quinta-feira, 10 de julho de 2025

NÚMERO E INFINITO

 Como parece lícito dessumir do texto intitulado Número e Mercadoria, o número consiste em delimitação arbitrária, que engendra dialeticamente seu contrário, o infinito, isto é, a ausência de limites.


Mas esta delimitação decorre também das relações de produção, maxime da propriedade privada dos meios de produção, que é na verdade uma extensão da individualidade.


Mas o indivíduo é um construto ideológico, carente de consistência e concretude quando dissociado das sociedades atual e precedente que o produzem.


Expressão da propriedade privada dos meios de produção, o capital encerra, todavia, uma tendência inerente à acumulação infinita, que se contrapõe a um mundo finito e, portanto, engendra crises econômicas e ecológicas.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

NÚMERO E MERCADORIA

 O Número como Forma de Sociabilidade

Essa ideia articula com densidade a gênese do conceito de número com a crítica da forma-mercadoria em Marx, situando o número não apenas como uma abstração lógica ou epistemológica, mas como uma forma social de mediação própria do modo de produção capitalista. Desenvolvamos passo a passo.

1. Níveis de Abstração: do Conceito de Ovelha ao Conceito de Número

O conceito de ovelha é um exemplo clássico da abstração conceitual típica da lógica aristotélica: a partir da experiência com múltiplos indivíduos particulares (cada qual com sua cor, tamanho, idade, etc.), elabora-se um conceito genérico que mantém os traços essenciais e elimina os acidentais. Tal conceito ainda se refere a seres particulares concretos, embora de modo generalizado.

Já o conceito de número opera com uma abstração radicalmente mais profunda: ele não se refere a um tipo específico de ser, mas a qualquer coisa — ou mais precisamente, à quantidade indiferenciada de coisas, desprovidas de qualquer qualidade própria. O número é, portanto, uma forma extrema de abstração, pois prescinde de qualquer referência concreta determinada.

2. O Número como Derivado da Forma-Mercadoria

Essa abstração extrema do número não emerge do nada. Ela está profundamente ligada à lógica do capital. A forma-mercadoria, como nos mostra Marx no início de O Capital, é a célula elementar da sociedade burguesa. Ela se constitui quando um objeto, originalmente portador de um valor de uso determinado, torna-se intercambiável com outros objetos por meio do valor de troca.

Essa intercambialidade generalizada exige um denominador comum, uma forma de equivalência entre objetos qualitativamente diferentes. Essa equivalência é o tempo de trabalho humano abstrato cristalizado nas mercadorias. Mas para que essa equivalência funcione socialmente, é preciso quantificá-la. A forma de valor é, pois, a base social da quantificação econômica, e é nesse processo que o número adquire sua função social plena.

Assim, o número não é apenas um instrumento lógico ou técnico: ele emerge e se consolida como expressão da forma social de troca mercantil, da redução de qualidades concretas a magnitudes abstratas comparáveis. O número, nesse sentido, é um produto social da mercantilização da vida.

3. O Número como Forma de Sociabilidade

Se a forma-mercadoria é uma relação social mediada por coisas, então o número — enquanto operador lógico dessa mediação — é também uma forma social. Ele não paira acima das relações sociais; ele é, ao contrário, uma expressão condensada e funcional dessas relações.

Quando dizemos que uma mercadoria vale “10 unidades monetárias”, o que está em jogo não é um número neutro: trata-se de uma forma de expressão do tempo de trabalho socialmente necessário que a sociedade reconhece como critério de equivalência. O número, aqui, mede o tempo abstrato. Portanto, ele não é apenas uma forma simbólica, mas uma forma socialmente operante da própria reprodução capitalista.

Nesse sentido, o número, como a moeda, é um universal real, uma forma de mediação social objetiva, imposta pelas relações de produção.

4. Implicações Filosóficas e Críticas

Essa análise permite ultrapassar tanto o formalismo matemático quanto o empirismo vulgar. O número não é um dado natural nem uma convenção arbitrária: ele é uma forma historicamente determinada de representar e operar a realidade social sob o regime da troca generalizada.

A matematização do mundo moderno — como notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento — não é apenas um avanço técnico, mas a generalização da lógica da equivalência mercantil a todas as esferas da vida, inclusive à subjetividade. A redução do mundo ao número é, portanto, a redução do mundo à forma abstrata da sociabilidade capitalista.

5. Conclusão

O número não é apenas uma abstração lógica que mede coisas: ele mede a sociedade. Ele nasce do processo social pelo qual objetos se tornam comparáveis em termos de valor de troca. A forma-mercadoria, como relação social mediada por equivalência quantitativa, gera e exige o número como seu correlato.

Assim, a diferença entre o conceito de “ovelha” e o conceito de “número” não é apenas uma questão de grau de abstração, mas de natureza social da abstração. Enquanto o primeiro abstrai diferenças dentro de uma espécie concreta, o segundo abstrai a própria materialidade qualitativa das coisas, instaurando um mundo de pura quantidade, indispensável à lógica do capital.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

FINITUDE

 I. Plano Matemático: O intervalo como totalidade paradoxal

Ao tomarmos o intervalo [0,1] no eixo das abscissas do plano cartesiano — ou seja, todos os números reais x tais que 0 ≤ x ≤ 1 — deparamo-nos com um conjunto infinitamente denso: entre qualquer dois pontos desse intervalo, sempre existe um terceiro ponto distinto, e entre esse terceiro e os anteriores, outros infinitos, ad infinitum.

Esse fato não é apenas um efeito colateral do uso de números reais: é uma propriedade estrutural da continuidade, cujo fundamento reside na não-enumerabilidade do conjunto dos reais, conforme demonstrado por Georg Cantor por meio de seu famoso argumento da diagonalização.

Assim, embora os pontos extremos 0 e 1 pareçam delimitar um intervalo finito e bem definido, essa finitude é meramente topológica, não numérica. O número de pontos contidos entre eles é o mesmo que em todo o contínuo real: incontável, não numerável, denso e ininterrupto.

II. Plano Epistemológico: A finitude como convenção mental

A demarcação de um segmento como “de zero a um” corresponde a um ato de delimitação simbólica, um corte arbitrário e utilitário no fluxo contínuo da realidade. Tal como o sistema métrico define o metro como uma fração da velocidade da luz ou da oscilação de um átomo de césio, o intervalo entre 0 e 1 nada mais é do que uma convenção de mensuração.

