sexta-feira, 28 de maio de 2021

Por um Tribunal de Manaus

 

Do bolso-fascismo ao Genocídio Brasileiro

Lincoln Secco

(Professor de História Contemporânea na USP)



O curso “Fascismo ontem e hoje: entender para derrotar”, oferecido pela Diretoria de Formação da Fundação Perseu Abramo, elenca diversas experiências históricas das quais podemos destacar três elementos constitutivos do fenômeno fascista.

Em primeiro lugar, não se pode pronunciar a palavra fascismo e esconder o termo capitalismo. Do ponto de vista conjuntural, os fasci di combattimento foram produzidos pela frustração de diversas camadas sociais, particularmente setores médios, com os resultados da Primeira Guerra Mundial. Mas estruturalmente, o fascismo corresponde à fase imperialista do capital. Em alguns países imperialistas tardios, derrotados ou semi periféricos houve uma ligação das empresas monopolistas com o Estado para reprimir a classe trabalhadora e expandir seus mercados exteriores por meios militares.

Rosa Luxemburgo demonstrou em seu livro de 1913 A Acumulação de Capital como o imperialismo necessita de expansão territorial, de um Estado militarista e de um regime cada vez mais autoritário. Rosa escreveu antes do surgimento do fascismo, mas na obra A Crise da Social Democracia, escrita na prisão em 1915, mostrou como o desenvolvimento retardatário rápido e cada vez mais autoritário da Alemanha e sua disputa por mercados e controle de rotas marítimas e ferroviárias tornaram o país propenso a uma política belicista e a uma disposição para a guerra.

A segunda característica principal do fascismo foi o irracionalismo. Ele exacerbou um elemento constitutivo do capitalismo, já que o processo de valorização do capital, como Marx escreveu, não visa a satisfação de necessidades e nem a produção de valores de uso. A racionalidade microeconômica capitalista se expressa no agregado como irracionalidade social se não for “corrigida” periodicamente por uma política anti cíclica do Estado.

Um exemplo cabal disso foi a explosão das bombas de Hiroshima e Nagazaki. Nem mesmo considerações puramente militares justificavam seu uso contra um país virtualmente derrotado. Ao ingressar na era atômica, EUA e URSS adquiriram o poder de exterminar a espécie humana. Isso é um produto da racionalidade científica, mas não é preciso dizer que resulta numa monstruosidade.

Ora, o fascismo é essa monstruosidade como expressão política. Ele é uma técnica racional e oportunista de mobilização da irracionalidade de vastos segmentos sociais em momentos de crise. A distopia nazista serviu para a acumulação de capital na Alemanha e em áreas conquistadas por ela. A burguesia francesa associada à alemã continuou lucrando durante a ocupação, por exemplo. As compras militares criaram demanda para uma ampla cadeia produtiva alemã. Países neutros, como a Suécia, exportavam minério de ferro. Mas no limite, a irracionalidade se impôs e a tentativa de realização do Reich de mil anos levou a Alemanha ao desastre.

Por fim, todas as modalidades de fascismo se utilizaram do discurso anticomunista. Como não se tratava de uma negação determinada do comunismo, qualquer oposição ao fascismo, fosse católica, liberal ou até mesmo uma dissidência interna poderiam ser taxadas de comunista.


Brasil

Há uma persistência da extrema direita no Brasil desde os anos 1920, quando os primeiros focos fascistas surgiram, particularmente nas comunidades italiana e alemã e entre policiais e oficiais militares. O integralismo mobilizou centenas de milhares de adeptos e seu líder Plinio Salgado uniu uma revolução estética a favor da tradição, a tomada do poder em defesa da família e da propriedade; e mobilizou o discurso anticomunista, atraindo muitos oficiais militares. Ele não advogou apenas táticas ilegais, mas principalmente as eleições. Por isso, depois do Estado Novo criou o Partido da Representação Popular e obteve quase 9% dos votos nas eleições presidenciais de 1955. Elegeu-se depois deputado federal pelo PRP e, após 1964, pela Arena. Foi um dos líderes da Marcha da família com Deus pela pela liberdade.

O fim da ditadura deixou a extrema direita nas sombras. Os ideólogos militares se voltaram para novas teorias que a esquerda brasileira debatia no final dos anos 1970, entre elas a de Antonio Gramsci. A subversão passou a ser identificada na estratégia indireta gramsciana operada por partidos, escolas e pela Igreja. Ao lado dessa preocupação com as ideias de Gramsci, vários organismos de difusão do ideário pró mercado foram fundados como o Instituto Liberal em 1983 e a Sociedade Tocqueville em 1986. No século XXI outros surgiram e se apoiaram em recursos internacionais.

