quinta-feira, 29 de junho de 2023

HAIKAI 9

 A força da gravidade pode ser resultante da interação entre a força de expansão do universo e a força de atração entre as partículas.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

HAIKAI 8

 A luz não exibe velocidade, mas aquilo que comumente denominamos “velocidade da luz” consiste, na verdade, na velocidade de expansão do Universo.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

HAIKAI 7

 Há duas formas básicas de relações de produção:


1. A relação mediada pelas mercadorias, impessoal e heterônoma;


2. A reprodução sexuada, personalíssima e autônoma.


Esses dois polos da produção e reprodução da vida material imediata dos seres humanos indicam seus vértices abstrato e concreto.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 25 de junho de 2023

Domingão do núcleo: Stanley Kubrick

 SOBRE “2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO”



Espetáculo soberbo e de grandes pretensões intelectuais, o filme de Stanley Kubrick mostra, sob a sombra do Friedrich Nietzsche de “Assim falou Zaratustra”, o embate entre o homem e a inteligência artificial, no caso representada pelo supercomputador HAL, cujo nome deriva de “heurístico algorítmico”. Com efeito, eis mais uma película que nos impele à reflexão, o que, já o tenho suscitado, indica a importância de uma obra de arte. Sendo assim, vejamos:


Em filosofia, a metafísica deriva da ilusão consistente em conferir autonomia à alma ou espírito, em contraposição ao corpo. Tal engodo, por seu turno, radica na oposição entre trabalho e pensamento. Explico: a necessidade de produzir e reproduzir heterônoma e diariamente a vida material enseja nos indivíduos a ilusória sensação de que seu pensamento, ao contrário do corpo, é livre, de que derivaria sua suposta autonomia.


O materialismo histórico mostrou a metafísica da mercadoria, plena de “manhas teológicas” na contraposição entre valor-de-uso e valor tout court: se o primeiro aspecto da mercadoria serve para satisfazer necessidades humanas, o segundo serve, na sua abstração, apenas para a acumulação infinita de capital, a despeito daquelas necessidades humanas.


Esta contradição metafísica e “teológica” da mercadoria somente poderá ser sobejada pela abolição da propriedade privada dos meios de produção, enfim, do capital e da supressão das classes sociais, quando então uma forma de Inteligência Artificial supranacional, mundial, será capaz de planejar a produção e reprodução diária da vida material de tal forma a exigir de cada um conforme suas potencialidades, e dar a cada uma conforme suas necessidades.


Neste caso, fica superada a forma mercadoria do produto social e extinto seu valor abstrato, valendo apenas seu valor-de-uso, a saber, sua aptidão para satisfazer necessidades humanas, e é este aspecto que será submetido à planificação por uma Inteligência Artificial mundial. Com a suplantação das manhas teológicas da mercadoria, extinguir-se-á toda a metafísica em matéria filosófica, pois os indivíduos na sua inteireza, unidade de corpo e pensamento, restarão real e plenamente livres do trabalho heterônomo: valerão as reais necessidades dos indivíduos, e não as necessidades do capital, alienadas daquelas.


Mas o que Nietzsche diz com isso tudo? Ora, este pensador procurou terminar definitivamente com toda a forma de metafísica em matéria de filosofia, mas talvez seu super-homem (übermenschen) advirá somente com o comunismo, tal qual vaticinado por Marx e os demais materialistas históricos.


(Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Conjectura demográfica.

 O curso da história econômica demonstra que o fluxo populacional nos distintos ramos da produção e reprodução da vida material segue os vetores do aumento da produtividade e do consectário aumento do excedente nesses ramos.


Assim, até o advento da primeira revolução industrial no século XVIII, a atividade econômica preponderante corresponde à agropecuária com baixo nível técnico, baixa produtividade e modesto excedente econômico, de tal sorte que a quase totalidade da população resta ainda presa ao trabalho braçal no campo, sendo quantitativamente restrita a população que, compondo a classe social dominante, não precisa realizar tal trabalho braçal e é alimentada por esses trabalhadores rurais.


Com o progresso técnico resultante do advento da primeira Revolução Industrial e com as revoluções técnicas ulteriores, máxime em decorrência do progresso do maquinário agrícola, o excedente econômico produzido pela atividade agropecuária é exponencialmente incrementado e passa a ser em grande parte consumido pela parcela da população envolvida na atividade industrial, de tal sorte que ocorre um fluxo migratório das regiões agrícolas para as regiões industriais urbanas. O trabalho braçal no campo é gradativamente substituído pelo trabalho manual nas fábricas, sendo que a população envolvida no setor secundário da economia aumenta sobremodo, em detrimento da população rurícola.


As ulteriores revoluções técnicas, por seu turno, incrementam a produtividade do trabalho fabril e o próprio excedente produzido por tal atividade, de tal sorte que se verifica um novo fluxo migratório em direção ao setor terciário da economia, caracterizado pelo trabalho intelectual, máxime seus departamentos envolvidos com produção de ciência e tecnologia, de tal sorte que o excedente econômico produzido no setor fabril é dirigido para consumo da população envolvida com o trabalho intelectual do setor terciário. É por tal motivo que o país com a maior produção e exportação de ciência e tecnologia, os EUA, consomem o excedente econômico produzido nos países industriais periféricos, máxime a China, e exibem uma distribuição populacional manifestamente favorável ao setor terciário da economia, com ampla liberação de trabalho manual em favor do labor intelectual. O setor educacional de tal país exerce papel decisivo na consecução de sua hegemonia quanto à produção de ciência e tecnologia no âmbito mundial. Destarte, a nova divisão internacional do trabalho apresenta não duas, mas três vértices que podem ser assim esquematizados, a grosso modo:


1) Países agrícolas (ex.: Brasil) produzem excedente econômico a ser consumido em


2) Países industriais (ex.: China) que produzem excedente econômico a ser consumido em


3) Países que produzem ciência e tecnologia (ex.: EUA).


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, procurador federal e historiador pela USP)

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Hipótese sobre comércio eletrônico.

 HIPÓTESE SOBRE COMÉRCIO ELETRÔNICO GOVERNAMENTAL


As corporações de ofício medievais colimavam, mediante coordenação de oferta e procura, obstar tanto a subsunção plena da produção artesanal à forma mercadoria, como também a separação entre força de trabalho e meios de produção, vale dizer, a transformação da própria força de trabalho em mercadoria.


Os Estados mercantilistas apenas expandiram tal coordenação para abranger o âmbito nacional como um todo, entravando a penetração do capital mercantil no âmbito da produção material.


A acumulação primitiva e a revolução industrial verificadas pioneiramente na Inglaterra completaram, todavia, a subsunção da produção industrial ao capital com a respectiva transformação da força de trabalho em forma mercadoria.


Isto posto, a hipótese que lançamos consiste na necessidade da planificação econômica de jaez socialista abolir a forma mercadoria, mediante controle, inicialmente, não do processo de produção de capital, mas do processo de circulação de capital.


O escopo do controle inicial do processo de circulação de capital consiste em acelerar tal processo para que seu tempo de duração fique nulo, a saber, tendencialmente igual a zero, quando então restabelecer-se-á a coordenação perdida entre oferta e procura e a forma mercadoria começará a extinguir-se.


Dadas tais premissas de história econômica, interessante notar que a internet, mais uma vez, pode desempenhar importante protagonismo quanto ao escopo de extinção paulatina da forma mercadoria.


Com efeito, sítios de comércio eletrônico como o americano Amazon e o chinês Alibaba prestam grande serviço em favor desse escopo, na exata medida em que exibem aptidão para haurir um importante mapeamento da demanda dos produtos que oferecem à venda.


Ora, o mapeamento da demanda antolha-se-nos um passo inaugural considerável para a planificação econômica, com a resultante coordenação entre oferta e procura de mercadorias.


