouso voluntariamente correr os riscos de ventilar uma resposta a esta indagação: o motivo reside no advento em grande escala da classe proletária durante o fenômeno histórico da revolução industrial inglesa do século XVIII. 

Sim, porquanto tal classe social, completamente desprovida dos meios de produção, exibe um caráter mundial que lhe confere aptidão para emancipar a humanidade, com habilitá-la a tomar as rédeas da sua própria história e submetê-la aos ditames da razão, alcançando um novo modo de produção já não mais fraturado em classes sociais antagônicas.

Portanto, a inteligibilidade da história da humanidade somente se manifesta quando esta mesma humanidade apresenta-se apta a dirigir o seu próprio destino, sendo certo que, portanto, apenas na longa duração dos distintos modos de produção, que se sucedem no curso do tempo, é que se pode apreender tal inteligibilidade. 

Ora, tal longa duração suplanta evidentemente o tempo de uma vida humana individual, de sorte que a própria razão, por conseguinte, também se exibe como fenômeno social atrelado à longa duração histórica. 

A história do indivíduo humano abstrato, apartado de suas relações sociais, enfim, de suas relações de produção e da história de tais relações de produção, não pode, portanto, suplantar o estatuto de quimera desprovida de racionalidade e inteligibilidade.

Por isso, no âmbito da literatura, por exemplo, proliferam os casos de obras que, divisando o indivíduo humano, chegam no nonsense e no absurdo:

Nas obras de Anton Tchekhov, verbi gratia, nada digno de nota acontece, pois este autor, médico e provido de olhar científico, apreendeu a falta de racionalidade do tempo próprio das personagens individuais. 

Franz Kafka, por seu turno, exibe-nos indivíduos humanos oprimidos por uma realidade que lhes escapa ao controle, sendo certo que o resultado deste solipsismo exacerbado apresenta-se na forma de aberrações como o inseto de "A metamorfose".

Já as personagens do assim chamado "teatro do absurdo" mal conseguem se comunicar entre si, talvez porquanto aquilo que têm a dizer como meros indivíduos abstratos, no sentido acima exposto, não seja inteligível a mais ninguém. 

São singelas ideias para eventual debate.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)  



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

O HOMEM AMARELO

O pintor holandês Vincent van Gogh, portador de transtorno afetivo bipolar e obcecado pela cor amarela, fracassou, em vida, em todos os aspectos de sua breve existência: desastroso nos campos amoroso, profissional, financeiro, familiar, etc, ele foi, nada obstante, postumamente reconhecido e consagrado como o mais importante artista plástico de sua época e, decerto, um dos mais relevantes expoentes de toda a história da arte, e quiçá seu ponto culminante - ao menos na humilde opinião do autor que aqui lhes dirige a palavra.


A sua vida é, de fato, de um apelo irresistível ao biógrafo, mas seria factível um exame materialista histórico de sua obra, objetivamente isento?

A questão metodológica, que aqui se nos antolha preambular, consiste no seguinte: em nosso sentir, a aproximação de jaez marxista, como colimamos demonstrar, desvela-se não apenas possível como, sobretudo, absolutamente necessária à averiguação precisa da relevância histórica da arte de Van Gogh.

Limítrofe entre o figurativismo e o abstracionismo, sua obra pictórica representa provavelmente o liame mais significativo, na orbe das artes, da transição entre as formações sociais pré-capitalistas, ou "antediluvianas", e o capitalismo propriamente dito, e, nesse sentido, seu estudo guarda o condão de desnudar relações inusitadas.

Creio que já se postulou, amiúde, ser a pintura abstrata coeva do trabalho também abstrato, aquele apartado dos meios de produção e que serve ao capital para produzir mais-valia, enquanto a arte figurativa amolda-se mais aos períodos históricos que precedem o modo de produção capitalista, máxime ao artesanato, quando o trabalhador ainda possui os meios de produção.

Ora, a obra de Van Gogh exibe-se, no essencial, como a arte de transição por excelência entre essas duas épocas: com efeito, cuida-se do artista que efetuou, e de forma pioneira, a dissociação mais radical entre as cores, notadamente o amarelo, e as figuras ou formas que lhes dão suporte na tela, de tal sorte que os objetos nela representados perdem suas cores naturais e assumem outras que o artista, ao seu alvedrio, lhes atribui artificialmente. 

Mas, a escolha das cores dos objetos seria de fato aleatória para esse artista? O que dizer do predomínio do amarelo na obra de Van Gogh?

Suponho também que já se suscitou que tal predomínio é caudatário de determinado defeito ocular do artista provocado por medicação.

Nada mais falacioso.

O amarelo de Van Gogh é a cor do ouro, vale dizer, do dinheiro por natureza, precisamente o metal que cumpre a função social de representar a quantidade de trabalho abstrato ou o valor das mercadorias. O próprio Karl Marx diria que se trata do metal que, com sua cintilante cor amarela, consubstancia a "gelatina" de trabalho abstrato, de massa disforme de valor, a saber, o próprio símbolo do capital. 

Ao libertar o amarelo-ouro de seus suportes figurativos, Van Gogh na verdade representa no plano pictórico a dissociação entre trabalho e meios de produção, que engendra o trabalho abstrato e sua medida, o valor, por seu turno consubstanciado, como equivalente geral, no dinheiro, no ouro, no vil metal de cor amarela. 

Esse artista genial removeu de suas figuras as respectivas cores naturais e as pintou de amarelo, de ouro, de dinheiro: assim como este se converte em qualquer mercadoria, as figuras e formas das telas de Van Gogh perdem a cor natural e assumem a cor amarela, convolando-se em abstrações, em formas mutuamente conversíveis.

Seria um figurativismo abstrato, ou um abstracionismo figurativo? O que se pode asseverar com certo grau de certeza é que a conversibilidade das figuras amarelas do artista neerlandês reproduz o mecanismo pelo qual, sob o pálio do capitalismo, o dinheiro convola-se em mercadoria e vice-versa, essas "gelatinas de trabalho abstrato", de valor. 

Por derradeiro, se o Mouro de Trier estudou o dinheiro com absoluta falta dele no bolso, o artista holandês também pintou suas figuras douradas sem conseguir convertê-las no vil metal amarelo que tanta falta lhe fez. 

Seria Vincent van Gogh o Karl Marx das artes?

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)