Do
bolso-fascismo ao Genocídio Brasileiro
Lincoln
Secco
(Professor
de História Contemporânea na USP)
O
curso “Fascismo ontem e hoje: entender para derrotar”, oferecido
pela Diretoria de Formação da Fundação Perseu Abramo, elenca
diversas experiências históricas das quais podemos destacar três
elementos constitutivos do fenômeno fascista.
Em
primeiro lugar, não se pode pronunciar a palavra fascismo e
esconder o termo capitalismo. Do ponto de vista conjuntural,
os fasci di combattimento foram produzidos pela frustração
de diversas camadas sociais, particularmente setores médios, com os
resultados da Primeira Guerra Mundial. Mas estruturalmente, o
fascismo corresponde à fase imperialista do capital. Em alguns
países imperialistas tardios, derrotados ou semi periféricos houve
uma ligação das empresas monopolistas com o Estado para reprimir a
classe trabalhadora e expandir seus mercados exteriores por meios
militares.
Rosa
Luxemburgo demonstrou em seu livro de 1913 A Acumulação de
Capital como o imperialismo necessita de expansão territorial,
de um Estado militarista e de um regime cada vez mais autoritário.
Rosa escreveu antes do surgimento do fascismo, mas na obra A Crise
da Social Democracia, escrita na prisão em 1915, mostrou como o
desenvolvimento retardatário rápido e cada vez mais autoritário da
Alemanha e sua disputa por mercados e controle de rotas marítimas e
ferroviárias tornaram o país propenso a uma política belicista e
a uma disposição para a guerra.
A
segunda característica principal do fascismo foi o irracionalismo.
Ele exacerbou um elemento constitutivo do capitalismo, já que o
processo de valorização do capital, como Marx escreveu, não visa a
satisfação de necessidades e nem a produção de valores de uso. A
racionalidade microeconômica capitalista se expressa no agregado
como irracionalidade social se não for “corrigida”
periodicamente por uma política anti cíclica do Estado.
Um
exemplo cabal disso foi a explosão das bombas de Hiroshima e
Nagazaki. Nem mesmo considerações puramente militares justificavam
seu uso contra um país virtualmente derrotado. Ao ingressar na era
atômica, EUA e URSS adquiriram o poder de exterminar a espécie
humana. Isso é um produto da racionalidade científica, mas não é
preciso dizer que resulta numa monstruosidade.
Ora,
o fascismo é essa monstruosidade como expressão política. Ele é
uma técnica racional e oportunista de mobilização da
irracionalidade de vastos segmentos sociais em momentos de crise. A
distopia nazista serviu para a acumulação de capital na Alemanha e
em áreas conquistadas por ela. A burguesia francesa associada à
alemã continuou lucrando durante a ocupação, por exemplo. As
compras militares criaram demanda para uma ampla cadeia produtiva
alemã. Países neutros, como a Suécia, exportavam minério de
ferro. Mas no limite, a irracionalidade se impôs e a tentativa de
realização do Reich de mil anos levou a Alemanha ao desastre.
Por
fim, todas as modalidades de fascismo se utilizaram do discurso
anticomunista. Como não se tratava de uma negação determinada do
comunismo, qualquer oposição ao fascismo, fosse católica, liberal
ou até mesmo uma dissidência interna poderiam ser taxadas de
comunista.
Brasil
Há
uma persistência da extrema direita no Brasil desde os anos 1920,
quando os primeiros focos fascistas surgiram, particularmente nas
comunidades italiana e alemã e entre policiais e oficiais militares.
O integralismo mobilizou centenas de milhares de adeptos e seu líder
Plinio Salgado uniu uma revolução estética a favor da tradição,
a tomada do poder em defesa da família e da propriedade; e mobilizou
o discurso anticomunista, atraindo muitos oficiais militares. Ele não
advogou apenas táticas ilegais, mas principalmente as eleições.
Por isso, depois do Estado Novo criou o Partido da Representação
Popular e obteve quase 9% dos votos nas eleições presidenciais de
1955. Elegeu-se depois deputado federal pelo PRP e, após 1964, pela
Arena. Foi um dos líderes da Marcha da família com Deus pela pela
liberdade.
O
fim da ditadura deixou a extrema direita nas sombras. Os
ideólogos militares se voltaram para novas teorias que a esquerda
brasileira debatia no final dos anos 1970, entre elas a de Antonio
Gramsci. A
subversão passou
a ser identificada na estratégia
indireta gramsciana operada por
partidos, escolas e
pela Igreja. Ao
lado dessa preocupação com as ideias de Gramsci, vários
organismos de difusão do ideário pró mercado foram fundados como
o Instituto Liberal em 1983 e a Sociedade Tocqueville em 1986.
No
século XXI outros surgiram e se apoiaram em recursos internacionais.
Bolsofascismo
Um
espaço residual da extrema direita não deixou de existir na chamada
nova república (1985-2016). Eneas
Carneiro, um militar cardiologista da direita nacionalista teve 7%
dos votos em 1994. Todavia, a
Esquerda jamais enfrentara um candidato que ameaçava
exterminá-la. Muito menos confrontara um oponente que dispunha de um
ativismo social como o bolsonarismo. Desde a redemocratização,
jamais um movimento de massas autoconfiante se opusera à esquerda.