Nesse diapasão, economias de jaez socialista deveriam fomentar a eclosão de sítios de comércio eletrônico sob tutela governamental, como recurso comercial de obtenção de mapeamento da demanda, cujas informações podem instruir adequadamente a planificação da economia em geral.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Mercantilismo e liberalismo.

 Consoante já aventado neste blog, as corporações de ofício medievais controlavam a produção artesanal de sorte a coordenar a pequena produtividade do trabalho às necessidades locais. 


Com o advento da manufatura e da consectária subsunção meramente formal do trabalho no capital, a produtividade do trabalho aumenta e a coordenação entre oferta e procura expande-se para abranger o âmbito nacional, tarefa atribuída aos assim denominados Estados mercantilistas. Nesse caso, a produtividade aumenta ainda muito lentamente em razão desta coordenação entre oferta e procura, sendo certo que a cisão entre valor e preço das mercadorias tampouco se desenvolve plenamente. 


Já com a eclosão da maquinaria e da grande indústria, exsurge a subsunção real do trabalho no capital, a produtividade do trabalho aumenta incessantemente e já não é possível coordenar oferta e procura a nível nacional, sendo certo que o mercantilismo cede ao liberalismo econômico. Nesse caso, desinibe-se plenamente a cisão entre valor e preço das mercadorias, inclusive nos moldes por mim preconizados no artigo intitulado "Sobre valor e preço", publicado na revista marxista Mouro número 8, de dezembro de 2013.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Conjectura sobre produção e circulação do capital.

 Uma das contradições básicas do capital insere-se na contraposição entre seus processos, respectivamente, de produção e de circulação.


Para o primeiro processo, o ideal seria que o tempo de circulação fosse tendencialmente nulo, isto é, igual a zero, de tal sorte que a cada aumento da composição orgânica do capital, com a correspondente queda da taxa de lucro industrial, deveria corresponder uma diminuição do tempo de circulação para arrostar esta última consequência (queda da taxa de lucro), mediante o aumento da massa de mais-valia obtida no mesmo lapso temporal.


Para o segundo processo, o ideal seria que o valor da mercadoria fosse tendencialmente igual a zero e o número de mercadorias individuais tendencialmente infinito, como forma de maximização do lucro comercial e diminuição do tempo de estoque.


Disso resulta que o processo de produção de capital necessita da anulação do tempo do processo de circulação respectivo, ao passo que este necessita da anulação do tempo de produção, o que explica que as revoluções tecnológicas bem sucedidas afetem ao mesmo tempo os processos de produção e de circulação de capital, diminuindo simultaneamente seus tempos de manifestação.


Tal singela e incipiente conjectura deve ser demonstrada nas formas empírica e teórico-matemática.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Cultura: médicos e monstros.

 SOBRE O FILME "DEAD RINGERS" (1988) 


Este filme está, decerto, entres os mais instigantes e interessantes a que já tive a oportunidade de assistir. Como sói acontecer em sua cuidadosamente elaborada obra, o respectivo diretor David Cronenberg, mais uma vez, procura escrutinar os tênues limites envolvidos na problemática dicotomia entre natureza e civilização, desincumbindo-se com a comezinha maestria.


Muitas questões são abordadas na película, mas destaco o aberrante relacionamento entre os gêmeos univitelinos Elliot e Beverly Mantle, renomados ginecologistas de Toronto, com a infértil e mutante atriz Claire Niveau, dotada de um igualmente aberrante útero trifurcado.


Beverly, o mais sentimental dos gêmeos, logo apaixona-se por Claire e passa a compartilhar com ela um deletério vício por medicamentos controlados. Aqui já exsurge a questão: fármacos são de fato uma prova da transformação bem sucedida da natureza pela civilização? O que dizer dos efeitos colaterais e da dependência química?


Obcecado com sua parceira trifurcada e manipuladora, Beverly incorre em psicose e encomenda a um artista a confecção de instrumentos ginecológicos com formas orgânicas grotescas para, supostamente, operar mulheres mutantes, instrumentos estes que evocam a arquitetura de Antoni Gaudí ou a geometria fractal de Benoit Mandelbrot: aqui a natureza orgânica impõe-se à ciência linear inventada pela civilização.


Mas o interessante mesmo do filme, e que o faz muito atual para nós brasileiros, é a questão da pretensa onipotência da ciência, aquela mesma capaz de transformar médicos (ginecologistas) em monstros.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Cultura: música clássica.

 GRIEG, BRAHMS E OS HISTORIADORES


Recentemente voltei a ouvir dois inesquecíveis concertos para piano e orquestra, pelas mãos do solista brasileiro Nelson Freire, a saber: o do compositor norueguês Edvard Grieg, opus 16; e o de seu colega alemão Johannes Brahms, opus 83, de número dois.


Cuida-se de duas peças monumentais, cujas linhas melódicas já integram, por assim dizer, o imaginário coletivo daqueles que apreciam música, seja de qual gênero for.


Arrisco aqui alguns palpites e impressões sobre as mesmas.


A obra de Grieg, em cada um dos seus três movimentos, exibe-se predominantemente como justaposição de temas melódicos, dispostos em blocos estanques e desconexos, o que não remove de forma alguma a beleza embevecida de cada melodia.


Já a peça de Brahms mostra-se bem mais coesa, pois cada tema melódico surge como desenvolvimento necessário do anterior, em uma desinibição processual em que nada é deixado ao acaso, o que acaba por formar um todo sólido e inquebrantável.


Tais impressões conduzem-me a algumas ilações derivadas do cotejo com o ofício do historiador.


Nesse diapasão, quer me parecer que, se Edvard Grieg fosse um historiador, provavelmente estaria atrelado à corrente da assim designada história factual, ou, como dizem os franceses, "histoire evenementielle", a qual exalta os grandes feitos individuais e os acontecimentos mais estrondosos, geralmente do âmbito político.


Ao passo que Brahms seria provavelmente um historiador marxista ou da chamada Escola dos Annales, que se ocupam primordialmente dos processos, a saber, os liames que encadeiam os acontecimentos, colimando estabelecer inteligibilidade na narrativa dos fatos.


Ambas as correntes historiográficas exibem seu encanto e sua beleza, assim como as músicas de Grieg e Brahms, parecendo-me relevante anotar que os músicos, assim como os historiadores, também se ocupam do tempo: no caso dos primeiros, trata-se do som em movimento, do evolver das notas musicais no tempo.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Cultura: LARS VON TRIER

 “NINFOMANÍACA”, UM FILME SEM HISTÓRIA.



No filme “Ninfomaníaca”, de Lars von Trier, não há personagens, mas conceitos.


Com efeito, o duelo verbal entre Joe e Seligman reproduz a provecta ruptura filosófica entre corpo e alma, formulada já com rigor desde, pelo menos, a obra de Platão.


Tal cesura na Filosofia, cabe observar, mostrou-se muito fértil e duradoura, com desdobramentos na oposição entre aparência e essência, hedonismo e estoicismo, empirismo e racionalismo, existencialismo e estruturalismo, arte e ciência, enfim, entre o mundo dos sentidos e o mundo da inteligibilidade.


Mas tais dicotomias, a saber, tais conceitos antípodas e estanques passaram por uma rigorosa reavaliação por intermédio da dialética de Hegel e Marx, para os quais a inteligibilidade reside no tempo, quer dizer, no processo histórico.


Sucede, no entanto, que esses dois pensadores dialéticos somente consideraram a história da sociedade e ofuscaram, destarte, a história individual.


O indivíduo e sua história foram mais recentemente prestigiados em autores como Freud e Piaget, os quais perceberam e sistematizaram com nitidez a inteligibilidade do evolver temporal de cada ser humano.


