Lincoln
Secco & Fernando Sarti Ferreira
Quem
dará o golpe no Brasil?
Com esse título Wanderley Guilherme dos Santos publicou seu livro em
1962i
apenas dois anos antes do golpe de primeiro de abril de 1964. Em 2022
a dúvida não é
quem,
mas como.
É claro que se pode indagar sobre o suporte: policial, miliciano,
“popular” ou militar. Mas o golpe já foi anunciado pelo próprio
presidente da república. É ele ou alguém em seu nome que vai
desferir o golpe.
A
declaração do Ministro da Defesa em 10 de junho de 2022 afrontando
o TSE reforçou o total alinhamento do exército com o governo
Bolsonaro. Depois de 25 anos de voto eletrônico agora os militares
começaram a suspeitar do processo eleitoral. Ao contrário do que se
imagina, isso não é a politização do exército, pois ele nunca
deixou de agir politicamente a favor dos seus privilégios
corporativos e dos interesses dos Estados Unidos. A única novidade
dos últimos anos foi a descoberta do seu baixo nível cultural e
despreparo técnico.ii
Diferentemente
de 1964 nenhuma força golpista dispõe de projeto ou disposição
para exercer uma ditadura e o golpe pode muito bem se dar naquilo que
Maringoni denominou “o modo xepa” que “não tem plano, projeto
ou roteiro”iii.
Paralelos
Portanto
não há paralelo com o que houve em 1964. Talvez o mais parecido com
a forma do novo coup
d'état
seja a revolta integralista de 1938 porque o bolsonarismo, assim como
as galinhas
verdes
de Plinio Salgado, é um fenômeno de massa e um conjunto bizarro de
ideias incoerentes de natureza fascista.
A
tentativa de tomada do poder em 10 de maio de 1938 contou com apoio
da oposição liberal ao governo Vargas, como alguns ex líderes do
levante paulista de 1932 (Júlio de Mesquita Filho, por exemplo). O
mais grave, porém, foi o fato das tropas de Severo Furnieriv
terem cercado o Palácio Guanabara sem resistência da polícia ou
das forças armadas. Só a guarnição pessoal do presidente chefiada
por Benjamin Vargas e Gregório Fortunato (ex combatentes contra a
revolta paulista de 1932) resistiram.
Naquela
noite o exército nada fez e só interveio em defesa do governo
depois de horas de passividade, à espera de um desfecho que poderia
ter significado a morte de Getúlio Vargas. Finalmente, Eurico Gaspar
Dutra debelou a intentona integralista. Até hoje não temos certeza
do que esteve por trás da inação militar, mas o ataque a Vargas
pode ser visto como instrumento oportuno para um golpe do próprio
exército, o qual já estava no poder, mas poderia se livrar ao mesmo
tempo do ditador e dos integralistas; ou até mesmo firmar
compromisso com Plínio Salgado, o qual possuía muitas simpatias
entre os militares.
Golpe
a
la
Capitólio
O
golpe a ser desfechado no Brasil carece de estratégia, mas
paradoxalmente tem um objetivo: aprofundar a destruição do estado
brasileiro. Uma alternativa, portanto, seria um golpe caótico como o
que foi tentado por Trump nos Estados Unidos.
No
dia 6 de janeiro de 2021, horas antes do congresso estadunidense se
reunir para ratificar o resultado das eleições do ano anterior, o
ainda presidente Donald Trump realizou a poucas quadras dali um ato
político com seus apoiadores. Com o tema “Salvem os EUA”, o
evento foi a coroação de uma longa campanha de descrédito do
processo eleitoral estadunidense – diga-se de passagem, muito menos
organizado que o processo brasileiro. No palco, figuras de proa do
trumpismo, como o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani – até
os anos 2000, modelo de “gestor” preferido entre liberais
brasileiros-, exortavam a multidão a intervir na sessão que seria
presidida pelo vice-presidente Mike Pence. “Lutem como o diabo”,
disse então o presidente Trump.
Antes
mesmo de terminar o discurso, um grupo de manifestantes fantasiados
começou a se dirigir ao prédio do Capitólio. Ao mesmo tempo, Mike
Pence abria a sessão lendo uma carta pela qual deixava
claro que não iria embarcar na aventura de Trump. Na hora seguinte,
sem encontrar resistência, os manifestantes foram se aglomerando e
avançando em direção ao interior do prédio. É digno de nota que
os oficiais de segurança mais resistentes à horda fascista eram
negros, como se pode ver nas cenas do documentário Four
Hours at the Capitol,
do diretor Jamie Roberts. Impossível não pensar como para além do
compromisso ideológico entre as força de segurança e o fascismo
não houve ali também uma aliança racial. Basta comparar a
repressão das forças policiais ao movimento negro com os eventos no
Capitólio.
