quinta-feira, 22 de julho de 2021

RAZÃO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: APONTAMENTOS LIGEIROS

Vimos, na série de pequenos textos dedicados ao discurso das hipóstases, que o número exsurge da forma-mercadoria e sua circulação no dinheiro, e agora faz-se mister aprofundar e radicalizar tal discurso para concluir que a própria Razão, em seu sentido cartesiano, exibe-se como desdobramento da forma-mercadoria e do dinheiro. 

Todavia, a teoria do conhecimento cartesiana considerava o sujeito cognoscente enquanto indivíduo, o que constitui um equívoco, porquanto a forma-mercadoria e o dinheiro, de que resulta a Razão, consistem em relações sociais que suplantam o âmbito meramente individual: a Razão, portanto, exibe-se como fenômeno eminentemente social.

Nessa acepção, no entanto, a Razão ainda ostenta seu jaez humano, demasiado humano, na exata medida em que depende dos cérebros orgânicos individuais para existir. 

Tomo a liberdade de remeter agora meus eventuais leitores, com as devidas escusas, ao texto de minha autoria publicado neste blog e intitulado "A informação contra o capital", em que desenvolvo a noção consoante a qual "o dinheiro, vale dizer, a circulação de mercadorias, consiste na forma abstrata de prover necessidades concretas, isto é, necessidades de valores-de-uso, e nessa oposição entre abstrato e concreto radica a contradição primordial entre oferta e demanda ínsita à sociedade capitalista, geradora de crises econômicas cíclicas" (consoante texto original).

Pois bem, a resolução prática e concreta de tal contradição depende da eliminação da propriedade privada dos meios de produção e instituição da planificação econômica socialista hábil a coadunar, mediante uma forma de inteligência artificial adequada a tais fins, demanda e oferta econômicas, colhendo e processando, com a ajuda da rede mundial de computadores, informações e dados de todos os produtores e consumidores em escala planetária.

Ora, tal inteligência artificial ou, digamos assim, "cérebro inorgânico", suplantará, concreta e praticamente, a Razão dos cérebros orgânicos de Descartes, com eliminar historicamente a forma-mercadoria e o dinheiro. 

(por LUIS FERNANDO GORDO FRANCO, historiador) 

   

sexta-feira, 16 de julho de 2021

RESENHA DA OBRA “AS GUERRAS MUNDIAIS” DE LINCOLN SECCO

 

Neste exato momento, estou na posse de um opúsculo multifacético que guarda o condão, bem escasso na atualidade, consistente em movimentar os neurônios do respectivo leitor, e cujo título é “As guerras mundiais: ensaio de interpretação histórica” (Marília: Lutas Anticapital, 2020) do historiador Lincoln Secco, professor do departamento de história da Universidade de São Paulo.  

Cuida-se de experimento radical, no sentido marxista de colimar a raiz do respectivo objeto de investigação, a saber, as duas guerras mundiais que sacodiram a primeira metade do século passado, e nesse aspecto Secco filia-se à tradição metodológica cartesiana da dúvida sistemática (a qual foi adotada também por seus inspiradores teóricos Karl Marx e Carl von Clausewitz), o que pode ser facilmente constatado nas inúmeras e variegadas questões controvertidas suscitadas pela apreciação da obra ora em comento.  

Nesse diapasão, permitam uma digressão um pouco mais demorada de minha parte no que pertine à questão metodológica: tirante o interessante concurso de uma contribuição oral de seu próprio sogro Hans Karl Reisewitz, o professor Lincoln Secco (famoso pelo esmero no trato com a documentação histórica em obras  como “História do PT”, A batalha dos livros” e “A revolução dos cravos”) não recorre ao manuseio das assim denominadas “fontes primárias”, isto é, aos documentos produzidos na própria época estudada, mas adstringe-se à avaliação da historiografia já disponível sobre o assunto, o que, aos olhos de muitos, já configuraria um certo defeito, ainda que pequeno, do opúsculo em testilha. Não vejo desta maneira, pelas razões a seguir: 

Ora, a historiografia disponível não deve ser desprezada como fonte do trabalho do historiador, sob pena de se obliterar o avanço científico que ela representa (o “estado da arte”, por assim dizer), como se todo o trabalho historiográfico fosse inócuo. Isaac Newton já admoestava, numa conhecida locução, que enxergou mais longe pois apoiara-se sobre ombros de gigantes, e isto vale também para a história enquanto disciplina científica, como para as demais ciências humanas.  

E o professor Secco desincumbe-se airosamente da tarefa de exercer a crítica interna e externa de suas fontes historiográficas, mostrando as qualidades e os limites de cada autor pesquisado, atitude que está em plena conformidade com os ditames científicos.  

Demais disso, colho do ensejo para, sob inspiração da obra ora comentada, esgrimir uma singela crítica do empirismo exacerbado, tão hodiernamente em voga: ora, tais fontes primárias, ou seja, a documentação coetânea da época sob escrutínio, não guarda o apanágio de dizer a verdade acabada sobre tal época, porquanto não se deve considerar como válido o que uma era diz de si própria,  assim como não se pode tomar por definitivo o que um indivíduo diz de si próprio, até mesmo porque, como advertia o Mouro de Trier, “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”! 