Mas, retomando a película de Lars von Trier, impõe-se dizer que Joe e Seligman não têm história, não evoluem, pois a sexualidade da primeira é constante, homogênea e onipresente desde a infância até a velhice, ao passo que a do velho Seligman é nula desde sempre.


Assim, os personagens dissolvem-se em conceitos atemporais, na dicotomia entre corpo (Joe) e alma (Seligman), e perde-se qualquer inteligibilidade.


Cabe indagar: será que Von Trier preocupa-se com inteligibilidade? Creio que não, conquanto o cinema mostre a imagem no tempo, com abranger, portanto, sentido e processo. Logo, uma arte que poderia ensinar.


Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 18 de junho de 2023

Os corpos cinzentos e a apologia do estupro

 Definitivamente, o fascismo é um fenômeno social deveras complexo, mas algumas características podem ser destacadas. 


O filme de propaganda nazista intitulado "Os corpos cinzentos", por exemplo, apregoa, de forma subliminar, a harmonia social contra a luta de classes: a união das equipes branca e negra em uma só equipe cinzenta antolha-se-nos perfeitamente consentânea com a ideologia de negação da existência de classes sociais distintas, ou ao menos de postulação de existência de harmonia entre as classes, sendo certo que a energia advinda dessa união classista deve ser canalizada na violência contra um inimigo comum também ideologicamente construído. 


Em uma ilação livre, penso que a apologia do estupro pode ser uma forma fascista de harmonia entre os seres humanos do sexo masculino, advindos de todas as classes sociais, contra o inimigo comum do sexo feminino, restando justificada a violência numa pretensa "socialização dos meios de reprodução sexual".


Observe-se que tal forma de misoginia fascista tem grande e irracional apelo entre humanos do sexo masculino de todas as classes sociais, o que cumpre de forma bastante adequada a função ideológica de negação das lutas de classes em nome da harmonização social sob o império irrestrito e totalitário do capital.

Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Domingão do núcleo: Franz Kafka, ou as razões do absurdo.

 Titã inconteste da literatura universal, Franz Kafka descreve com linguagem burocrática, em novelas como “A metamorfose” e “O processo”, situações aparentemente absurdas que muito inspiraram outros gigantes da escrita, como o Eugène Ionesco de “O rinoceronte” e o Samuel Beckett de “Esperando Godot”.


A narrativa de Kafka, conquanto de precisão milimetricamente racional, insere seu leitor nas entranhas de um pesadelo, e nisso está sua proximidade com o Sigmund Freud de “A interpretação dos sonhos”, obra que disseca com instrumentos cirúrgicos a estrutura inteligível do pensamento que irrompe durante o sono.


Eis a questão de Kafka: elucidar racionalmente o absurdo, desvendar-lhe as razões. Pois o que aparenta ser uma quimera para o indivíduo pode talvez ser inteligível e lógico sob ponto de vista mais amplo, seja social ou histórico.


E aqui, evidentemente, entra a lógica dialética, tão cara a autores como Hegel e Marx, investigadores da inteligibilidade do tempo histórico, o qual sobrepuja, por óbvio, o indivíduo, sendo certo que lhes é cara a elucidação da racionalidade das contradições, os motores da história, no que suplantaram, sem aniquilar, a lógica aristotélica.


Talvez, portanto, todos os autores aqui aduzidos sejam tributários da lógica dialética (ou paraconsistente, como queiram), a única capaz de iluminar o absurdo aparente, as contradições do real, e nisso pode-se aventar que são todos iluministas, por mais estarrecedoras que possam soar suas obras.

Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Domingão do núcleo: CAFÉ MÜLLER

 Alguns anos atrás, aqui em São Paulo, tive a grata satisfação e a honra de assistir ao espetáculo intitulado "Café Müller", da companhia de teatro-dança fundada por Pina Bausch, a qual falecera pouco tempo antes. Pouquíssimas vezes verti lágrimas diante de uma obra de arte, mas nessa ocasião chorei copiosamente, tal a beleza contida na capacidade estética e sintética do espetáculo. 


Ora, é cediço que os cafés, em geral, são lugares públicos onde as pessoas comparecem e se reúnem para conversar, namorar, comemorar e até mesmo trabalhar, ou seja, são logradouros que cumprem o importante papel de favorecer os relacionamentos humanos e a socialização.


O Café Müller de Pina Bausch, todavia, representa a antítese dessa função social. Nele, as relações humanas são contorcidas e mesmo obstadas por uma realidade cruel que aflige a todos os indivíduos: a inafastável solidão. 


Pina Bausch consegue, através da dança, exprimir exitosamente o inefável dessa realidade, a complicada tarefa, que se impõe a todos, consistente em romper o próprio casulo da solidão e estabelecer contato com outrem. 


Será que, como na monadologia de Leibniz, os seres humanos estão condenados ao aprisionamento inexorável dentro de si mesmos? No Café Müller de Pina Bausch, ao menos, as mônadas procuram umas às outras, conquanto de maneira deveras conturbada. 


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

sábado, 17 de junho de 2023

HAIKAI 6

 Entre humanos, um indivíduo só é igual a si mesmo; entre coisas, uma coisa pode ser igual a outra, ainda que sejam duas coisas distintas, de tal sorte que o princípio lógico da não contradição somente serve para humanos.


Não existe, do ponto de vista etimológico, o átomo: tudo que existe pode ser dividido em infinitas partes.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Cultura: Fausto

 O VATICÍNIO DE “FAUSTO”: RESENHA DO FILME HOMÔNIMO DE ALEXANDER SOKUROV. 

(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)


Em sua película intitulada “Fausto”, o realizador russo Alexander Sokurov aborda com um espetáculo visual deslumbrante a lenda ou mito medieval do cientista que vende sua alma ao Diabo em troca do amor carnal com a jovem Margarete, em enredo lastreado no poema homônimo de Goethe.


Cuida-se de obra bastante instigante, que nos remete a algumas reflexões sobre tal mito medieval, cuja exposição pedimos licença para veicular nesta singela resenha.


É cediço que na religião cristã não há lugar para contrato ou sociedade entre Deus e o Diabo, conquanto a Igreja católica medieval exercesse importante ingerência nas coisas terrenas: na verdade, muito embora a religião funcionasse em boa medida como supedâneo ideológico de uma sociedade dividida entre nobres e servos da gleba, o fato é que a teologia, naturalmente, não podia influenciar na produção e reprodução da vida material do ponto de vista técnico.


Ora, no filme em comento, de Sokurov, o Diabo é representado pelo dinheiro na figura de um usurário, enquanto a ciência personifica-se no sábio doutor Heinrich Faust, sendo certo que os dois contratam entre si e tornam-se sócios: conluio entre ciência e dinheiro, eis a fórmula da futura Revolução Industrial que inaugura o capitalismo em sua manifestação mais acabada.


O mito medieval do Fausto pode ser entendido, pois, como um magnífico vaticínio do surgimento da era em que a ciência, por intermédio da técnica industrial que submete o trabalhador assalariado ao capital, convola-se na nova religião socialmente dominante. Aqui, Fausto encontra o Prometeu acorrentado.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

HAIKAI 5

(Em homenagem à memória de Louis Althusser)

Na produção e reprodução de sua vida material imediata, os seres humanos encerram pouca ou nenhuma liberdade de conduta, senão vejamos:

1. Na produção e reprodução econômicas, o ser humano tem a liberdade de trabalhar ou não, ou de vender ou não a sua força de trabalho;

2. Na reprodução sexuada, o ser humano tem a liberdade de copular ou não.

Por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

ENTREVISTA:LINCOLN SECCO

O Núcleo de Estudos do Capital do Partido dos Trabalhadores (NEC) tem a grata honra e satisfação de entrevistar um de seus mais destacados militantes, Lincoln Ferreira Secco, historiador que completa em 2023 vinte anos como professor livre-docente do departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o qual comenta nesta entrevista um pouco da história de 32 anos de existência desse núcleo de base partidário.

