Neste
exato momento, estou na posse de um opúsculo multifacético que guarda o condão, bem
escasso na atualidade, consistente em movimentar os neurônios do
respectivo leitor, e cujo título é “As guerras mundiais: ensaio de
interpretação histórica” (Marília: Lutas Anticapital, 2020) do
historiador Lincoln Secco, professor do departamento de história da
Universidade de São Paulo.
Cuida-se de experimento radical, no sentido marxista de colimar a raiz do respectivo objeto de investigação, a saber, as duas guerras mundiais que sacodiram a primeira metade do século passado, e nesse aspecto Secco filia-se à tradição metodológica cartesiana da dúvida sistemática (a qual foi adotada também por seus inspiradores teóricos Karl Marx e Carl von Clausewitz), o que pode ser facilmente constatado nas inúmeras e variegadas questões controvertidas suscitadas pela apreciação da obra ora em comento.
Nesse diapasão, permitam uma digressão um pouco mais demorada de minha parte no que pertine à questão metodológica: tirante o interessante concurso de uma contribuição oral de seu próprio sogro Hans Karl Reisewitz, o professor Lincoln Secco (famoso pelo esmero no trato com a documentação histórica em obras como “História do PT”, “A batalha dos livros” e “A revolução dos cravos”) não recorre ao manuseio das assim denominadas “fontes primárias”, isto é, aos documentos produzidos na própria época estudada, mas adstringe-se à avaliação da historiografia já disponível sobre o assunto, o que, aos olhos de muitos, já configuraria um certo defeito, ainda que pequeno, do opúsculo em testilha. Não vejo desta maneira, pelas razões a seguir:
Ora,
a historiografia disponível não deve ser desprezada como fonte do
trabalho do historiador, sob pena de se obliterar o avanço científico
que ela representa (o “estado da arte”, por assim dizer), como se todo o
trabalho historiográfico fosse inócuo. Isaac Newton já admoestava, numa
conhecida locução, que enxergou mais longe pois apoiara-se sobre ombros
de gigantes, e isto vale também para a história enquanto disciplina
científica, como para as demais ciências humanas.
E o professor Secco desincumbe-se airosamente da tarefa de exercer a crítica interna e externa de suas fontes historiográficas, mostrando as qualidades e os limites de cada autor pesquisado, atitude que está em plena conformidade com os ditames científicos.
Demais disso, colho do ensejo para, sob inspiração da obra ora comentada, esgrimir uma singela crítica do empirismo exacerbado, tão hodiernamente em voga: ora, tais fontes primárias, ou seja, a documentação coetânea da época sob escrutínio, não guarda o apanágio de dizer a verdade acabada sobre tal época, porquanto não se deve considerar como válido o que uma era diz de si própria, assim como não se pode tomar por definitivo o que um indivíduo diz de si próprio, até mesmo porque, como advertia o Mouro de Trier, “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”!
Por isso, antolha-se-nos muito pertinente e oportuna esta revisão crítica da historiografia sobre as guerras mundiais encetada pelo professor Secco, passados mais de 75 anos do encerramento dos acontecimentos investigados.
Mas o conteúdo da obra, mais propriamente dito, também se exibe uma agradável e edificante surpresa, senão vejamos.
Diante da multiplicidade de temas abordados, faz-se mister eleger alguns poucos tópicos a servirem de objeto de nossas considerações.
Imperioso
destacar, assim, o tratamento inovador que o professor dispensa ao
decisivo papel desempenhado pela União Soviética na vitória dos Aliados
sobre o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, máxime quanto à corajosa e
exemplar liderança de Stálin, que foi, sem rebuços, axial para
pavimentar o glorioso caminho das forças armadas socialistas rumo ao
estrondoso sucesso contra os nazifascistas. Sem embargo, o moral
superior das tropas soviéticas resultava de uma combinação de fatores,
tais como a ausência de discriminação de classe, de raça e de gênero em
seu cerne, derivados de um Estado comprometido com a construção do
socialismo dentro de suas fronteiras, enquanto as tropas nazifascistas
arrostavam graves problemas de moral radicados em seu racismo, machismo e
jaez classista burguês.
Demais
disso, o professor Secco contribui eficazmente para fulminar certo
determinismo economicista de matriz supostamente marxista, ao temperar
habilmente tal tendência economicista mediante o recurso ao arcabouço
teórico elaborado pelo grande militar prussiano Carl von Clausewitz: nesse particular, Secco demonstra que a aliança das potências ocidentais com a URSS contra o Eixo nazifascista deveu-se a questões de cariz político-estatal,
que se sobrepuseram ao problema econômico. Sim, pois ao contrário da
Alemanha nazista e seus comparsas, a URSS não ostentava pretensões de
expansão territorial, engajada que estava na edificação do socialismo em
seu país. Destarte, conquanto o sistema soviético se exibisse
teoricamente hostil, no plano econômico, aos países capitalistas
Aliados, o momento histórico e político aproximou tais nações à URSS no
contexto da segunda guerra mundial: aqui Clausewitz suplanta Marx na elucidação do acontecimento histórico.
Outro insight
teórico do professor Secco, cabe relevar, consiste na associação que
empreende, lastreado no capítulo sexto inédito de O Capital de Marx,
entre, de um lado, a subsunção meramente formal do trabalho no capital e
a guerra dos Trinta Anos do século XVII; e, de outro lado, entre a
subsunção real do trabalho no capital e as guerras mundiais do século
passado, demonstrando que em ambos os casos a violência exibe-se
inerente às relações de produção capitalistas, antes ou depois do
advento da maquinaria e grande indústria.
Cuida-se, enfim, de um pequeno diamante
historiográfico cuidadosamente lapidado este que resolvi comentar, e
acredito piamente que sua leitura só pode beneficiar aqueles que
decidirem desbravar suas poucas mas densas páginas.
(por LUIS FERNANDO FRANCO, historiador bacharel e licenciado em história pela USP e procurador federal da Advocacia Geral da União)