No entanto, essa convenção não captura a infinitude interna do intervalo. Cada ponto ali contido pode ser identificado por uma sequência infinita de dígitos decimais (como 0.333... ou 0.101101...), o que exige uma estrutura simbólica infinitamente extensível, como os sistemas numéricos posicionais ou binários.

Portanto, a finitude geométrica do intervalo é ilusória: ela esconde a complexidade potencialmente infinita que o habita. Ao tentar "fechar" um intervalo, o sujeito matemático na verdade projeta uma moldura racional sobre um objeto que escapa à finitude cognitiva.

III. Plano Ontológico-Crítico: A quimera da finitude

Do ponto de vista filosófico, o intervalo [0,1] é uma figura simbólica da finitude. Ele representa, na imaginação matemática, algo que pode ser "completamente conhecido", "completamente mensurado", "completamente delimitado". No entanto, esse objeto está saturado de infinitude: ele não possui átomos espaciais, não é composto de "últimos elementos", mas de infinitas divisões sucessivas.

Essa contradição lembra as aporias de Zenão de Eleia, segundo as quais o movimento seria impossível porque exige a travessia de infinitos pontos intermediários. O paradoxo da "finitude infinita" não é resolvido, mas apenas administrado simbolicamente pelas estruturas formais da matemática moderna (análise, topologia, lógica dos conjuntos).

O que emerge, então, é que a finitude — tal como concebida na matemática clássica — não é uma propriedade da realidade, mas uma ficção operacional necessária para que possamos praticar mensuração, cálculo e engenharia. A "finitude" é a domesticação simbólica de um real estruturalmente infinito.

Conclusão

O intervalo de 0 a 1, aparentemente tão limitado, revela-se um abismo lógico, onde a distinção entre finito e infinito se dissolve. Ele é o emblema da tensão entre o racional e o incognoscível, entre o desejo humano de domínio simbólico e a estrutura intrinsecamente aporética do real.

Nesse sentido, a matemática moderna — ainda que finque suas bases na abstração pura — nos conduz de volta a um problema profundamente filosófico: a finitude como mito epistemológico, necessário mas ilusório, sempre à beira de se desfazer no oceano do contínuo.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

CONJECTURA SOBRE OS INFINITOS (em homenagem ao matemático Marcelo Viana)

 Na aritmética moderna, Georg Cantor introduziu uma revolução conceitual ao demonstrar que existem infinitos com diferentes "tamanhos", ou melhor, diferentes cardinalidades. Essa descoberta abalou a matemática clássica e estabeleceu as bases da teoria dos conjuntos. Cantor provou, por exemplo, que o conjunto dos números naturais (ℕ) é infinito, mas que o conjunto dos números reais (ℝ) é um infinito maior — ou seja, o infinito dos reais não pode ser colocado em correspondência biunívoca com o dos naturais. Ele distinguiu entre o infinito enumerável (como o de ℕ) e o infinito não enumerável (como o de ℝ), revelando uma hierarquia dos infinitos com base em suas cardinalidades: ℵ₀ (alef-zero) para os naturais, 2^ℵ₀ para os reais, e assim por diante.


Esse panorama aritmético subverteu a ideia de que "infinito é apenas infinito" e mostrou que a quantidade de elementos de um conjunto infinito pode variar, ainda que ambos os conjuntos sejam infinitos. O infinito, portanto, deixou de ser uma ideia nebulosa e tornou-se passível de formalização e gradação.

Na geometria e na cosmologia contemporânea, encontramos um análogo surpreendente: a ideia de que o universo em expansão também comporta "infinitos de diferentes tamanhos", embora não formalizados da mesma maneira que na aritmética. A partir da Teoria da Relatividade Geral e das observações astronômicas do século XX, tornou-se claro que o universo não é estático, mas está em expansão acelerada, o que sugere que o espaço pode ser infinita ou potencialmente infinita e diversamente "grande" — dependendo do modelo cosmológico adotado.

Nesse contexto, a geometria assume uma dimensão física e dinâmica: o universo pode ser finito mas ilimitado (como na geometria de Riemann), ou realmente infinito, e a própria noção de “tamanho” do espaço varia conforme sua curvatura e expansão. Com a inflação cósmica e o conceito de multiverso, emerge a possibilidade de múltiplos "universos" com infinitas extensões, talvez com métricas distintas — ou seja, infinitos geométricos de naturezas não equivalentes.

Portanto, se Cantor nos revelou os infinitos aritméticos, hierarquizados pelas cardinalidades dos conjuntos, a física contemporânea parece nos propor, ainda que com menos rigor matemático, uma analogia: infinitos geométricos e físicos com extensões e curvaturas não uniformes. A aritmética formaliza a diferença entre os infinitos através da teoria dos conjuntos; a geometria, através da física, nos sugere que o real pode conter infinitudes diversas em termos espaciais e temporais.








Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

terça-feira, 1 de julho de 2025

FRIEDRICH NIETZSCHE

 Infenso a qualquer sistematização do conhecimento, Friedrich Nietzsche pretendia subverter a marteladas toda a metafísica de origem platônica, que por seu turno tem raizes na oposição entre as duas facetas da forma-mercadoria, a saber, entre seu valor de uso e seu valor de trocas, que sustenta a oposição entre corpo e alma.


Foi, assim, precursor dos teoremas da incompletude de Kurt Gödel, por exemplo, um dos maiores golpes contra a razão iluminista, e propôs, com o além do homem e a vontade de potência, uma transvaloração de todos os valores.


Mas Nietzsche era um aristocrata e não percebeu que a metafísica, isto é, a forma-mercadoria é uma relação de produção, uma forma de sociabilidade, cuja superação depende de uma revolução social concreta, e não somente de um projeto filosófico.


Enquanto a questão da produção e reprodução da vida material humana não for resolvida, o projeto filosófico de Nietzsche remanescerá ideal e irrealizável.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

MATEMÁTICA

 O número e a linha reta, enquanto abstrações fundamentais da matemática, não são apenas construções lógicas ou epistemológicas, mas expressões históricas de uma forma social determinada: a forma-mercadoria. Assim como a matemática clássica busca extrair a essência das coisas na abstração quantificável — reduzindo a multiplicidade qualitativa à homogeneidade do número e da linha —, o capital opera de maneira análoga ao transformar objetos concretos, portadores de valor de uso, em valores de troca mensuráveis, convertidos em tempo de trabalho humano abstrato.


