BREVE
DISCURSO DAS HIPÓSTASES
Na matemática em geral, e na
álgebra em particular, o número antolha-se-nos a máxima abstração hipostasiada,
senão vejamos:
Quando consideramos o
conceito, verbi gratia, de “boi”, operamos uma abstração de todas as determinações
concretas, de todas as particularidades de cada animal dessa espécie
individualmente considerado, para enfatizar apenas as características comuns a
todos os animais de tal espécie, e idealizamos uma identidade meramente
imaginária entre os mesmos: identidade imaginária, bem entendido, porquanto uma
coisa somente pode ser igual a si mesma.
No número, todavia, a
abstração é elevada a uma potência máxima: com efeito, quando consideramos o
número “um”, por exemplo, abstraímos as determinações concretas, a saber, as
particularidades de todas as coisas, eis que tal número pode referir-se a
qualquer coisa.
Portanto, adotando uma postura
filosófica integralmente nominalista acerca da matemática, postulamos que o
número somente existe em razão de uma construção puramente abstrata do
intelecto humano: é por isso que tal ciência por vezes agride o intelecto com
certa intensidade, como na ideia de infinito por exemplo, algo que não existe
na realidade, sendo certo que o próprio Universo não é infinito, mas está em
expansão, consoante demonstrado por Edwin Hubble. É por isso também que um
conspícuo matemático como Lewis Carroll concebeu uma narrativa totalmente “nonsense”
do porte de “Alice no país das maravilhas”, sintoma do caráter por vezes pouco
realista da matemática.
Simetricamente, no âmbito do
Direito constata-se que o ordenamento jurídico radica em outra abstração
hipostasiada: o princípio da isonomia, consoante o qual todos são iguais
perante a lei. A abstração nesse caso dispensa maiores comentários, sendo
evidente por si própria, mas faz-se mister destacar que ela mostra-se bastante
funcional para diluir sobretudo as diferenças de classes sociais antagônicas, com
atuar como suporte ideológico de sociedades fraturadas por diferenças promotoras
de iniquidades gritantes. Demais disso, o caráter abstrato do fenômeno jurídico
evidencia-se na extrema dificuldade de subsunção do fato à norma, o que produz uma
pletora casuística que não raro reduz o preceito normativo à inoperância e à ineficácia
para dirimir o caso concreto em questão.
Mas é na economia, a saber, no
âmbito da produção e reprodução da vida material das sociedades que a abstração
hipostasiada adquire uma dimensão inaudita, atingindo o apogeu na forma-mercadoria
e no dinheiro.
Com efeito, a mercadoria reduz
todos os valores-de-uso, hábeis a satisfazer necessidades humanas concretas, a
mera consubstanciação de trabalho humano abstrato, o que lhes garante a
intercambialidade, sendo certo que no dinheiro, vale dizer, na circulação de
mercadorias, tal abstração atinge o grau máximo.
Faço aqui uma ligeira digressão
para remeter agora meus eventuais leitores aos singelos textos de minha autoria
intitulados “Hipótese marxista para uma lei tendencial do valor” e “Níveis de
abstração do trabalho humano”, com supedâneo nos quais empreendo a reflexão a seguir:
Vimos acima que a identidade
consiste em relação de uma coisa consigo mesmo, de tal sorte que uma coisa somente
é igual a si mesma, premissa esta que é completamente dissolvida na abstração
algébrica, a saber, nos números. Pois bem, o modo capitalista de produção, ou
sociedade capitalista, tende a padronizar os valores-de-uso engendrados pelo
capital de forma que as mercadorias percam cada vez mais as características que
as individualizam e distinguem: destarte, quando mais distante o trabalhador
estiver de produzir para sua própria existência material e, portanto, quanto
menor o valor individual de cada mercadoria, mais próximos da abstração
algébrica, acima delineada, estarão esta mercadoria e este trabalhador, até que
tal abstração tipicamente capitalista venha a ser historicamente suplantada
pelo modo de produção cuja divisa é “a cada um segundo suas necessidades, de
cada um conforme suas potencialidades”.
(por LUIS FERNANDO FRANCO
MARTINS FERREIRA, historiador)
Me parece que vc vai na mesma linha do Wittgenstein: a matemática é uma invenção humana, não existe na natureza.
ResponderExcluirA matemática é uma invenção humana na mesma medida que a sociedade também o é, obrigado pela leitura e comentário camarada Carlos!
ExcluirTambém sou adepto de que a matemática é uma invenção humana, porém há aqueles que crêem ser a matemática um fenômeno natural e que cabe ao homem descobrir seus mistérios. Penso que esta seja uma posição bem idealista sem levar em consideração o processo de desenvolvimento histórico da humanidade.
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