Tal conversa foi conduzida por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, também historiador e membro do núcleo, que a efetuou mediante aplicativo de mensagens para celulares:

NEC: Quais as origens do núcleo, companheiro Lincoln?

Lincoln: O núcleo de estudos de O Capital surgiu no início da década de 1990 em São Paulo, em momento marcado pelo fim da União Soviética e avanço do neoliberalismo no Brasil. Por isso foi tão importante ler O Capital naquelas circunstâncias. Era preciso entender a estrutura e dinâmica de uma sociedade que, malgrado suas mazelas e sua condição periférica, era e é lídimo um produto do modo de produção capitalista. 

N: Onde aconteciam as reuniões e como era composto o coletivo? Contemplava somente militantes do PT ou era aberto a militantes de outros partidos e outsiders?

L.: O grupo foi formado por estudantes da USP e FATEC e se reunia no escritório político do deputado Florestan Fernandes na rua Santo Antônio, no bairro paulistano do Bixiga. Havia os que nutriam interesse apenas acadêmico e os que desejavam unir o estudo com a militância política. Com o tempo permaneceram apenas os militantes. Líamos O Capital e acabamos assumindo o nome de núcleo de estudos de O Capital do PT.

N.: O núcleo desenvolveu outras atividades além da leitura da obra magna de Karl Marx? Como se manifesta o entrosamento entre teoria e prática no núcleo?

L: O núcleo atuou no PT difundindo a literatura marxista, publicando boletins, participando da revista Praxis e dos encontros municipais, estaduais e nacionais do PT. Tivemos delegados nesses encontros, apresentamos teses e promovemos muitos debates com Paul Singer, Jacob Gorender e outros intelectuais de esquerda. Publicamos um livro e fizemos todas as campanhas eleitorais. Tudo sem apoio financeiro de ninguém. Fomos um núcleo de esquerda, embora não da esquerda no PT. Não fomos de tendência alguma porque acreditávamos no debate marxista com a maioria e não dentro de seitas. Nossa divisa era a do Manifesto Comunista: os comunistas não formam um partido à parte do proletariado. Nos últimos anos publicamos a exitosa revista Mouro. 

N: Qual é, em traços gerais, a linha editorial de revista Mouro? É possível estimar a repercussão teórica e política da revista?

L: Como permaneci na editoria numa época em que ela era só impressa, não sei avaliar seu impacto segundo as métricas mais contemporâneas. Mas surgiu para ser uma revista marxista de debate aberta a todas as correntes de esquerda e também a não marxistas que podem dialogar conosco num terreno comum: a defesa da justiça social e da igualdade. 

N: O núcleo apoia ostensivamente candidaturas específicas para o parlamento e para o poder Executivo?

L: Para o executivo sempre apoiou as candidaturas do PT, mas raramente fechou posição em torno de candidaturas proporcionais. 

N: Por que o marxismo é a corrente filosófica predominante no núcleo? Há outras correntes filosóficas e políticas que contemplam o imperativo de justiça social e igualdade?

L: Sem dúvida há. O marxismo foi uma das várias correntes socialistas do século XIX. Proudhon, Blanqui, Owen, Fourier, Saint-Simon, o socialismo positivista e evolucionista, o socialismo cristão, o socialismo nacional e de estado de Lassalle, as correntes libertárias, as várias doutrinas cooperativistas como a de William Morris. Isso para não adentrar o século XX com os comunistas do Linkradikalismus, socialismo liberal italiano etc. Alguns comunistas de esquerda eram marxistas, mas havia místicos como Musham. Mas é claro que do ponto de vista teórico a realização de Marx é inigualável. E só hoje é possível perceber a radicalidade de sua crítica do capitalismo. Veja o caso de um autor maldito como Debord: ele partiu da produção de mercadorias e descobriu que hoje todas elas são envolvidas por imagens. Mas as imagens também são mercantis. Sua crítica da sociedade do espetáculo não é uma teoria da comunicação ou da cultura, mas uma crítica do modo de produção do capital que também produz imagens. Assim como Marx pensou uma relação social entre pessoas mediada pela mercadoria, Debord pensou numa sociedade em que a relação social é mediada por imagens. Claro que Debord também não está isento de erros e brigas pequenas e inúteis. Numa sociedade em que o sujeito é o valor que se autovaloriza incessantemente, os indivíduos não contam porque não decidem. São suportes de relações estruturais. Fazem, mas não o sabem, dizia o velho Karl. Dizer isso não é descartar o indivíduo. Quem descarta a pessoa é o capital e não adianta criticá-lo em nome da restauração do indivíduo empírico. Certamente há espaços para construir espaços de convivência intersubjetivos e cabe à história registrá-los. Nosso núcleo foi um deles como há milhões de outros. Mas temos uma estrutura por transformar e só com marxistas não iremos longe, mas sem o marxismo isso não será possível.    

N: Qual foi a reação do núcleo às crises políticas do mensalão e das jornadas de junho de 2013?

L: O mensalão foi uma tentativa de golpe de estado contra Lula mas também uma crise de relacionamento do PT com as instituições. Foi a última campanha conjunta de que participei no núcleo e no PT. Nós fomos o único núcleo do PT em São Paulo que fez uma  verdadeira campanha em defesa do Partido dos Trabalhadores. Eu me lembro que vários dirigentes, inclusive da esquerda partidária, chegavam à sede do diretório nacional sem camisetas; os símbolos estavam escondidos. Como nossa sede casualmente ou não casualmente era defronte à da direção nacional do partido, na rua Silveira Martins na região da sé no centro de São Paulo, nós nos postamos por alguns dias ali e distribuímos estrelinhas do PT para os dirigentes. Eles aceitavam constrangidos. Nós fomos também a alguns encontros partidários e promovemos alguns debates sempre com a bandeira invertida, mas ela tinha um significado diferente. Nosso lema era bandeira invertida até cair a direção. Aqui eu devo fazer um esclarecimento pessoal. Desde 2003 eu era professor da Universidade de São Paulo e decidi me afastar de atividades político partidárias, embora continuasse na comissão executiva editorial da revista teórica do Partido dos Trabalhadores, a Teoria e Debate. Queria independência política para agir como professor. Nunca escondi dos meus alunos e das minha alunas meus pontos de partida teóricos e até ideológicos porque todos têm. Já em junho de 2013 tivemos uma ação mais teórica. Nossa revista Mouro já abrigava autoras libertárias e marxistas que punham no centro da discussão a rebeldia para superar positivamente o legado dos governos petistas. O GMARX-USP, onde passei a atuar, já antecipava nos debates teóricos parte do que explodiu em junho. Junho foi uma explosão popular sem direção política que por diversas razões foi apropriada pela extrema direita e nós já fazíamos desde então uma discussão sobre o fascismo no Brasil, quando muita gente negava o caráter fascistizante dos movimentos de extrema direita que foram ganhando as ruas em 2016 e que chegaram ao poder em 2018. 

N: Qual é a importância dos núcleos de base na estrutura do PT?

L: Eu vou reproduzir parcialmente o que escrevi no meu livro História do PT que está agora na sexta edição brasileira. Ao meu ver, a melhor maneira de se entender a trajetória de um partido é estudar as formas que ele assumiu ao longo do tempo para dar conta das contradições da sociedade onde ele atua. Assim, é muito mais importante ver a trajetória de um partido federativo de núcleos de base para um partido dominado pelas suas margens parlamentares e institucionais inorgânicas do que ficar discutindo as mudanças do conceito de socialismo nos programas políticos. Claro que os conteúdos importam e eu os discuto, mas não abandonei um aprendizado que tive na USP: a forma significa! Os núcleos de base do PT não desapareceram, mas já no final dos anos 1980 perderam toda a influência sobre as direções locais. Acredito que esta é a maneira dialética de entender o PT. Obviamente que no livro aquela dialética está entranhada na narrativa e não exposta numa introdução teórica. Sou um modesto historiador antes de tudo. E em segundo lugar um aprendiz de marxismos. E claro, sempre um bibliófilo. A história e os livros são minhas motivações. Nos piores momentos, como em 1990, 2005, entre 2018 e 2022 nunca duvidei que temos sempre que recomeçar nosso trabalho teórico e político. Sozinhos, se necessário. Até que várias pessoas resistentes reconstituam nossas redes de solidariedade política.


terça-feira, 13 de junho de 2023

HAIKAI 4

 Entre zero e um, há infinitos números menores do que um.