A forma-mercadoria, tal como analisada por Karl Marx, dessubstancializa o objeto concreto para convertê-lo em equivalente geral, isto é, em unidade comparável e intercambiável no mercado. Esse processo envolve a supressão da qualidade e a exaltação da quantidade. Nesse mesmo gesto, a matemática, enquanto forma de saber dominante na modernidade capitalista, privilegia representações que reduzam a complexidade da experiência sensível a grandezas mensuráveis: o número puro, a linha reta infinita, o ponto geométrico sem dimensão.

Ambas as operações — a da forma-mercadoria e a da matemática formal — repousam sobre o princípio da abstração: abstração do conteúdo qualitativo, da história, da singularidade. O que importa é a possibilidade de cálculo, de mensuração, de intercâmbio. Nesse sentido, o número e a linha reta podem ser compreendidos como produtos simbólicos do mesmo processo social que transforma o ser humano em força de trabalho abstrata e a riqueza em tempo de trabalho quantificado.

Assim, a crítica da forma-mercadoria, se levada às últimas consequências, deve também incluir uma crítica das formas do saber que com ela compartilham a mesma lógica abstrativa: o saber matemático, em sua pretensão de neutralidade, é cúmplice — ou ao menos efeito — da racionalidade reificante do capital.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

ALBERTO GIACOMETTI

Alberto Giacometti, em suas esculturas esguias e espectrais, reduz o ser humano a um punhado de linhas retas, abstraindo-lhe toda a concretude e densidade material. Essa depuração extrema da forma não visa meramente à economia de meios, mas sim à revelação de uma essência moderna: o sujeito alienado, esvaziado, reduzido à condição de existência abstrata. Nesse sentido, as figuras de Giacometti não representam apenas uma estética do vazio, mas denunciam uma ontologia do capital.

No modo de produção capitalista, o ser humano é subsumido como mera força de trabalho. Ele já não é portador de uma singularidade qualitativa, mas expressão de uma funcionalidade mensurável, calculável, intercambiável. O capital, ao reduzir todas as relações sociais à lógica do valor, transforma a subjetividade humana em mercadoria: seu valor é definido não por sua interioridade, mas pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua reprodução.

Assim como a forma-mercadoria converte os objetos de uso em valor de troca, destituindo-os de seu vínculo direto com necessidades concretas, também o capital converte o ser humano em abstração operante — força de trabalho pura, sem história, sem rosto, sem peso ontológico. As esculturas lineares de Giacometti encarnam precisamente essa abstração reificante: são homens e mulheres transformados em vetores, em traços de tempo e produtividade, em corpos já desprovidos de carne, desejo ou história. São, em última instância, figuras da alienação total.

A obra de Giacometti, nesse sentido, pode ser lida como crítica estética do processo de reificação capitalista. Ao mostrar corpos tão despojados de substância que parecem prestes a desaparecer, o escultor antecipa, na arte, aquilo que o capital realiza na vida: a dessubstancialização do ser humano, sua conversão em cifra, em código, em número. No lugar do homem integral, surge o trabalhador abstrato. No lugar do sujeito histórico, a variável econômica.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

A FORÇA DE TRABALHO COMO MERCADORIA ANTITÉTICA DO CAPITAL

 A força de trabalho é a mercadoria que singulariza o modo de produção capitalista. Diferentemente de todas as demais mercadorias, ela contém em si a capacidade de produzir valor e, portanto, mais-valia. Contudo, essa mesma força de trabalho carrega uma contradição ontológica: ela resiste a ser integralmente produzida segundo as leis da valorização do capital. Ou seja, sua gênese escapa, em grande parte, à lógica da produção de mais-valia e de lucro.

Nesse diapasão, a força de trabalho é inicialmente forjada no seio da família, através do trabalho doméstico não remunerado, sobretudo exercido por mulheres. Essa etapa corresponde à formação da força de trabalho manual, voltada para tarefas físicas e operacionais, em um processo totalmente à margem da produção capitalista direta. Não há, aqui, extração de mais-valia, pois não há relação contratual de compra e venda de força de trabalho.

Num segundo momento histórico e funcional, a formação da força de trabalho desloca-se para a esfera estatal, mais especificamente para o interior da escola pública. Aqui se dá a produção da força de trabalho intelectual, requerida pelo capitalismo avançado para operar as máquinas, os sistemas informacionais e os processos complexos de gestão. Mesmo nesse contexto, a produção dessa força de trabalho se dá à margem da geração de lucro e da valorização direta do capital. Trata-se de uma produção social subsidiada, que compõe as condições gerais de reprodução do capital, mas que não se conforma inteiramente à lógica da mercadoria.

Assim, a força de trabalho é, ao mesmo tempo, o pilar e o limite do modo capitalista de produção: é a mercadoria geradora de valor por excelência, mas sua própria produção repousa em esferas não diretamente capitalistas. Essa antinomia estrutural revela que o capital depende de formas sociais e institucionais que não controla completamente, mesmo enquanto as submete funcionalmente à sua reprodução ampliada.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sábado, 28 de junho de 2025

O COLAPSO DA RAZÃO

 Ao longo da modernidade, a razão foi concebida como o instrumento por excelência da totalidade, da certeza e da previsibilidade. No entanto, essa visão entrou em colapso com uma série de obras fundamentais do século XX que demonstraram, cada uma à sua maneira, os limites da racionalidade formal, científica e filosófica. Três desses marcos são particularmente emblemáticos: o princípio da incerteza de Heisenberg, os teoremas da incompletude de Gödel e a filosofia de Nietzsche em 'Assim falou Zaratustra'.

1. Heisenberg e o Princípio da Incerteza

Em 1927, Werner Heisenberg formulou o princípio da incerteza, segundo o qual não é possível determinar com precisão simultânea a posição e o momento de uma partícula subatômica. Esse princípio rompe com o paradigma determinista da física clássica e introduz um limite epistemológico no coração da ciência: a realidade não é absolutamente previsível. A razão, entendida como instrumento de domínio total do real, revela-se insuficiente para descrever os fundamentos últimos da natureza. O conhecimento passa a ser probabilístico e contextual, colocando em xeque a pretensão de neutralidade e exatidão absoluta da ciência moderna.