Com
deputados, senadores e assessores correndo em desespero, sendo
empurrados para lá e para cá por seguranças engravatados e com
pontos de comunicação nos ouvidos, como no filme Don't
Look Up
quando o meteoro se aproxima, a sessão foi interrompida. Um dos
prédios mais protegidos do
mundo
foi tomado por um verdadeiro exército de Brancaleone. No
documentário acima citado, tão impressionante como a farra feita
pelos manifestantes - um misto de delinquência adolescente com uma
excursão de turistas de classe média – foi a covardia da classe
política estadunidense. As cenas que protagonizaram durante a
invasão, mas principalmente os depoimentos dados por senadores,
deputados e assessores posteriormente para o documentário são
extremamente desmoralizadores e constrangedores. Nada diferente do
desfecho da aventura. Após horas de ocupação, a presidente da
Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e o candidato eleito, Joe
Biden, foram à rede nacional implorar para que Trump retrocedesse. O
presidente foi à Internet e, após celebrar a invasão, pediu para
que os manifestantes voltassem para casa.
No
entanto, nem sempre o mais espetacular é o mais importante. É claro
que o fracasso do 6 de janeiro de Donald Trump tem outras razões,
como a falta de apoio entre os próprios membros de seu partido e a
resistência da cúpula das Forças Armadas estadunidensesv.
Já
Bolsonaro, ao contrário de Trump, parece ter muito mais fiadores
para o seu golpe. Se os bolsonaristas decidirem fazer algo
semelhante, seja no Supremo Tribunal Federal, no Tribunal Superior
Eleitoral ou na Câmara de Deputados, diferentemente dos fascistas de
1938, não serão confrontados por nenhuma força repressiva, mesmo
que tardiamente. Quiçá a cumplicidade das forças de segurança
seja até mais gritante aqui que nos EUA. Bolsonaro pode se
restringir a ameaças, arruaças, protestos de ruas e os seguidores
provocarem escaramuças ridículas. Mesmo assim, e tendo em vista o
grau de comprometimento das forças de seguranças brasileiras com o
presidente e sua secular vocação genocida, essa encenação poderá
provocar muito mais mortos e feridos que a aventura trumpista. Na
periferia a violência tende sempre para os extremos.
Conclusão
Qualquer
que seja a forma, uma marcha, arruaça, invasão ou até o mais
efetivo desfile militar com tropas cercando os três poderes, uma
tentativa de golpe, mesmo a mais ridícula, é grave. Ela corrói
ainda mais a legitimidade institucional do poder e constrange o
próximo presidente a conviver com uma força armada explicitamente
opositora.
A
marcha sobre Roma em 1922 também era uma passeata cômica de uma
massa de ressentidos mal armados que poderia ter sido desbaratada
facilmente pelo exército italiano, mas os fascistas já tinham
comparsas no estado e as classes dominantes estavam paralisadas. E
como no Brasil, não havia qualquer ameaça revolucionária, já que
o biênio vermelho havia sido derrotado e o partido comunista era
muito pequeno. Elas temiam mais o crescimento eleitoral do socialismo
reformista, uma força desinteressada em qualquer revolução e
incapaz de resistir ao fascismo.
Four
Hours at the Capitol
termina com uma série de imagens de agentes do FBI cumprindo
mandados de prisão contra as lideranças do 6 de janeiro. Se a ideia
era, como em boa parte do cinema ficcional estadunidense, mostrar que
as instituições liberais são capazes de corrigir qualquer desvio,
ameaça e injustiça, a verdade é que estas cenas trazem uma forte
lembrança da sequência final de O
Ovo da Serpente,
de Ingmar Bergman. A operação policial para desbaratar os
experimentos do professor Hans Vergérus não passa de pirotecnia,
incapaz de frear forças que já foram colocadas em marcha. No
Brasil, há dúvidas se mesmo o simulacro de repressão e prisão
aconteça.
iSaiu
pela coleção cadernos do povo brasileiro da editora civilização
brasileira. A coleção era dirigida por Álvaro Vieira Pinto e Ênio
Silveira e o desenho de capa da edição original é de Eugênio
Hirsch.
iiA
esse respeito ver o artigo de José Luís Fiori e William Nozaki, in
https://aterraeredonda.com.br/o-fracasso-dos-militares/
iiihttps://www.diariodocentrodomundo.com.br/xepa-fase-superior-do-bolsonarismo-por-gilberto-maringoni/
ivCarone,
E. O estado novo.
São Paulo: Difel, 1977, p. 270.
Os jornalistas Carol Leonning e
Philip Rucker, em um livro chamado I
Alone Can Fix It,
relatam as tratativas feitas por Mark Miley, chefe do Alto Comando
das Forças Armadas dos EUA, durante as jornadas de janeiro de 2021.
O livro teve ampla divulgação na imprensa brasileira, mas segue
sem edição no nosso país.