Demais, deve haver infinitos universos infinitos, que antes do início do tempo eram meras unidades de densidade infinita.


A partir da unidade de densidade infinita, com o início do tempo há a diversidade de partículas, de quantidade também infinita.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.


(Esse texto é dedicado à memória de Georg Cantor)

quinta-feira, 8 de junho de 2023

História da mais-valia: conjecturas

 CONJECTURAS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA MAIS-VALIA


Faz-se mister e urgente corrigir alguns equívocos constantes do meu artigo intitulado “Sobre valor e preço” (Revista Mouro n. 8, dezembro de 2013), notadamente no que pertine à postulação de inexistência da mais-valia absoluta: nesse diapasão, impõe-se aduzir que a mais-valia absoluta existiu historicamente como forma dominante no período da manufatura e do mercantilismo, sendo superada pela forma da mais-valia relativa após o advento da maquinaria e grande indústria e seu respectivo liberalismo econômico, inaugurados pela Revolução industrial do século XVIII. Após tal revolução, a mais-valia absoluta passou a existir apenas como forma residual e complementar ou subsidiária da mais-valia relativa.


Senão, vejamos.


Com efeito, o período da manufatura e do Estado mercantilista marca o incipiente desenvolvimento da forma mercadoria e, por conseguinte, da forma capital, conquanto já se observe bastante evoluído o trabalho assalariado, como consectário da separação histórica entre trabalho e meios de produção.


A manufatura exibe o período de subsunção meramente formal do trabalho no capital, quando a restrita base técnica exige a extorsão da mais-valia mediante o aumento forçado da jornada de trabalho, ou seja, um verdadeiro “roubo” de parte da jornada de trabalho do assalariado, roubo esse que, por si só, representa o incipiente desenvolvimento da forma mercadoria: cuida-se da mais-valia absoluta.


Simetricamente, a acumulação de metais preciosos pelo Estado mercantilista opera-se por meio de medidas protecionistas infensas ao pleno desenvolvimento da forma mercadoria, pelo “roubo” sistemático inerente ao antigo colonialismo e pelos estratagemas característicos desse tipo de política econômica, que engendra um estado de permanente guerra comercial e militar entre os países centrais em nome da consecução de vantagens no também incipiente comércio internacional.


Como existe um limite natural e fisiológico da expansão da jornada do trabalho assalariado, eclode em determinado momento histórico a subsunção real do trabalho no capital pelo advento da maquinaria e grande indústria típicos da primeira revolução industrial, no século XVIII, quando então exsurge a mais-valia relativa como descrita no meu texto supracitado, que foi inspirado, por seu turno, no capítulo X do livro primeiro de “O Capital” de Marx.


Aqui já estamos em período de pleno desenvolvimento das formas mercadoria e capital, restando a mais-valia absoluta como forma meramente residual e subsidiária da mais-valia relativa. Simetricamente, o Estado liberal soterra o mercantilismo em nome do livre comércio, condição necessária a esse novo patamar de desenvolvimento histórico da forma mercadoria e da forma capital.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Kazuo Ohno e a morte

 Na constelação da história humana, algumas estrelas brilham mais intensamente, mas todas cintilam.


Kazuo Ohno foi uma estrela que cintilou resplandecentemente, iluminando o mistério da morte e o sonho da imortalidade.


Na sintética expressão do professor Irion Nolasco:


"Em alguns momentos do espetáculo não se vê mais Kazuo Ohno, mas o fantasma que ele anima. De certa forma, Ohno dança desafiando a morte e chega a uma relação tão próxima, íntima e desesperada com ela, que acaba adquirindo o rosto de sua adversária. Rude, essencial, espontâneo, o Butoh se apõe tanto às formas de dança tradicional japonesa como à dança ocidental. Seu princípio fundamental é o desejo de aniquilar o corpo, de torturá-lo, para que ele possa revelar sua verdade. A carne é negada para ressaltar a tensão do espírito"


Kazuo Ohno divisa a imortalidade e busca seus antepassados por intermédio da espiritualidade, da alma, dissimulando a matéria, com produzir transcendente epifania estética. 


Mas eu, particular e humildemente, na condição de materialista histórico, devo destacar que somos todos imortais, não pela espiritualidade, mas pela prática materialmente considerada.


Na produção e reprodução de nossa vida material, nós humanos transmitimos às gerações vindouras, pelo trabalho e pela atividade sexual, o legado da perpetuação das sociedades, e vivemos nestas gerações vindouras assim como elas vivem em nós, pois o indivíduo humano não é fruto apenas de seu tempo, mas do passado que o produziu, pois, como diria o velho Mouro, "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".


Somos imortais, por conseguinte, não individualmente, mas na continuidade do tempo histórico, da história das sociedades humanas.  


Destarte, podemos agora deduzir, contra a convicção sintética do professor Irion Nolasco, que o Butoh de Kazuo Ohno constitui uma arte que revela a imortalidade da matéria pela prática sensível da dança, vale dizer, sua perenidade situa-se no mundo empírico dos movimentos corporais esteticamente coordenados, por mais espiritual que isto possa parecer.


Vale observar, por derradeiro, que as estrelas também morrem, e toda a pompa e toda a glória da história humana deverão também perecer.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

terça-feira, 6 de junho de 2023

TEMPO E VALOR

 De proêmio, exoro licença para remeter os eventuais leitores ao texto intitulado “Sobre dinheiro e mais-valia”, publicado neste portal eletrônico aos 23 de abril do corrente ano.


Demais, é de rigor ponderar que Marx e Engels, fundadores do socialismo científico, legaram-nos um ensinamento perene: enquanto os seres humanos não resolverem o problema da produção e reprodução material imediata de suas vidas, o âmbito econômico remanescerá determinante de suas ideias e ideologias.


Nesse diapasão, antes do advento do modo capitalista de produção, a indústria cingia-se ao artesanato, em que o trabalhador permanece como proprietário dos meios de produção, sendo certo que Marx, em O Capital, sua obra magna, livro primeiro, descreve as formações sociais pré capitalistas para deduzir sua teoria do valor, em que o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário para produzi-la é que determina o valor de certa mercadoria.


Ora, tempo de trabalho abstrato, bem entendido, pois é ele que constitui o elemento comum a duas mercadorias diversas que se permutam.


Dessume-se daí que o tempo abstrato da física, aquele do relógio, é fruto das formações econômicas pré capitalistas cuja indústria funda-se no artesão individual que é dono dos próprios meios de produção.


Com o advento da subsunção real do trabalho no capital típico da maquinaria e grande indústria capitalistas, já não é mais exequível relacionar a mercadoria a um trabalhador individual artesão, do que segue que a teoria do valor acima exposta vai sendo paulatinamente corroída, até que o dinheiro, corroído pelo fenômeno inflacionário, perde sua materialidade por completo, iniciando como dinheiro mercadoria cunhado em metais preciosos, passando pela moeda fiduciária e culminando nas atuais criptomoedas.


No âmbito das ideias, o tempo abstrato e absoluto dos relógios vai sendo substituído pela acepção de espaço-tempo da teoria da relatividade.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.