2. Gödel e os Teoremas da Incompletude

Em 1931, Kurt Gödel publicou seus teoremas da incompletude, provando que qualquer sistema formal suficientemente poderoso para expressar a aritmética será necessariamente incompleto: haverá sempre proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas dentro do próprio sistema. Essa descoberta abala profundamente o ideal lógico-matemático inaugurado por Euclides e formalizado por Hilbert, mostrando que a razão não pode fundamentar a si mesma de modo autossuficiente. A incompletude revela uma rachadura interna na estrutura da racionalidade formal, expondo sua limitação diante do infinito e da autorreferência.

3. Nietzsche em "Assim falou Zaratustra"

Friedrich Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra' (1883–1885), antecipa em termos filosófico-literários o colapso da razão como valor supremo da cultura ocidental. Zaratustra anuncia a morte de Deus — isto é, o fim dos fundamentos transcendentais da moral, da verdade e da lógica universal. Nesse vácuo deixado por Deus, a razão perde seu pedestal absoluto e é confrontada com o niilismo: nada tem um valor intrínseco. A figura do 'além-do-homem' (Übermensch) surge como resposta criadora à queda da razão como medida de todas as coisas. Nietzsche substitui o logos pelo pathos, a certeza pelo devir, a moral pela vontade de potência. O Zaratustra filosofa com o martelo, demolindo os ídolos da racionalidade clássica.

Conclusão

Heisenberg, Gödel e Nietzsche, cada um em sua disciplina, contribuem para uma crítica radical da razão moderna. Eles não negam o pensamento racional, mas expõem seus limites internos — físicos, formais e existenciais. A razão colapsa não por falha externa, mas por uma implosão interna, ao reconhecer que o real não pode ser totalmente contido por ela. O século XX não apenas perdeu a fé no progresso racional, mas revelou que a própria racionalidade é fragmentária, situada e finita. Esse colapso não representa o fim do pensamento, mas seu redesenho sob novas coordenadas: incertas, incompletas e trágicas.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

As três fases de acumulação primitiva de capital

Ao longo do desenvolvimento histórico do capitalismo, observa-se a ocorrência de sucessivas acumulações primitivas, cada qual servindo de preparação estrutural para uma nova etapa de revolução industrial. Esses momentos não se restringem à acumulação originária descrita por Marx, mas se desdobram em novas formas de expropriação e reorganização dos meios sociais de produção e reprodução, adaptadas às exigências técnicas e econômicas do capital em suas diferentes fases. A seguir, apresentamos uma periodização dessas acumulações primitivas sucessivas, acompanhadas das revoluções industriais que inauguraram.

1. A Primeira Acumulação Primitiva (séculos XV ao XVIII)

A primeira acumulação primitiva, ou acumulação originária, ocorreu entre os séculos XV e XVIII, marcando a dissociação histórica entre os trabalhadores e os meios de produção. Esse processo envolveu a expropriação das terras comunais na Inglaterra (enclosures), o saque colonial, a escravidão e a pilhagem dos povos ameríndios, africanos e asiáticos. Tais medidas permitiram a formação de uma massa de trabalhadores livres de posses e de meios de produção, prontos a vender sua força de trabalho no mercado. Essa base social preparou o terreno para a primeira Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra no século XVIII, caracterizada pela introdução da máquina a vapor e a mecanização da produção têxtil.

2. A Segunda Acumulação Primitiva (século XIX)

Durante o século XIX, com o avanço da industrialização, estabelece-se uma segunda forma de acumulação primitiva. Agora, a força de trabalho, já formalmente livre, é subsumida ao capital sob a forma de salários que garantem apenas meios mínimos de subsistência. Essa reprodução ampliada da força de trabalho sob condições de superexploração foi essencial para a consolidação da Segunda Revolução Industrial. Esta, por sua vez, introduziu a indústria pesada, a produção em massa de bens de consumo duráveis, a intensificação do uso de eletricidade e o surgimento das grandes corporações capitalistas.

3. A Terceira Acumulação Primitiva (século XX)

No século XX, assiste-se à emergência de uma terceira acumulação primitiva, agora centrada na organização de sistemas públicos nacionais de ensino. O objetivo dessa fase foi a formação de uma força de trabalho cada vez mais qualificada, predominantemente intelectual, apta a lidar com as exigências da economia digital emergente. Essa reorganização do trabalho e do conhecimento humano preparou o terreno para a revolução digital e informacional do final do século XX e início do século XXI, caracterizada pela automação, pela microeletrônica e pelas redes globais de comunicação e produção imaterial.

Considerações Finais

As três acumulações primitivas aqui delineadas não constituem apenas momentos históricos isolados, mas fases estruturais de transição do capitalismo, cada uma delas abrindo espaço para a reconfiguração dos modos de produção, trabalho e sociabilidade. Ao articular expropriações específicas e revoluções técnicas, o capitalismo reinventa continuamente suas bases de acumulação, mantendo-se dinâmico, mas também reproduzindo suas contradições fundamentais.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

A queda tendencial da taxa social de mais-valia

 Consoante a fórmula da taxa social de mais-valia (TSMV), expressa pela razão entre o tempo médio de vida laboral da classe trabalhadora (TVL) subtraído pelo tempo médio de escolaridade (TE), e este próprio tempo médio de escolaridade — isto é, TSMV = (TVL - TE) / TE —, pode-se inferir uma tendência estrutural à queda dessa taxa ao longo do desenvolvimento capitalista contemporâneo.


Com a ascensão da revolução digital e a crescente centralidade da força de trabalho intelectual, o capitalismo exige níveis cada vez mais elevados de qualificação e especialização. Isso se traduz, objetivamente, na ampliação do tempo necessário à formação do trabalhador — o que, na fórmula acima, implica no crescimento de TE.

Dado que o numerador (TVL - TE) cresce mais lentamente do que o denominador (TE), o valor da taxa social de mais-valia tende a diminuir. Essa dinâmica revela uma contradição imanente: ao mesmo tempo em que o capital demanda trabalhadores mais qualificados, o processo de sua formação retarda a entrada no ciclo produtivo e reduz o tempo efetivo de extração de mais-valia ao longo da vida laboral.