A
ideologia de Bolsonaro era um conjunto de ideias bizarras apoiado em
youtubers sem reconhecimento acadêmico, mas por isso mesmo hauria
sua força numa postura anti elitista. Não havia uma visão coerente
do mundo e sequer um programa de governo, por isso o astrólogo Olavo
de Carvalho foi uma peça importante na construção de uma técnica
discursiva para o bolsonarismo que permitiu manipular racionalmente
os sentimentos irracionais dos seus adeptos. Ele
empoderou o
“homem médio” e o alimentou com teorias conspiratórias,
preconceitos morais e dogmas religiosos. Apesar de
contraditórias, suas mensagens atendiam necessidades momentâneas
dos seus seguidores.
Além
da irracionalidade, Bolsonaro apoiou o corporativismo militar. Não
só garantiu privilégios corporativos como preencheu milhares de
cargos de confiança com oficiais das Forças Armadas. Em junho de
2020 havia 6.157
militares no governo federal
(Valor
econômico,
17/7/2020) e eles chefiavam 36% dos ministérios.
O
governo sobreviveu a todas as falsas profecias de sua queda iminente.
No ano de 2020, em meio à tragédia da pandemia, houve uma ascensão
da popularidade do presidente, apesar dele duvidar da letalidade do
vírus. Isso
foi possível, entre outras coisas, porque ele
questionou
o
limite constitucional dos gastos públicos e
concedeu auxílio emergencial aos trabalhadores durante a quarentena.
Ainda
assim, isso não o levou a romper com
a ortodoxia neoliberal e ele
continuou
combatendo
os direitos dos trabalhadores, exibindo
seu verdadeiro papel como ultima
ratio
do capital.
A
adesão de Bolsonaro a este ou àquele programa econômico nunca foi
questão de princípio, como observamos por sua biografia política;
ela está subordinada a um propósito de desmontagem do que ele
acredita serem os aparelhos de Estado infiltrados pelo “marxismo
cultural”.
Por
um Tribunal de Manaus
Como
vimos, os elementos fascistas do bolsonarismo são evidentes: a
manipulação da irracionalidade, a defesa do grande capital, o
anticomunismo (antipetismo, em nossa época). Poderíamos acrescentar
muitos outros, como sua estratégia de estressar a legalidade e
usá-la para implantar uma ditadura mediante a cumplicidade de
políticos liberais e empresários. Mas poucos fascismos levaram a
uma prática sistemática um dos seus conteúdos mais horrendos: o
culto da morte, típico do franquismo na guerra
civil espanhola.
Diante
da
depressão econômica e
da pandemia, Bolsonaro
finalmente revelou sua face mais teratológica. Ele já taxava
quilombolas e indígenas de
pessoas
descartáveis. Com a destruição da previdência pública para as
futuras gerações, desenhou um programa de extermínio gradual de
idosos. Como
o nazismo,
adotou em
2020 uma
estratégia consciente de eliminação física de parte
da população “desnecessária”, em primeiro lugar os idosos,
negros e pobres, as maiores vítimas iniciais do Covid 19.
O
descontrole da epidemia fez com que toda a população se tornasse um
alvo
do bolsonarismo.
O Mapeamento das Normas Jurídicas
de Resposta à Covid-19 feito pelo Centro de Pesquisas e Estudos de
Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP revelou a
existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus
no Brasil (El País, 21/01/2021). Isso já é suficiente para
embasar o impedimento do presidente da República e a cassação dos
seus direitos políticos para que não possa mais ser candidato. No
entanto, é insuficiente para punir os crimes contra a humanidade
perpetrados deliberadamente por uma política de Estado.
A
superação do fascismo no Brasil não se dará apenas com uma
vitória eleitoral. É preciso investigar os crimes bolsonaristas e
ir além da Comissão Nacional da Verdade (2011-2014). Cabe criar um
tribunal ad hoc para julgar e punir Bolsonaro, Mourão,
Pazuello (um suposto especialista em logística), a cúpula do
Exército brasileiro e todos os militares e civis no poder que
concorreram para a tragédia humanitária a que assistimos.
A
equipe militar e neoliberal do governo, por negligência, crença
ideológica e incompetência, recusou investimentos na pesquisa,
produção e mesmo contratos de importação futura de vacinas quando
o país ainda tinha uma janela de oportunidade para evitar muitas
mortes.
Esse
tribunal ad
hoc
poderia
ser de natureza internacional
como o de Nuremberg ou as cortes especiais do Timor Leste e
de
Ruanda.
De
toda maneira, cabe
ao próprio Estado brasileiro produzir algum tipo de justiça de
transição que os nossos juristas, profissionais da saúde,
historiadores e muitos outros certamente saberão
detalhar e
levar adiante. Seja isso
feito em
Manaus, o
laboratório da estratégia genocida
bolsonarista,
ou em qualquer outro lugar.
Lincoln
Secco, historiador, membro do Gmarx USP e autor do livro História
do PT.