Este texto é dedicado ao camarada Maurício Barbara, com admiração e apreço.

Do princípio da abstração nas artes e nas ciências

 Tintas para as artes plásticas, bem assim instrumentos para a música, não existem prontos na natureza, mas são frutos do engenho humano: eles servem para remover as cores e os sons de seus suportes encontradiços na natureza, colimando sua existência individual e abstrata para uso da espécie humana: a nota dó e a cor vermelha, verbi gratia, somente existem nessa forma individual e abstrata nos instrumentos musicais e nas tintas por força do engenho e da indústria humanos.


Simetricamente, eu diria que tal processo de abstração, que verificamos nas artes, acima, também ocorre nas ciências: consoante se dessume do texto “Breve discurso das hipóstases”, publicado neste portal eletrônico e onde postulo a vertente nominalista da matemática, o número consiste em abstração elevada à máxima potência, pois pode referir-se a qualquer coisa, mas não existe pronto na natureza, pois é fruto do intelecto humano; bem assim na álgebra como na geometria, em que conceitos como ponto e reta, por exemplo, são construtos da engenhosidade do Homo sapiens.


Eis o princípio da abstração nas artes e nas ciências, que produz para nosso serviço as cores, os sons e os números.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

Temas sobre racionalismo

 Temos de um lado o racionalismo absoluto de Hegel, para o qual o real é racional e o racional é real, caudatário do solipsismo tipicamente cartesiano; e de outro o determinismo absoluto caro aos estruturalistas, como Lévi-Strauss e Althusser, em que razão e liberdade ocupam espaço praticamente nulo.


A meio caminho desses dois extremos queda a psicanálise de Freud, que divisa o processo diacrônico e dinâmico entre razão e inconsciente, conquanto remanesça adstrito ao estudo do indivíduo. 


Mister se faz, pois, estudar a dinâmica diacrônica da relação social e histórica entre os processos eminentemente inconscientes e estruturais, de um lado, e os processos racionais de outro, sendo certo que o lastro teórico de tal investigação deva ser, por suposto, o materialismo histórico, que descortinou pioneiramente o movimento histórico das ideologias sociais na obra "A ideologia alemã".


Estou plenamente convencido de que, consoante tal lastro teórico, há uma tendência histórica bastante evidente pela qual o pensamento racional vai gradativamente tomando espaço dos processos inconscientes e estruturais, até um determinado momento em que as relações de produção e as forças produtivas apresentarão certo nível de desenvolvimento que permitirá um elevado grau de controle dos indivíduos livremente associados sobre seu modo de produção e seu devir histórico, modo de produção este associado ao advento do comunismo em escala mundial. 


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

DOIS PARADOXOS?

1. A introdução de inovação tecnológica para aumentar a força produtiva do trabalho provoca invariavelmente um aumento da composição orgânica do capital, o que conduz a um declínio tendencial de sua taxa de lucro. A despeito disso, a busca por inovação tecnológica parece ser uma invariável no modo capitalista de produção;

2. O aumento da força produtiva do trabalho deveria reduzir o valor individual das mercadorias, com provocar deflação, mas o que se observa, no modo de produção capitalista, é um predomínio quase absoluto da inflação, que permanece e resiste às medidas macroeconômicas que lhe são infensas. 


por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.   

TÓPICOS EXPLORATÓRIOS E INCIPIENTES

1. Georg Wilhelm Friedrich Hegel ensinou-nos, em sua Ciência da Lógica, a pensar dialeticamente e, assim, prescindir do elemento divino nos estudos de jaez científico, a saber, ensinou-nos a afastar o elemento imponderável nos estudos científicos; demais disso, descortinou a lógica do tempo histórico, isto é, do movimento diacrônico, tão caro a autores do século XIX do porte de Karl Marx e seu admirado Charles Darwin.

2. Tais autores, no entanto, sucumbiram algures e em certa medida à lógica formal aristotélica, que introduz, invariavelmente, aquilo que denomino elemento imponderável ou divino nos estudos científicos: no caso de Marx, tal elemento aparece como “mercado” ou “concorrência”, malgrado todo o seu esforço no sentido de criticar a economia política de seu tempo, em que tal elemento exsurge preponderante; no caso de Darwin, conquanto crítico superlativo do criacionismo, o elemento divino introduz-se sorrateiramente na forma da “natureza” ou “meio ambiente”, como procuraremos expor a seguir.

3. Marx, no capítulo décimo do primeiro livro de sua obra magna, O Capital, que versa especificamente sobre a mais-valia relativa, resvala na ideologia do mercado e consectários, como a concorrência, ao tentar, de forma a meu sentir infrutífera, discorrer sobre como o capitalista pioneiro em seu ramo industrial, empregando inovação do processo fabril que aumenta a força produtiva do trabalho, pode vender sua mercadoria por um valor menor do que o vigente para tal mercadoria, porém maior que o tempo de trabalho necessário para produzir a sua mercadoria, derrotando então a “concorrência” e auferindo lucros exorbitantes. Sucede, no entanto, que a própria acepção marxista de valor, exposta logo no primeiro capítulo de sua magnum opus, representa uma média social: ora, como pode então o capitalista pioneiro vender sua mercadoria por um valor menor que o valor vigente para tal mercadoria, se tal valor é, conceitualmente, uma média social que, portanto, abroquela também o tempo de trabalho que tal pioneiro dispende para produzir tal espécie de mercadoria? Nesse diapasão, digamos que o valor vigente para determinada mercadoria seja de dez libras e que um capitalista inovador pioneiro consiga, mediante introdução de nova técnica de produção, reduzir o tempo de trabalho necessário para produzir tal mercadoria, de sorte que seu "valor" seja reduzido, para esse capitalista específico, para uma libra: esse capitalista venderia então sua mercadoria por, digamos, três libras e assim, além de derrotar a concorrência, auferiria uma vantagem de duas libras em relação ao "valor" de uma libra com que consegue produzir tal mercadoria. Isto está em parte incorreto, porquanto, no momento em que o capitalista pioneiro consegue produzir sua mercadoria pelo tempo de trabalho correspondente a uma libra, o valor vigente de tal mercadoria reduz-se, pois esse "valor" de uma libra do capitalista pioneiro passa a integrar a média social, empurrando-a para baixo, de tal maneira que a vantagem de tal pioneiro também é empurrada para baixo. Isso nos oferece um exemplo patente de como Marx resvalou na lógica formal, e mesmo em uma aporia formal, ao incorporar de forma acrítica o elemento imponderável da concorrência, típico da economia política que ele tanto se empenhou em desmistificar

4. De maneira um tanto mais genérica e difusa, o mesmo ocorre com Charles Darwin em sua “A origem das espécies”, que incorpora também acriticamente o elemento imponderável da luta pela existência (uma certa “concorrência” biológica”) como fator da seleção natural: ora, a dicotomia indivíduo versus meio ambiente, encontradiça difusamente em tal obra, não se sustenta, porquanto os indivíduos “são”, a saber, coincidem com o meio ambiente, descabendo cogitar em maior ou menor aptidão ao mesmo. Um exemplo muito rústico poderia esclarecer esse ponto: os ratos de coloração mais escura adaptaram-se melhor à perseguição das raposas porquanto são presas menos fáceis em relação ao campo de visão desses seus predadores. Ora, por que motivo as raposas não desenvolveram uma melhor visão para capturar os ratos mais escuros? O elemento imponderável da seleção natural também reside na aleatoriedade das mutações genéticas, bem como no assim denominado “dogma central da biologia molecular”, estabelecido em 1958 por Francis Crick: tal “dogma”, como qualquer outro elemento de jaez religioso, começa a ser questionado pela ciência, com as recentes descobertas de casos em que características adquiridas são hereditariamente transmitidas, vide a respeito o interessante artigo de Kevin Laland publicado no jornal Folha de São Paulo de 11/03/2018.

por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador

domingo, 4 de junho de 2023

Cultura: momento musical.