Assim, o próprio avanço das forças produtivas, especialmente sob o signo da digitalização e da economia do conhecimento, conduz a uma erosão da taxa social de mais-valia, evidenciando os limites internos da valorização capitalista baseada na exploração do tempo de trabalho. Trata-se de uma aporia do capital: a intensificação da qualificação reduz, paradoxalmente, a base temporal da exploração.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Ainda sobre educação e mais-valia: tentativa de refinar a hipótese

Considerando que a taxa social de mais-valia pode ser definida como a razão entre o tempo médio de vida laboral da classe trabalhadora subtraído pelo tempo médio de escolaridade dessa mesma classe e o próprio tempo médio de escolaridade — isto é:


   TSMV = (TVL - TE) / TE

onde TSMV representa a Taxa Social de Mais-Valia, TVL o Tempo de Vida Laboral médio, e TE o Tempo de Escolaridade médio — e assumindo, por hipótese, que a taxa de mais-valia do capital individual é idêntica à taxa social de mais-valia, então depreende-se uma contradição estrutural no interior do modo capitalista de produção.

Tal contradição se torna manifesta sobretudo no setor educacional. À medida que o tempo médio de escolaridade da classe trabalhadora se eleva — o que, do ponto de vista do capital social total, tende a diminuir a TSMV —, reduz-se a parcela do tempo de vida dos trabalhadores disponível para a produção direta de mais-valia. Em outros termos, a escolarização representa um intervalo de não-valorização do capital, uma suspensão temporária da produção de valor, retardando a entrada do trabalhador no circuito produtivo.

Dessa maneira, o capital individual investido na educação encontra-se diante de uma disjuntiva insolúvel: enquanto contribui para a formação da força de trabalho e para a reprodução ampliada das condições sociais de produção, ele, paradoxalmente, atua contra a própria lógica da valorização do capital, ao reduzir a taxa média de extração de mais-valia.

Essa dinâmica evidencia o caráter antagônico do capitalismo diante das necessidades sociais ampliadas. O investimento em educação, embora socialmente necessário, torna-se economicamente disfuncional sob a lógica do capital, ao afetar negativamente a lucratividade do capital individual que o realiza. Trata-se, pois, de uma contradição imanente, que não pode ser resolvida dentro dos marcos da racionalidade capitalista.

Assim, o paradoxo da educação no capitalismo revela um limite interno da forma-valor: quanto mais a sociedade exige qualificação e complexidade intelectual da força de trabalho, menos rentável se torna sua formação para o capital individual. Esta aporia aponta, finalmente, para a necessidade histórica de superação do próprio modo de produção capitalista.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

EDUCAÇÃO E MAIS-VALIA

 Se considerarmos a taxa de mais-valia do capital individual como idêntica à taxa social da mais-valia, somos levados a identificar uma contradição estrutural e insuperável no interior do modo capitalista de produção, especialmente para o capital individual investido no setor educacional. A razão dessa contradição reside no fato de que, quanto maior a escolaridade média da classe trabalhadora, menor tende a ser a taxa social de mais-valia. Isso ocorre porque o tempo de escolarização representa, em última instância, um período de não-valorização direta do capital, retardando o ingresso do trabalhador no ciclo da produção de mais-valia. 


Assim, o capital individual investido em educação encontra-se diante de um impasse: embora contribua para a formação da força de trabalho, sua função sistêmica reduz a exploração média do trabalho na sociedade como um todo, ao elevar o tempo necessário à sua formação. O capital educacional, portanto, opera num paradoxo: atua na preparação de uma força de trabalho qualificada, mas, ao mesmo tempo, mina a base ampliada da extração de mais-valia ao estender o tempo improdutivo (do ponto de vista do capital) que antecede o ciclo produtivo.

Essa contradição revela os limites internos da planificação capitalista baseada no lucro individual, pois os interesses do capital singular, mesmo quando alinhados à lógica sistêmica de reprodução do capital, podem colidir com a reprodução ampliada da mais-valia no plano social. Nesse sentido, a própria racionalidade do capital entra em dissonância consigo mesma, tornando a educação um campo de tensão entre a valorização individual e a desvalorização social relativa.








Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

EDUCAÇÃO

 A educação, enquanto instância social responsável pela formação da força de trabalho, constitui o espelho mais nítido das contradições internas do modo capitalista de produção. Seu estatuto híbrido — ao mesmo tempo público e privado — exprime a tensão entre duas lógicas inconciliáveis: a da acumulação de capital e a da reprodução social ampliada.

No capitalismo contemporâneo, parte substancial da formação da força de trabalho se dá em instituições estatais, financiadas por tributos e regidas por políticas públicas. Ao mesmo tempo, cresce a mercantilização do ensino por meio da educação privada, das parcerias público-privadas e da adoção de modelos empresariais de gestão no interior das próprias instituições públicas. Essa dualidade evidencia que a educação não se subsume integralmente à lógica da mais-valia, embora sofra pressões constantes para se alinhar a ela.

Diferente de outros setores da economia, a educação apresenta elevada resistência à extração direta de mais-valia. Isso se deve à natureza específica de seu produto: a força de trabalho intelectual. A tentativa de acelerar a produção educacional — seja reduzindo o tempo de formação, precarizando o trabalho docente ou padronizando currículos — compromete diretamente a qualidade do conhecimento produzido e assimilado. Nesse sentido, a celeridade, tão valorizada na lógica capitalista, choca-se com a exigência de tempo longo e intensivo necessário à formação crítica e qualificada.

Essa contradição revela um ponto fraco estrutural do capital: ele depende de uma mercadoria essencial — a força de trabalho — cuja produção exige formas sociais de temporalidade e investimento que não se coadunam com sua lógica de curto prazo e retorno rápido. A educação, enquanto processo histórico e formativo, exige lentidão, reflexão, cuidado e universalidade — características avessas à racionalidade instrumental da mercadoria.

Assim, a educação pública aparece como uma zona de fricção entre o presente capitalista e o devir socialista. Cada resistência à privatização, cada defesa da autonomia docente, cada projeto pedagógico crítico representa uma fissura no edifício da acumulação. A formação humana plena, ao invés de mero treinamento técnico, torna-se, nesse contexto, um ato político: negar a lógica do capital no interior da própria escola.