 

 

Bolsofascismo

Um espaço residual da extrema direita não deixou de existir na chamada nova república (1985-2016). Eneas Carneiro, um militar cardiologista da direita nacionalista teve 7% dos votos em 1994. Todavia, a Esquerda jamais enfrentara um candidato que ameaçava exterminá-la. Muito menos confrontara um oponente que dispunha de um ativismo social como o bolsonarismo. Desde a redemocratização, jamais um movimento de massas autoconfiante se opusera à esquerda.

A ideologia de Bolsonaro era um conjunto de ideias bizarras apoiado em youtubers sem reconhecimento acadêmico, mas por isso mesmo hauria sua força numa postura anti elitista. Não havia uma visão coerente do mundo e sequer um programa de governo, por isso o astrólogo Olavo de Carvalho foi uma peça importante na construção de uma técnica discursiva para o bolsonarismo que permitiu manipular racionalmente os sentimentos irracionais dos seus adeptos. Ele empoderou o “homem médio” e o alimentou com teorias conspiratórias, preconceitos morais e dogmas religiosos. Apesar de contraditórias, suas mensagens atendiam necessidades momentâneas dos seus seguidores.

Além da irracionalidade, Bolsonaro apoiou o corporativismo militar. Não só garantiu privilégios corporativos como preencheu milhares de cargos de confiança com oficiais das Forças Armadas. Em junho de 2020 havia 6.157 militares no governo federal (Valor econômico, 17/7/2020) e eles chefiavam 36% dos ministérios.

O governo sobreviveu a todas as falsas profecias de sua queda iminente. No ano de 2020, em meio à tragédia da pandemia, houve uma ascensão da popularidade do presidente, apesar dele duvidar da letalidade do vírus. Isso foi possível, entre outras coisas, porque ele questionou o limite constitucional dos gastos públicos e concedeu auxílio emergencial aos trabalhadores durante a quarentena. Ainda assim, isso não o levou a romper com a ortodoxia neoliberal e ele continuou combatendo os direitos dos trabalhadores, exibindo seu verdadeiro papel como ultima ratio do capital.

A adesão de Bolsonaro a este ou àquele programa econômico nunca foi questão de princípio, como observamos por sua biografia política; ela está subordinada a um propósito de desmontagem do que ele acredita serem os aparelhos de Estado infiltrados pelo “marxismo cultural”.


Por um Tribunal de Manaus

Como vimos, os elementos fascistas do bolsonarismo são evidentes: a manipulação da irracionalidade, a defesa do grande capital, o anticomunismo (antipetismo, em nossa época). Poderíamos acrescentar muitos outros, como sua estratégia de estressar a legalidade e usá-la para implantar uma ditadura mediante a cumplicidade de políticos liberais e empresários. Mas poucos fascismos levaram a uma prática sistemática um dos seus conteúdos mais horrendos: o culto da morte, típico do franquismo na guerra civil espanhola.

Diante da depressão econômica e da pandemia, Bolsonaro finalmente revelou sua face mais teratológica. Ele já taxava quilombolas e indígenas de pessoas descartáveis. Com a destruição da previdência pública para as futuras gerações, desenhou um programa de extermínio gradual de idosos. Como o nazismo, adotou em 2020 uma estratégia consciente de eliminação física de parte da população “desnecessária”, em primeiro lugar os idosos, negros e pobres, as maiores vítimas iniciais do Covid 19.

O descontrole da epidemia fez com que toda a população se tornasse um alvo do bolsonarismo. O Mapeamento das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 feito pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus no Brasil (El País, 21/01/2021). Isso já é suficiente para embasar o impedimento do presidente da República e a cassação dos seus direitos políticos para que não possa mais ser candidato. No entanto, é insuficiente para punir os crimes contra a humanidade perpetrados deliberadamente por uma política de Estado.

A superação do fascismo no Brasil não se dará apenas com uma vitória eleitoral. É preciso investigar os crimes bolsonaristas e ir além da Comissão Nacional da Verdade (2011-2014). Cabe criar um tribunal ad hoc para julgar e punir Bolsonaro, Mourão, Pazuello (um suposto especialista em logística), a cúpula do Exército brasileiro e todos os militares e civis no poder que concorreram para a tragédia humanitária a que assistimos.

A equipe militar e neoliberal do governo, por negligência, crença ideológica e incompetência, recusou investimentos na pesquisa, produção e mesmo contratos de importação futura de vacinas quando o país ainda tinha uma janela de oportunidade para evitar muitas mortes.

Esse tribunal ad hoc poderia ser de natureza internacional como o de Nuremberg ou as cortes especiais do Timor Leste e de Ruanda. De toda maneira, cabe ao próprio Estado brasileiro produzir algum tipo de justiça de transição que os nossos juristas, profissionais da saúde, historiadores e muitos outros certamente saberão detalhar e levar adiante. Seja isso feito em Manaus, o laboratório da estratégia genocida bolsonarista, ou em qualquer outro lugar.


Lincoln Secco, historiador, membro do Gmarx USP e autor do livro História do PT.

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