 DIONÍSIO, APOLO E SÓCRATES NA MÚSICA.

Em sua magistral obra intitulada "O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo", o filósofo Friedrich Nietzsche encetou uma fecunda distinção entre os impulsos artísticos apolíneo e dionisíaco, colimando demonstrar o renascimento do espírito da tragédia grega antiga no assim denominado "drama musical" de Richard Wagner, mas não parou por aí, pois também deduziu o aviltamento de tais impulsos artísticos pelo racionalismo socrático, que teria ferido mortalmente a arte grega mítica de Ésquilo e Sófocles. 


Nietzsche, decerto, associava o impulso dionisíaco à música e à assim designada "natureza uno-primordial", bem assim o impulso apolíneo às artes plásticas e ao "princípio da individuação".         


Eu ousaria aventar aqui a hipótese segundo a qual na própria música também encontram-se em permanente atividade e dinamismo os elementos encontradiços na arte em geral, a saber, os ingredientes dionisíaco, apolíneo e socrático. 


Com efeito, a dissonância atonal e a indistinção natural e primordial dos sons pode muito bem ser atrelada ao impulso dionisíaco, enquanto as notas musicais individualmente consideradas e melodicamente justapostas acomodam-se perfeitamente ao impulso apolíneo e ao seu "princípio da individuação". 


Já o elemento socrático-teórico, por assim dizer racionalista da música poderia corresponder às regras do tonalismo na teoria musical, que está em constante altercação com a dissonância atonal típica do gênio dionisíaco.


São hipóteses a desenvolver, sujeitas ao crivo crítico.


(por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA)

Salomé adormecida: mais um conto dominical.

 DOIS PESADELOS DE SALOMÉ EM NOITE DE LUA CHEIA


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)



Lou Andreas-Salomé, então sexagenária, adormeceu sob um luar desfocado que penetrava em seu quarto pela janela escancarada em uma noite de verão escaldante. Não tardou muito para que sua mente, já embalada pelo poder morfético, inaugurasse um complexo jogo de tramas agourentas provocadoras de estremecimentos involuntários que, contudo, não a despertavam.


*


O pequeno séquito dos epígonos de Sócrates, dentre eles o poeta Meleto, avançava lentamente pelas ruas de Atenas quando o mestre fez um abrupto gesto para deter a deambulação, pois estavam diante de uma majestosa estátua de mármore do deus Apolo, e então ele encetou seu discurso, dirigindo-lhes a palavra.


“Cidadãos, examinem detidamente esta escultura de mármore e revelem-me em seguida qual a origem do prazer estético por ela engendrado”


“Sua beleza”, responderam.


“Mas a beleza origina-se nos olhos ou no intelecto?”, provocou Sócrates.


“Nos olhos, que nos dota de visão”, apostaram.


“E a visão não nos mostra precisamente que a beleza da figura em mármore reside nas simetrias e nas proporções harmoniosas lapidadas pelo artista? Logo, o artista não se valeu da ciência dos geômetras para esculpir esta bela imagem?”, redarguiu o mestre.


Todos aquiesceram.


“Ora, então é mister avençar que a origem da beleza da imagem está no intelecto, porquanto a geometria é uma atividade eminentemente intelectual, do que se dessume restar em nossa alma, e não no corpo, o prazer estético, com culminar evidente, mais uma vez, que a ideia precede a matéria”, concluiu o sábio.


Meleto ouvia aquela preleção silenciosamente, sem conceber, todavia, como o deus Apolo podia ser reduzido a uma equação matemática.


*


O carteiro bateu na porta de Lou Andreas-Salomé portando um pacote amarrado em cordões, e ela incontinenti desfez os nós respectivos para então descortinar uma volumosa resma de cartas manuscritas que a tomaram de sobressalto, pois reconhecia aquela caligrafia.


Não havia dúvida, cuidava-se de um conjunto muito antigo de missivas escritas por Friedrich Nietzsche e endereçadas ao também filósofo Paul Rée.


*


Em dado momento, enquanto o séquito prosseguia sua marcha, Meleto e Sócrates destacaram-se dos demais e ficaram a sós na retaguarda, quando então o poeta pegou delicadamente no antebraço do filósofo, paralisando-o, para em seguida tomar-lhe o tronco em virtuoso amplexo. Beijou a fronte do mestre da maiêutica e deslizou seus lábios para baixo até que eles encontrassem e tocassem suavemente a boca entreaberta de Sócrates, que o repeliu com desenvoltura, mas sem violência, dizendo simplesmente: “Não”


*


Obcecada com o que tinha em mãos, Lou Andreas-Salomé passou a ler sofregamente aqueles manuscritos que, a certa altura, passaram a descrever com minúcias uma paixão arrebatadora, quase patológica, de Friedrich Nietzsche por seu amigo Paul Rée.


*


Acontecia um animado festim dedicado ao deus Dioniso na casa de um famoso político ateniense, fartamente abastecido de comida e vinho, bem assim acompanhado de músicos e dançarinas para alegrar o ambiente, quando a certa altura Sócrates, um dos convidados, passou a discorrer para um pequeno grupo, Meleto e Platão inclusos, sobre a natureza do amor.


Na acepção socrática exposta na ocasião, derivada das ideias de uma certa Diotima de Mantineia, o amor somente deseja aquilo de que carece, de tal sorte que, para atingir a plenitude do amor e alcançar o belo em si mesmo, o cidadão deve agir como se fora um asceta, sem jamais apropriar-se verdadeiramente do objeto amado.


Tal concepção agradou a Meleto, o qual já provara outrora do gosto amargo do desejo frustrado, e ele em seguida mergulhou a fundo na embriaguez etílica que o banquete proporcionava, dançando e cantando desajeitadamente.


Foi então que Meleto, ao adentrar o pátio interno da casa, em que se divisava uma fonte central com a estátua do deus Dioniso, presenciou uma cena desconcertante que acontecia em um dos cantos do lugar.


Conquanto embriagado, o poeta ficou em silêncio e à espreita, conseguindo distinguir um casal que se abraçava e se beijava apaixonada e ardentemente.


Demais disso, foi capaz de identificar os amantes. A cena era na verdade protagonizada por Sócrates e seu dileto discípulo Platão.


O sangue que lhe corria nas veias ferveu e Meleto, evitando uma síncope, apoiou-se em uma coluna para não tombar, tão opressora foi a imagem que se lhe ofereceu aos olhos.


*


Em uma das missivas agora em poder de Lou Andreas-Salomé, constava uma desesperada reclamação de Nietzsche contra Paul Rée, o qual, assim parecia, repudiara veementemente as declarações de amor do primeiro, chegando mesmo a humilhá-lo sem piedade, com tripudiar ignominiosamente de sua paixão e mesmo de seu intelecto doentiamente narcisista. Rée teria declarado, outrossim, que todo o seu desejo e amor eram dirigidos a Lou Andreas-Salomé, por quem estava disposto a morrer.


*


Meleto denunciou Sócrates às autoridades atenienses, com acusá-lo de corromper a juventude da cidade e desrespeitar os deuses do Olimpo.


O filósofo maiêutico foi condenado à morte, e expirou ingerindo a cicuta.


Platão fez aflorar a público a trama lúgubre forjada por Meleto, o qual foi então banido de Atenas e posteriormente apedrejado até os estertores.


*


A derradeira missiva manuscrita por Nietzsche abordava seu ardil contra o insensível Paul Rée: o filósofo de Röcken pediria a mão de Lou Andreas-Salomé em casamento para enterrar de vez quaisquer pretensões de Rée quanto a ela. Uma vingança com sabor de fel.


*


A sexagenária senhora despertou no meio da noite em completo estado de terror, mas sossegou paulatinamente ao recobrar o sentido da realidade.