Portanto, compreender a educação como instância refratária à mais-valia é reconhecer seu papel estratégico na luta de classes. Não apenas como meio de ascensão individual, mas como campo de disputa estrutural, onde se decide a qualidade da força de trabalho, os sentidos da cidadania e as possibilidades históricas de emancipação. A escola, nesse sentido, não é apenas lugar de transmissão de saberes, mas arena concreta onde o futuro do trabalho e da vida se joga — entre o capital e a sua negação histórica.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

A ANTÍTESE DO CAPITAL

 No âmago da crítica da economia política marxista, a força de trabalho ocupa uma posição singular: ela é, simultaneamente, a mercadoria fundamental do modo de produção capitalista e sua negação imanente. Enquanto o capital se constitui como valor que se valoriza — isto é, como relação social de exploração do trabalho vivo — a força de trabalho representa a única mercadoria capaz de produzir mais valor do que aquele que consome. No entanto, diferentemente das demais mercadorias, sua produção não segue estritamente os moldes do capital: ela é, em larga medida, socializada.

O caráter antitético da força de trabalho em relação ao capital se revela de modo ainda mais contundente quando se observa sua forma de produção no estágio mais desenvolvido do capitalismo. Ao contrário das demais mercadorias, cuja produção ocorre diretamente sob o comando do capital privado, a força de trabalho — especialmente em suas dimensões intelectuais, técnicas e cognitivas — é majoritariamente formada no interior de instituições públicas: escolas, universidades, institutos técnicos e centros de formação profissional.

Esse traço revela uma contradição fundamental: o capital depende de uma mercadoria cuja produção ele não controla diretamente. Mais ainda, ele a produz por mediação de um Estado que, ao menos parcialmente, opera sob lógicas que não são puramente mercantis. A formação da força de trabalho, portanto, é socializada — sustentada por tributos, organizada por políticas públicas, e legitimada por valores sociais que escapam, em parte, à lógica da acumulação privada. Essa socialização parcial da produção da força de trabalho prefigura um horizonte não-capitalista no interior da própria estrutura capitalista.

Nessa perspectiva, a educação pública não deve ser compreendida apenas como política compensatória ou instrumento funcional ao capital, mas como fissura estrutural em sua lógica. Cada professor, cada escola pública, cada processo de formação crítica representa, potencialmente, uma prefiguração de relações sociais não-capitalistas — ou, em termos mais precisos, um devir socialista inscrito no interior do próprio capitalismo tardio.

Assim, afirmar que a força de trabalho é a antítese do capital não é apenas reconhecer sua função no processo de valorização, mas identificar sua origem social como índice de uma contradição histórica. A produção pública da força de trabalho indica a emergência de formas sociais que já não correspondem à lógica da equivalência mercantil. E, nesse sentido, a escola pública é mais do que um espaço de ensino: é um espaço de disputa histórica entre o capital e seu além possível — entre a reprodução do presente e a gestação do futuro socialista.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Base de um manual programático de transição socialista

 Este manual apresenta diretrizes práticas, técnicas e institucionais para a implementação de uma economia socialista descentralizada. Baseado na integração entre a Taxa Social de Mais-Valia (TSMV) e a Planificação Econômica Descentralizada, seu objetivo é oferecer uma plataforma viável para reorganizar a economia sob controle democrático e racionalidade social, a partir da infraestrutura já existente sob o capitalismo de Estado.

1. Objetivos Políticos: A transição socialista não é apenas um processo técnico de reorganização produtiva, mas um deslocamento radical do poder econômico. Visa superar a dissociação entre a produção socializada da força de trabalho (educação, saúde, formação) e sua apropriação privada pelo capital. O planejamento passa a ser orientado por critérios de justiça social, valor de uso e redução da alienação temporal — reduzindo a distância entre tempo de formação e tempo de trabalho. O sistema visa garantir o bem-estar coletivo com base na sustentabilidade, equidade e democracia participativa.

2. Estrutura Institucional: A base organizacional será composta por Conselhos Regionais e Setoriais de Planificação, com representação tripartite: trabalhadores, técnicos/professores/pesquisadores e usuários/consumidores dos bens e serviços. Esses conselhos terão autonomia deliberativa sobre os planos locais e acesso a dados da plataforma nacional. Uma instância nacional coordenará o equilíbrio macroeconômico, respeitando a diversidade regional e os princípios democráticos da base. O papel das universidades públicas será estratégico na produção de conhecimento, auditoria dos algoritmos e formação de quadros técnicos.

3. Sistema Informacional: O sistema digital será público, aberto e auditável. Cada unidade produtiva (fábricas, escolas, hospitais, cooperativas) e cada unidade de consumo (famílias, bairros, escolas, serviços) irá alimentar continuamente a plataforma com dados sobre demanda, produção, estoque, carência e capacidade instalada. Tais dados serão processados por algoritmos de otimização multicritério, priorizando necessidades sociais e correção de desigualdades, e não a maximização de lucro. O sistema deverá garantir transparência, anonimato quando necessário e interoperabilidade entre regiões.

4. Indicadores Estratégicos: A TSMV será o principal índice redistributivo, funcionando como métrica de correção estrutural. Regiões e setores com maior TSMV receberão investimentos proporcionais para reduzir desigualdades. Indicadores complementares incluirão tempo de espera nos serviços essenciais, indicadores de nutrição, mortalidade evitável, déficit habitacional, taxa de analfabetismo funcional e índice de bem-estar educacional. Esses dados serão cruzados para orientar os algoritmos decisórios do plano descentralizado.

5. Transição Tecnológica: A transição exige massivos investimentos públicos em redes de dados, capacitação digital cidadã, infraestrutura computacional pública, código aberto e soberania tecnológica. Parcerias com universidades, institutos federais e empresas públicas serão essenciais. Linhas de fomento à inovação popular, ciência aberta e tecnologias sociais devem ser incorporadas ao plano. É necessário evitar a privatização dos dados, garantir a propriedade coletiva da infraestrutura digital e impedir a captura tecnocrática do planejamento.

6. Avaliação e Ajustes: O sistema será dinâmico, retroalimentado por ciclos curtos de revisão. Os Conselhos Regionais e Setoriais avaliarão os impactos sociais trimestralmente, e um conselho nacional produzirá relatórios anuais públicos. A métrica central será a redução da TSMV média nacional e o aumento dos indicadores de bem-estar. A população poderá acessar plataformas simplificadas para acompanhar metas, sugerir prioridades e denunciar distorções. A avaliação será tanto técnica quanto política, integrando a ciência com a soberania popular.

