Socialismo,
Não?
Pedro Crem*
Dia
desses escutei, novamente, uma frase muito repetida: socialismo não, porque
você não pode pagar a mesma coisa para quem não faz nada. Fiquei pensando com
os meus botões, é dessas coisas que todo mundo repete, como um dogma, mas por
quê? Então imaginei que deve ser porque parece verdade.
Ora,
por que eu premiaria um preguiçoso? Parece justo não lhe dar valor. Quando meu
filho era bem pequeno, várias vezes eu li para ele uma fábula sobre a galinha
que convida a todos os animais para ajudá-la a plantar, colher, moer o trigo e
a fazer o pão e ninguém aceita as tarefas. Feito o pão, todos se prontificam a
comê-lo, mas a galinha responde que é só para ela e seus pintainhos. Uma
história singela para ensinar às crianças o valor do trabalho, a colaborar com
o próximo e a não se aproveitar do esforço alheio. Mas principalmente, era toda
rimada, e o moleque adorava. Deve ter ajudado a desenvolver-lhe o duvidoso
gosto pelo rap...
Mas
então você olha de novo para a frase, prestando mais atenção, e tenta entender
o que ela diz, qual é a relação de causa e efeito proposta, como o argumento
leva à conclusão, e as coisas começam a ficar um tanto confusas. Vamos colocar
a frase de uma forma mais clara:
Os
argumentos são:
-
quem trabalha merece ser recompensado,
-
quem não trabalha não merece ser recompensado
A
conclusão é:
-
portanto, o socialismo não é aceitável.
Mas,
espere aí, como se chegou a essa conclusão a partir desses argumentos? Alguma
coisa não está sendo dita. A maior parte das ideias ficou implícita, como se
não precisassem ser apresentadas, por óbvias. Que ideias são essas? Acredito
serem as seguintes:
-
no socialismo, todos recebem a mesma recompensa, independentemente de seu
esforço, competência ou produtividade e isso seria injusto, além de incentivar
a preguiça e a indolência, tornando a sociedade atrasada e improdutiva.
-
no capitalismo, todos são recompensados proporcionalmente a seu esforço,
competência e produtividade, o que é justo e incentiva o trabalho, a
competência e a produtividade.
Portanto,
chega-se à conclusão: não posso apoiar um sistema injusto e improdutivo que
incentiva os preguiçosos e levará ao atraso e em última consequência, à fome,
pois ninguém irá plantar o trigo e fazer o pão, como na fábula da galinha.
Opa!
Mas essas ideias não são nada óbvias. Quem disse que no socialismo todos são recompensados
igualmente? Quem disse que no capitalismo quem se esforça mais ou é mais
competente é melhor recompensado?
A
começar pelo capitalismo, que está à nossa volta, todos conhecemos bem: desde
quando quem trabalha mais ganha mais? A sabedoria popular já forjou um ditado
bem mais verdadeiro, “quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro”. E
desde quando quem é mais competente é mais recompensado? É só olhar à sua
volta, quem foi promovido no lugar onde você trabalha? Foi mesmo por
competência? E entre os comerciantes, os industriais, os empresários, quem se
estabelece? Quem progride mais? Os competentes e esforçados? Ou os que herdaram
o maior capital, conhecem as pessoas certas, porque são seus parentes, colegas
de escola, vizinhos, e não tem escrúpulos em torcer e às vezes até violar as
leis para favorecer seus negócios?
Outro
dia li um artigo sobre um senso feito em Florença, na Itália, há quase 500 anos
atrás, que documentou o nome, patrimônio e renda de seus habitantes. Esses
documentos foram, recentemente, disponibilizados na internet e dois economistas
italianos se debruçaram sobre eles, cruzando com dados atuais. Descobriram que
as famílias mais ricas da época ainda são as mais ricas hoje, mas, o mais
impressionante, é que também descobriram que as famílias mais pobres continuam
a ser as mais pobres até hoje. O artigo também citava um estudo similar, feito
na Inglaterra, sobre um período ainda maior, de 800 anos, que demonstrava a
mesma situação. Desde o século 12, na Inglaterra, os mais ricos continuam a ser
os mais ricos e os mais pobres continuam a ser os mais pobres.
A
conclusão inevitável é: a tão propalada mobilidade social no capitalismo é
balela. E ainda conclui: Michelzinho (Temer), aos sete anos, tem um patrimônio
de dois milhões em imóveis e tudo o que fez para merecê-lo foi nascer, a forma
mais eficiente de enriquecer. Aí está outra frase que escuto desde criança: uma
pessoa tem duas oportunidades de enriquecer: quando nasce e quando casa.
Trabalho, esforço e competência são recompensados no capitalismo? É preciso
muita inocência para engolir essa.
Quanto
ao socialismo, quem disse que a premissa é todos ganharem a mesma coisa,
independentemente do que façam ou deixem de fazer? Isso é uma distorção do que
ele de fato defende.
A ideia, no socialismo, é que todos tenham a sua dignidade garantida, apenas
pelo fato de serem humanos, e nada mais. Portanto, todos os humanos teriam
direito a alimentação, saúde, educação, vestimenta, abrigo necessários à sua
sobrevivência. Portanto, se o sujeito não quiser fazer nada da vida, ou não
tiver a capacidade, ou competência, ou mesmo saúde, ele vai sobreviver e só.
