É cediço que a tradição do arcabouço teórico legado por Karl Marx, de matriz dialético-materialista, compreende a intelecção do devir temporal através das contradições histórico-concretas, que se exibem de maneira cristalina nas lutas de classes: uma tradição teórica que já guarda quase dois séculos de existência.
Consoante tal tradição, a superestrutura jurídico-política da sociedade civil burguesa finca raízes nas contradições das relações de produção da infraestrutura econômica, de que resulta o caráter ideológico de tal superestrutura.
Ora, a contradição, portanto, é uma velha conhecida do materialismo histórico, e pode-se suscitar que no âmago da própria superestrutura ideológica da sociedade civil burguesa exibem-se ínsitas antinomias que descortinam tal jaez ideológico.
O ordenamento jurídico, verbi gratia, encerra elemento nitidamente utópico, irrealizável, mercê do contínuo afrontamento entre ele e a prolixa casuística jurídica, eis que seu caráter abstrato exibe-se pouco afeto à realidade concreta, de que resulta esta prolixidade. Os juristas conhecem perfeitamente quão ingrata é a tarefa de subsumir o fato concreto na norma jurídica, quão caudalosa, verborrágica e sinuosa exibe-se a jurisprudência na tentativa de conferir efetividade ao Direito positivo.
No âmbito político, por seu turno, observa-se que a democracia encerra elemento nitidamente aporético, mercê da necessidade de abroquelar qualquer programa partidário, inclusive os programas antidemocráticos: uma aporia inerente ao princípio democrático que se exibe cristalina.
Na própria orbe econômica as antinomias medram, bastando destacar o elemento aporético da ideologia liberal: ora, a livre concorrência econômica pressupõe um guardião estatal das regras do jogo, como o CADE no Brasil, por exemplo, restando patente que o Estado não pode ser suprimido no próprio âmago da ideologia liberal.
E assim por diante...
Logo, verifica-se que as antinomias não estão apenas nas contradições entre as relações de produção e as forças produtivas ou nas lutas de classes, elas radicam outrossim ínsitas na própria superestrutura ideológica da sociedade civil burguesa.
(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador e membro do NEC-PT)