Este manual afirma que a transformação econômica só será legítima se for profundamente política, fundada na ampliação real do poder popular. Trata-se de inverter a lógica do capital: de uma economia regida pela acumulação privada, passamos a uma sociedade regida pela inteligência coletiva, com justiça social e racionalidade histórica como fundamentos da nova planificação.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Taxa social de mais-valia e planificação econômica descentralizada

 A hipótese da taxa social de mais-valia propõe uma redefinição crítica da superexploração do trabalho na periferia do capitalismo, ao medir a diferença entre o tempo de vida laboral e o tempo de formação educacional (escolaridade média) da força de trabalho. Essa diferença é interpretada como um índice estrutural da apropriação capitalista de um trabalho cuja produção não é realizada diretamente no interior da lógica mercantil, mas sim mediada pelo Estado, por meio de políticas públicas de educação e saúde.

Por outro lado, a hipótese da planificação econômica descentralizada propõe uma superação do planejamento central burocrático por meio de novas tecnologias de comunicação e informação, especialmente aquelas baseadas em inteligência artificial e computação em rede. O princípio subjacente é que, diante da crítica hayekiana à impossibilidade de centralizar informações dispersas em sociedades complexas, apenas uma rede descentralizada, alimentada em tempo real por dados das unidades produtivas e consumidoras, seria capaz de realizar uma coordenação econômica eficiente em larga escala.

A integração entre essas duas hipóteses ocorre em dois níveis fundamentais. Em primeiro lugar, a planificação econômica descentralizada depende de uma mensuração social objetiva das condições de reprodução da força de trabalho. É nesse ponto que a taxa social de mais-valia cumpre um papel estruturante, ao permitir que o planejamento incorpore, com base empírica, a totalidade dos custos sociais de produção da força de trabalho, e não apenas seu preço de mercado.

Em segundo lugar, ao reconhecer que o Estado capitalista já realiza parte da planificação — ainda que a serviço da acumulação privada — no campo da educação, saúde e infraestrutura, a hipótese da taxa social de mais-valia demonstra que o processo de socialização do capital está em curso, ainda que de forma contraditória. A planificação descentralizada não surgiria do nada, mas se apoiaria sobre esse terreno já existente, reorganizando-o sob controle democrático e racional.

Dessa forma, a integração teórica proposta aponta para um modelo de transição socialista baseado na ampliação dos mecanismos estatais de produção da força de trabalho e sua conversão em mecanismos democráticos de planificação. A educação pública, por exemplo, passaria a ser vista não apenas como um serviço, mas como um setor produtivo estratégico, cuja eficiência e direção seriam parte integrante do sistema geral de planejamento descentralizado.

Concretamente, isso implica utilizar indicadores como a taxa social de mais-valia na programação econômica, orientando investimentos, definindo prioridades e corrigindo desigualdades estruturais. Um sistema de planificação orientado por essa métrica não apenas coordenaria a produção de bens e serviços, mas reorganizaria o próprio tempo social, reduzindo a alienação entre tempo de formação e tempo de trabalho, e fundando uma nova economia política da emancipação humana.

Assim, a integração entre essas duas hipóteses — uma de caráter crítico-diagnóstico (a taxa social de mais-valia) e outra de caráter programático-projetivo (a planificação descentralizada) — constitui um passo teórico relevante rumo a uma nova arquitetura do socialismo no século XXI.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

A PRODUÇÃO ESTATAL DA FORÇA DE TRABALHO

 A teoria marxista do valor, ao estabelecer o tempo de trabalho socialmente necessário como fundamento do valor das mercadorias, encontra uma aporia fundamental ao considerar a força de trabalho. Isso porque o valor dessa mercadoria específica é tradicionalmente definido não pelo tempo de trabalho exigido para sua produção, mas pelo valor dos meios de subsistência necessários para a sua reprodução. Tal definição parece tautológica: o valor da força de trabalho é definido pelo valor daquilo que é necessário para reproduzi-la. Isso introduz um circuito lógico fechado que desafia a coerência formal do sistema teórico.

Assim, a força de trabalho, embora subsumida formalmente ao capital no momento de sua venda como mercadoria no mercado de trabalho, é produzida fora da lógica capitalista direta de valorização. Isso introduz uma contradição sistêmica: o capital depende de uma mercadoria fundamental (a força de trabalho) cuja produção escapa à sua lógica imediata de acumulação. A hipótese da taxa social de mais-valia reconhece essa contradição, mensurando a superexploração da força de trabalho não apenas pelo tempo total de sua vida laboral, mas pela diferença entre esse tempo e o investimento social requerido para produzi-la, representado pela escolaridade média.

O trabalho assalariado, nesse contexto, permanece como antítese estrutural do capital. Contudo, ao reconhecer que o Estado capitalista socializa, de forma desigual, a produção da força de trabalho, essa hipótese permite uma abordagem materialista mais refinada da economia política. Ela articula o processo de reprodução social com os mecanismos de acumulação de capital, evidenciando como a infraestrutura pública (escolas, universidades, formação técnica) se torna um campo de disputa de classes, sendo, ao mesmo tempo, condição de possibilidade e limite interno da valorização capitalista.

Em suma, a hipótese da taxa social de mais-valia resgata a coerência interna da teoria do valor ao redefinir a determinação do valor da força de trabalho como um processo histórico e social, não tautológico, mas fundado em tempos objetivos de formação. Superando, assim, a aporia identificada por diversos intérpretes da obra de Marx, a hipótese permite reconectar a crítica da economia política às condições concretas da reprodução da vida social sob o capitalismo contemporâneo.

Nesse sentido, a força de trabalho emerge como uma mercadoria peculiar, cuja produção é delegada, em grande parte, ao Estado capitalista — e não ao capital privado — através de políticas públicas de educação, formação técnica e capacitação profissional. O Estado torna-se, assim, um agente estruturador da reprodução da força de trabalho, funcionando como mediador entre os imperativos da acumulação capitalista e as necessidades sociais mínimas para garantir a subsistência e qualificação da classe trabalhadora.