Porque negar isso a uma pessoa é indigno, é entregarmo-nos à barbárie. Avilta
muito mais à sociedade que o permite que à própria vítima do abandono.
No
socialismo, você não precisa se preocupar em acumular para garantir a sua
sobrevivência ou a de seus filhos. O estado garante isso. Você não vai ficar
desempregado. É uma sociedade de pleno emprego. O medo constante do desemprego
e da morte por inanição, tão presente no capitalismo, inexiste no socialismo.
Agora,
se o sujeito, se esforçar ou for talentoso e contribuir para o progresso e
aperfeiçoamento da sociedade será recompensado. A recompensa material sempre
terá um limite, pois no socialismo, um indivíduo não pode acumular bens e
riquezas indefinidamente, em prejuízo do bem-estar dos demais, tampouco pode
haver uma desigualdade abissal entre as pessoas, pois isso gera revolta e
instabilidade.
Mas
é preciso também entender que a recompensa pelo trabalho não vem só em bens
materiais. É preciso ser muito medíocre, ou mesquinho, para imaginar que tudo o
que fazemos é para acumular dinheiro ou bens. Por que trabalhar e estudar
então? Por todo o resto, que vem depois da sobrevivência garantida: respeito,
prestígio, sabedoria, poder, fama, influência, status, vaidade, o que você
puder imaginar. Um médico, que salva vidas, será mais admirado que um
trabalhador braçal, anônimo, com pouca escolaridade. Então muitos se esforçarão
enormemente para alcançar esse status, mesmo que o salário não seja muito
maior. Ser um professor, que forma e influencia tantos jovens, sempre atrairá
os esforços de pessoas talentosas, seja qual for o salário. Assim como um
agricultor, criativo, que consegue aumentar a produtividade da sua lavoura, se
tornará uma referência, da mesma forma que um pedreiro, eletricista, encanador
ou um mecânico capazes de realizar seus ofícios com grande habilidade, ou mesmo
aperfeiçoar suas técnicas, serão alvo de admiração.
Num
mundo socialista, todos podem buscar uma atividade em que possam aproveitar ao
máximo seus talentos, sem precisar se preocupar com a sobrevivência imediata.
No capitalismo, quantos abandonam aquilo que fazem com maestria, mas é mal
remunerado, para serem medíocres num ofício que garanta o pão de cada dia? Isso
é ser eficiente?
Mas
há um ponto ainda mais importante, nessa diferença entre o capitalismo e o
socialismo. O desejamos da organização social? Que espécie de sociedade, de
relação entre as pessoas? Que consciência queremos que as pessoas tenham de si
e de seu papel no mundo?
O
capitalismo propõe que cada um lute pela sua sobrevivência por conta própria,
livremente, numa disputa pelos recursos disponíveis, sem nenhuma compensação
pelas diferenças entre os indivíduos. Favorece a competição e a desigualdade e
defende que os fortes submetam os fracos. E aponta para a ideia que os muito
fracos não merecem sobreviver. Pouco importa se a força ou a fraqueza não venha
dos talentos do próprio individuo, mas de fatores externos a ele como herança,
cultura, história, localização geográfica. Nada deve interferir na disputa.
Pelo medo da miséria e pela necessidade da sobrevivência, o capitalismo
favorece o individualismo, a ganância, o egoísmo. É uma sociedade do cada um
por si, regida pelo medo, onde a solidariedade é para os santos.
No
socialismo, ao abolir o medo da miséria, garantindo a sobrevivência e a
dignidade, buscando proporcionar a igualdade de oportunidade para todos,
respeitando as diferenças, não tentando tratar igualmente os desiguais, é
favorecida a individualidade, a criatividade a colaboração. A solidariedade
passa a ser a regra, e não a exceção. Derrotado o medo, os instintos mais
elevados do ser humano, como o altruísmo e a empatia se elevarão.
Concluindo,
essa é a questão principal: em que mundo você quer viver, um mundo de medo,
onde prevalecem os instintos mais mesquinhos do homem, ou um mundo de
solidariedade, onde os aspectos mais elevados e altruístas são realçados?
As
pessoas são, em grande parte, moldadas pelo ambiente que as cerca. Mas também
tem suas tendências inatas. Dentre todas as pessoas, quais devem se destacar e
merecer o respeito e a admiração de todos? Um egoísta mesquinho, avarento e
maquiavélico, que não mede esforços nem tem escrúpulos de fazer tudo o que for
preciso para acumular bens infinitamente, ou um sujeito solidário, empático,
sempre pronto a dar o melhor de si não apenas no seu próprio interesse, mas
também no daqueles que o cercam?
Ser
capaz de responder essa pergunta é, mais do que qualquer outra coisa, saber
fazer a escolha entre capitalismo e socialismo. Eu fiz a minha e odeio aquela
maldita galinha rapper
capitalista.
*Tecnólogo pela FATEC-SP e membro do Núcleo de Estudos d'O Capital.