quarta-feira, 23 de março de 2022

BREVE DISCURSO DAS HIPÓSTASES: INDIVÍDUO E SOCIEDADE

Os seres humanos convivem com abstrações em seu cotidiano há milênios: mais especificamente, desde o momento em que passaram a trocar mercadorias entre si.

Sim, pois a intercambialidade entre os diversos valores de uso das mercadorias pressupõe que exista algo em comum entre as mesmas: ora, esse denominador comum entre mercadorias de distintos valores de uso consiste no fato de que são fruto do trabalho humano. 

Todavia, o trabalho para pescar um peixe exibe-se distinto do trabalho para produzir farinha de mandioca, logo o trabalho que determina a equivalência entre distintos valores de uso corresponde ao trabalho humano abstratamente considerado, despido de suas determinações concretas, de tal sorte que o valor de certa mercadoria determina-se pelo tempo de trabalho humano ABSTRATO necessário à sua produção: eis a origem da teoria econômica do valor-trabalho. 

Já tive a oportunidade de obtemperar, na publicação imediatamente precedente deste portal, que os indivíduos humanos, quando apartados de suas relações sociais de produção, não passam de meras abstrações ou quimeras. Mas as relações de produção, se consideradas independentemente dos indivíduos humanos concretos que lhes dão suporte, também configuram abstrações: eis o problema da interação entre indivíduo e sociedade.

Destaque-se que a multiplicidade das necessidades individuais concretas enseja a multiplicidade dos valores de uso e, por conseguinte, a divisão social do trabalho e a troca de mercadorias: em tais necessidades individuais concretas, portanto, reside o nascedouro da relação de produção representada pela mercadoria e seu derivado historicamente ulterior, o capital. 

Destaque-se, também, que cada indivíduo humano singularmente considerado encerra necessidades concretas idênticas às dos demais indivíduos, mas também guarda necessidades concretas singulares ou partilhadas com poucos indivíduos: observe-se que já na distinção entre os gêneros (feminino, masculino etc.) há diferenças entre necessidades concretas individuais.

Mas, sob o domínio do modo capitalista de produção, um mesmo valor de uso pode ser produzido por distintos capitais individualmente considerados, sendo certo que tal multiplicidade é historicamente mitigada pela tendência capitalista à centralização e decorrente formação de oligopólios e monopólios. 

É mister obtemperar ainda que, sob o capitalismo, há uma tendência à padronização e repetição das mercadorias e do próprio trabalho, de tal sorte que o trabalho abstrato, acima mencionado, tende a realizar-se em um trabalho homogêneo, repetitivo e padronizado nas distintas plantas fabris, fenômeno que é intensificado pela centralização de capital. 

O comunismo mundial, portanto, conquanto despido das fraturas sociais derivadas das lutas de classes, deverá deparar-se com os problemas da interação entre indivíduo e sociedade, máxime com a questão da satisfação das necessidades individuais concretas, as quais, se não se exibem absolutamente singulares para cada caso, podem ser vinculadas a poucos indivíduos humanos. Em todo caso, será imperiosa a divisa: de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades. 

Eis alguns temas, discretamente dispersos, para debater.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)  

  

quarta-feira, 9 de março de 2022

FRAGMENTO SOBRE RAZÃO E ABSURDO

O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel descortinou pioneiramente a lógica dialética que habilita o estudioso a capturar a intelecção da história da humanidade, mas o fez de maneira formal e idealista, sendo certo que seus discípulos Karl Marx e Friedrich Engels despojaram esta inteligibilidade de seu cariz abstrato, com atribuir um conteúdo concreto ao evolver humano no curso do tempo, de sorte que se desvelou, destarte, a sucessão dos distintos modos de produção ao longo da história, cuja dinâmica rege-se pelas contradições entre relações de produção e forças produtivas, que se manifestam, por seu turno, por meio de lutas de classes. 

Impõe-se, então, indagar: por que motivo a intelecção da história da humanidade, pela lógica dialética e pelo materialismo histórico, somente foi exequível tardiamente, entre os séculos XVIII e XIX?  

Ouso voluntariamente correr os riscos de ventilar uma resposta a esta indagação: o motivo reside no advento em grande escala da classe proletária durante o fenômeno histórico da revolução industrial inglesa do século XVIII. 

Sim, porquanto tal classe social, completamente desprovida dos meios de produção, exibe um caráter mundial que lhe confere aptidão para emancipar a humanidade, com habilitá-la a tomar as rédeas da sua própria história e submetê-la aos ditames da razão, alcançando um novo modo de produção já não mais fraturado em classes sociais antagônicas.

Portanto, a inteligibilidade da história da humanidade somente se manifesta quando esta mesma humanidade apresenta-se apta a dirigir o seu próprio destino, sendo certo que, portanto, apenas na longa duração dos distintos modos de produção, que se sucedem no curso do tempo, é que se pode apreender tal inteligibilidade. 

Ora, tal longa duração suplanta evidentemente o tempo de uma vida humana individual, de sorte que a própria razão, por conseguinte, também se exibe como fenômeno social atrelado à longa duração histórica. 

A história do indivíduo humano abstrato, apartado de suas relações sociais, enfim, de suas relações de produção e da história de tais relações de produção, não pode, portanto, suplantar o estatuto de quimera desprovida de racionalidade e inteligibilidade.

Por isso, no âmbito da literatura, por exemplo, proliferam os casos de obras que, divisando o indivíduo humano, chegam no nonsense e no absurdo:

Nas obras de Anton Tchekhov, verbi gratia, nada digno de nota acontece, pois este autor, médico e provido de olhar científico, apreendeu a falta de racionalidade do tempo próprio das personagens individuais. 

Franz Kafka, por seu turno, exibe-nos indivíduos humanos oprimidos por uma realidade que lhes escapa ao controle, sendo certo que o resultado deste solipsismo exacerbado apresenta-se na forma de aberrações como o inseto de "A metamorfose".

Já as personagens do assim chamado "teatro do absurdo" mal conseguem se comunicar entre si, talvez porquanto aquilo que têm a dizer como meros indivíduos abstratos, no sentido acima exposto, não seja inteligível a mais ninguém. 

São singelas ideias para eventual debate.

(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)