A implicação teórica dessa constatação é dupla: de um lado, evidencia-se que a produção da força de trabalho não se submete integralmente ao princípio da equivalência de troca que rege o mercado; de outro, revela-se que os custos de sua produção são socializados — isto é, distribuídos por toda a sociedade através da arrecadação tributária e da política pública — enquanto os frutos de sua exploração são apropriados privadamente pelos capitalistas. Essa dissociação entre a produção pública e a apropriação privada inaugura um novo eixo para a crítica da economia política, recolocando o papel do Estado como estruturante do regime de acumulação.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 22 de junho de 2025

AINDA SOBRE MARX E HILBERT

 Se considerarmos a teoria marxista do valor como um axioma — isto é, como um ponto de partida incontornável e não demonstrável dentro do próprio sistema teórico — o projeto de Karl Marx aproxima-se ainda mais do projeto formal de David Hilbert em sua tentativa de fundar a matemática moderna. Ambos os autores propuseram arquiteturas conceituais totalizantes que partem de princípios fundamentais: o valor-trabalho em Marx, os axiomas formais em Hilbert. Cada um, à sua maneira, buscava derivar a totalidade de um domínio — o social-econômico e o lógico-matemático — a partir desses fundamentos. Mas se esses projetos partem de axiomas, eles também se deparam com os limites lógicos e históricos desses mesmos fundamentos.


No caso de Marx, o axioma do valor — segundo o qual o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção — estrutura toda a crítica da economia política. É com base nele que Marx analisa a produção de mais-valia, a acumulação de capital, as crises e a própria forma social do trabalho. Entretanto, quando esse axioma é aplicado à força de trabalho, surge uma aporia interna: seu valor é definido não pelo tempo de trabalho diretamente, mas pelos meios de subsistência, introduzindo uma tautologia (valor definido pelo valor). Tal fissura sugere que o axioma não é logicamente autossuficiente para dar conta da totalidade que pretende explicar. Ainda mais, o problema da transformação dos valores em preços de produção desafia a universalidade dedutiva do sistema, expondo tensões entre forma lógica e realidade empírica.

Hilbert, por sua vez, tratava os axiomas da matemática como convenções iniciais — fundamentos simbólicos a partir dos quais toda a matemática deveria ser deduzida formalmente. Seu Programa visava garantir que os sistemas matemáticos fossem consistentes, completos e decidíveis. No entanto, os teoremas da incompletude de Kurt Gödel demonstraram que nenhum sistema formal suficientemente poderoso para abarcar a aritmética pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Ou seja, mesmo partindo de axiomas bem definidos, Hilbert esbarrou em contradições lógicas imanentes ao seu próprio projeto. O axioma, longe de sustentar toda a edificação, revelou sua incapacidade de abarcar a totalidade que se pretendia deduzir.

Assim, tanto Marx quanto Hilbert, partindo de axiomas fundantes, tentam construir sistemas totalizantes — e ambos colapsam diante de suas contradições internas. No caso de Marx, a contradição é histórica e dialética: o social escapa à apreensão formal integral. No caso de Hilbert, a contradição é lógica e estrutural: o formalismo não pode provar sua própria completude. Esses projetos mostram que a totalidade é um horizonte sempre tensionado, e que mesmo os sistemas mais rigorosos carregam, em sua raiz, limites que os impedem de se realizar plenamente. A noção de axioma, longe de garantir estabilidade, pode ser justamente o ponto onde a instabilidade irrompe.

Portanto, a comparação entre Marx e Hilbert revela o destino paradoxal dos grandes sistemas modernos: sua grandeza reside tanto em sua ambição totalizante quanto em sua capacidade de revelar os próprios limites da razão formal ou crítica. Ambos os autores, cada um em seu campo, iluminam o dilema fundamental da modernidade: a busca por fundamento absoluto, confrontada com a impossibilidade interna da totalização definitiva.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

MARX E HILBERT

 Ao longo do século XIX e início do XX, dois dos mais influentes projetos intelectuais de fundamentação totalizante foram formulados por Karl Marx, no campo da crítica da economia política, e David Hilbert, no campo da matemática. Ambos os pensadores buscaram, por vias distintas, construir sistemas teóricos abrangentes, coerentes e autoconsistentes, capazes de explicar — ou formalizar — a totalidade de seu respectivo objeto de estudo. Contudo, ambos os projetos enfrentaram contradições internas que desafiaram suas ambições originais.


O projeto de Marx, sobretudo a partir de sua obra "O Capital", visava desvelar as leis estruturais do modo de produção capitalista. Sua pretensão era fundar uma ciência da história e da sociedade baseada em uma lógica interna — a do valor — regida pela categoria do trabalho socialmente necessário. A análise marxiana parte do abstrato (mercadoria, valor, dinheiro) e avança para o concreto (mais-valia, acumulação, crise). No entanto, esse edifício conceitual enfrenta aporias internas, notadamente quando define o valor da força de trabalho não diretamente pelo tempo de trabalho necessário à sua produção, mas pelos meios de subsistência historicamente determinados — o que introduz uma circularidade e uma possível tautologia que abalam a consistência do sistema, como alguns leitores apontaram. Além disso, o problema da transformação dos valores em preços de produção gerou intenso debate posterior, desafiando a completude da teoria.

Por sua vez, Hilbert buscava fundar toda a matemática sobre uma base formal e finita. Seu projeto, conhecido como Programa de Hilbert, pretendia demonstrar que os sistemas formais da matemática são completos, consistentes e decidíveis usando apenas métodos finitos. Para Hilbert, a matemática deveria ser um jogo simbólico regido por regras claras, livre de contradições e plenamente verificável. No entanto, esse programa foi abalado pelos teoremas da incompletude de Gödel (1931), que demonstraram que qualquer sistema formal suficientemente poderoso para conter a aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Assim, o projeto hilbertiano foi confrontado com os próprios limites internos da formalização matemática.

Tanto em Marx quanto em Hilbert há, portanto, uma tensão constitutiva entre o desejo de totalidade sistemática e as fissuras internas que emergem do próprio solo conceitual. Em Marx, o real histórico e social escapa ao controle total do sistema lógico-dedutivo, abrindo espaço para contradições dialéticas que não se resolvem formalmente. Em Hilbert, o ideal de completude formal é minado por barreiras lógicas que emergem da própria estrutura do raciocínio matemático. Ambos revelam, a seu modo, o drama da modernidade: o esforço de racionalização totalizante confrontado por limites imanentes, sejam históricos ou lógicos.

Essa análise conjunta permite compreender como os projetos mais ambiciosos do pensamento moderno carregam em si mesmos as sementes de suas rupturas. Longe de invalidá-los, tais contradições internas tornam-nos ainda mais fecundos para uma crítica filosófica profunda — ao evidenciar que a totalidade, seja social ou formal, é sempre um horizonte tensionado e nunca plenamente realizável.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.