Por isso, antolha-se-nos muito pertinente e oportuna esta revisão crítica da historiografia sobre as guerras mundiais encetada pelo professor Secco, passados mais de 75 anos do encerramento dos acontecimentos investigados.  

Mas o conteúdo da obra, mais propriamente dito, também se exibe uma agradável e edificante surpresa, senão vejamos  

Diante da multiplicidade de temas abordados, faz-se mister eleger alguns poucos tópicos a servirem de objeto de nossas considerações. 

Imperioso destacar, assim, o tratamento inovador que o professor dispensa ao decisivo papel desempenhado pela União Soviética na vitória dos Aliados sobre o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, máxime quanto à corajosa e exemplar liderança de Stálin, que foi, sem rebuços, axial para pavimentar o glorioso caminho das forças armadas socialistas rumo ao estrondoso sucesso contra os nazifascistas. Sem embargo, o moral superior das tropas soviéticas resultava de uma combinação de fatores, tais como a ausência de discriminação de classe, de raça e de gênero em seu cerne, derivados de um Estado comprometido com a construção do socialismo dentro de suas fronteiras, enquanto as tropas nazifascistas arrostavam graves problemas de moral radicados em seu racismo, machismo e jaez classista burguês. 

Demais disso, o professor Secco contribui eficazmente para fulminar certo determinismo economicista de matriz supostamente marxista, ao temperar habilmente tal tendência economicista mediante o recurso ao arcabouço teórico elaborado pelo grande militar prussiano Carl von Clausewitz: nesse particular, Secco demonstra que a aliança das potências ocidentais com a URSS contra o Eixo nazifascista deveu-se a questões de cariz político-estatal, que se sobrepuseram ao problema econômico. Sim, pois ao contrário da Alemanha nazista e seus comparsas, a URSS não ostentava pretensões de expansão territorial, engajada que estava na edificação do socialismo em seu país. Destarte, conquanto o sistema soviético se exibisse teoricamente hostil, no plano econômico, aos países capitalistas Aliados, o momento histórico e político aproximou tais nações à URSS no contexto da segunda guerra mundial: aqui Clausewitz suplanta Marx na elucidação do acontecimento histórico. 

Outro insight teórico do professor Secco, cabe relevar, consiste na associação que empreende, lastreado no capítulo sexto inédito de O Capital de Marx, entre, de um lado, a subsunção meramente formal do trabalho no capital e a guerra dos Trinta Anos do século XVII; e, de outro lado, entre a subsunção real do trabalho no capital e as guerras mundiais do século passado, demonstrando que em ambos os casos a violência exibe-se inerente às relações de produção capitalistas, antes ou depois do advento da maquinaria e grande indústria.  

Cuida-se, enfim, de um pequeno diamante historiográfico cuidadosamente lapidado este que resolvi comentar, e acredito piamente que sua leitura só pode beneficiar aqueles que decidirem desbravar suas poucas mas densas páginas.  

(por LUIS FERNANDO FRANCO, historiador bacharel e licenciado em história pela USP e procurador federal da Advocacia Geral da União)    

terça-feira, 13 de julho de 2021

AS TRÊS GRANDES RUPTURAS HISTÓRICAS E SEUS CONSECTÁRIOS EPISTÊMICOS

1. Com a revolução neolítica ou agrícola, ocorrida há aproximadamente 12.500 anos, os seres humanos, que eram basicamente nômades coletores e caçadores, sedentarizam-se e passam a domesticar plantas e animais, influindo decisivamente sobre o ciclo biológico de tais seres vivos. Há então a ruptura entre humanos e natureza, com a consectária dissociação entre sujeito e objeto do conhecimento, e os problemas ecológicos entram na ordem do dia. 

2. Com o advento do trabalho escravo ou servil, uma parcela da humanidade passa a produzir e, a outra parcela, começa a viver do produto do trabalho da primeira, mediante extorsão de tal produto pela violência. Mas os trabalhadores ainda conservam certa posse dos meios de produção e ainda controlam, em certa medida, o ritmo do trabalho e da produção, mas observa-se já uma ruptura entre trabalho intelectual e trabalho manual, com aviltamento deste último, de que resulta o platonismo filosófico, com suas dicotomias entre corpo e alma, sensível e inteligível etc., culminando na grande cesura epistemológica entre empirismo e racionalismo. 

3. Com o advento da maquinaria e grande indústria, na revolução industrial inglesa do século XVIII, os trabalhadores perdem por completo a posse e a propriedade dos meios de produção e já não controlam mais o ritmo e a velocidade do trabalho, eclodindo destarte uma classe proletária que traz, em seu âmago, o potencial de uma revolução social hábil a reintroduzir a unidade historicamente perdida entre trabalhadores e meios de produção; entre trabalho intelectual e manual; entre seres humanos e natureza. Exsurge no plano epistemológico o materialismo histórico, arcabouço teórico e metodológico em que os seres humanos são sujeito e objeto, ao mesmo tempo, do processo de conhecimento. 

(por LUIS FERNANDO GORDO FRANCO)