Estava feliz por ter recusado a oferta nupcial de Nietzsche no passado, seja lá o que tal atitude tenha de fato significado.

Os plebiscitários: um conto de ficção científica.

O capitalismo ruíra, enfim, por suas próprias contradições endógenas, consoante vaticinado por muitos teóricos marxistas, mas com uma virulência imprevista mesmo pelos mais catastrofistas deles, pois em poucos meses foram removidos os últimos escombros da vetusta sociedade lastreada no capital, com sagrar-se triunfante em todo o planeta, de forma até apoteótica, o comunismo alicerçado na ciência do materialismo histórico legada pelo Mouro de Trier e seu fiel amigo Friedrich Engels, sendo certo que a crise derradeira da organização social burguesa teve como epicentro a cidade de São Paulo, no Brasil, vale dizer, encetou-se nas fímbrias do sistema mundial capitalista, disseminando-se rapidamente em direção a Xangai, na China e, então, atingindo o centro financeiro de tal sistema, mais conhecido como Wall Street, em Nova York, Estados Unidos da América, quando então a burguesia internacional foi instada definitivamente a cair em genuflexão diante de uma classe trabalhadora já armada até os dentes e devidamente preparada para exercer o controle político em escala planetária.


Destaque-se que a crise letal do capitalismo inaugurou-se não no centro do sistema, como era esperado pelos economistas de formação socialista, mas irrompeu na respectiva periferia, em São Paulo, quando, em uma manhã de segunda-feira quente e nublada, com esporádicas e instantâneas precipitações de chuvas de verão pela cidade, os índices da Bolsa de Valores principiaram uma queda tão vertiginosa que nem mesmo os dispositivos de emergência dessa entidade financeira puderam evitar a bancarrota serial da quase totalidade das empresas com capital nela negociado.


Em pouco tempo, a praga da quebradeira de firmas atingiu a bolsa de valores de Xangai, completando um ciclo importante, porquanto Brasil e China já compunham, juntos, a base industrial mundial de época: sem embargo, conquanto os Estados Unidos ainda exibissem o domínio internacional no circuito do capital financeiro, além da incontestável hegemonia militar, o fato é que aqueles dois Estados nacionais, o brasileiro e o chinês, respondiam agora pela maior parte da produção material da humanidade, tanto em relação a alimentos quanto a produtos manufaturados, enquanto a economia do gigante norte-americano já se adstringia aos serviços e à persistentemente notável produção científica, em especial aquela atinente à tecnologia da informação.


Mas Wall Street também sucumbiu à inexorável vaga infensa ao capital, e cedo os índices Dow Jones e Nasdaq foram à lona com a mesma impetuosidade observada em São Paulo e Xangai, arrastando consigo os fundamentos financeiros da mais importante economia do planeta. Com a derrocada de Wall Street, o resto do mundo restou desprovido do vigor que emanava do centro do capitalismo, e também foi mortalmente abalado.


O cenário que se descortinou do desastre do capital mundial oferecia um semblante aterrador, algo como um crash de 1929 elevado à enésima potência, com turbas desoladoramente unidas movendo-se em busca de comida pelas ruas de cidades devastadas como se tivessem sido fulminadas por vândalos drogados e desesperados.


Nada obstante, o derramamento de sangue manifestou-se relativamente parcimonioso, pois uma nova ordem mundial também eclodiu com estarrecedora velocidade: após a quebra da bolsa em São Paulo, incontinenti germinou a partir dessa cidade, principalmente por intermédio das redes sociais na internet, uma liga de comunistas que se expandiu rapidamente rumo a Xangai e Nova York, e que foi denominada a princípio pelo acrônimo “RICO”, de Rede Internacional Comunista, a qual colimava suplantar de vez o capitalismo e implantar uma sociedade mundial fundada nos princípios marxistas.


A RICO radicava em bases sociais integradas por trabalhadores assalariados tanto do campo quanto das cidades, e sua destacada legião de hackers logo invadiu os sistemas de informática do Pentágono, nos EUA, passando a controlar por completo o maior arsenal bélico do planeta, valendo acrescentar que importante parcela dos outrora alienados e embrutecidos soldados norte-americanos passaram a compor as hostes da liga comunista, de tal sorte que a questão militar da revolução mundial restou resolvida sem que a ameaça nuclear pudesse concretizar-se.


Equacionada a questão militar, sobreveio incontinenti a renúncia do chefe das forças armadas dos EUA, o presidente do país, e então as hostes da RICO puderam marchar tranquilamente sobre Washington, tomando de assalto a Casa Branca e formando um comitê provisório para governar por ora a nação que antes conduzira o apogeu do capitalismo internacional.


Em Xangai os acontecimentos tomaram rumo ainda mais calmo, pois o Partido Comunista Chinês aderiu de pronto à RICO, passando a constituir a seção chinesa da liga internacional que revolucionava o mundo ao por o capitalismo a pique.


Mas foi em São Paulo que se consubstanciou o centro decisório comunista em escala planetária, lá onde exsurgira a própria RICO e que exibia um histórico de grande concentração industrial acrescida de importantíssima experiência de organização político-partidária da classe trabalhadora. Outrossim, as antigas agremiações partidárias brasileiras de esquerda aderiram de plano à RICO, com insuflar-lhe conhecimento teórico e prático, acumulado durante décadas, e fornecendo-lhe destacadas lideranças experientes e lapidadas na dura batalha diuturna contra um capitalismo selvagemente excludente que fincava raízes no passado escravista do país.


De São Paulo emanavam as diretrizes políticas da RICO para todo o mundo, as quais encerravam como escopo a abolição completa da propriedade privada dos meios de produção; a constituição de um Estado proletário único em escala mundial, com a supressão de todas as barreiras entre os países, máxime as alfandegárias; a organização da planificação econômica para todo o planeta, com fundamento nas necessidades e possibilidades individuais dos trabalhadores; a mais cabal superação da democracia representativa pela democracia direta, com voto digital pelas redes sociais em todos os sufrágios e com ampla transparência estatal e política; e ainda a integração de comitês centrais e locais de gestores-representantes com mandatos curtos e alta rotatividade entre os mesmos.


Assim delineados os seus alicerces, o comunismo mundial desenvolveu-se, não sem contratempos, por óbvio, mas de forma regular por alguns séculos até alcançar certa estabilidade que ao menos parecia duradoura.


A planificação econômica, em particular, beneficiara-se sobremodo da rápida e vigorosa desinibição da tecnologia da informação, com o advento de uma rede mundial de computadores que convergia e era centralizada por uma forma de inteligência artificial responsável por dirigir a economia do planeta: ela recebia pela rede mundial os dados de cada indivíduo trabalhador com seu núcleo familiar, para então planejar a produção e reprodução da vida material da nova sociedade comunista.


Destarte, cada núcleo familiar alimentava o sistema de inteligência artificial com dados sobre suas necessidades atuais e futuras, para então receber de tal sistema tanto a determinação de quantidade de horas diárias a serem trabalhadas por cada indivíduo do núcleo em seu respectivo ramo econômico, quanto os bens materiais e imateriais de que necessitava para desfrutar de uma vida digna e mesmo próspera, em consonância com as possibilidades da economia mundial e seu grau de desenvolvimento.


Nesse aspecto, impõe-se salientar que a própria velocidade do crescimento econômico era decidida democraticamente com supedâneo em estudos científicos disponibilizados a todos pelo sistema e submetidos a sufrágio direto, estudos esses que relacionavam impacto ecológico com crescimento populacional, sendo certo também que o decrescimento da economia, nos moldes previstos pelo estudioso romeno-americano Nicholas Georgescu-Roegen no século XX, sempre aparecia como opção a ser sufragada pela sociedade.


Cuidava-se, pois, de um sistema de inteligência artificial retroalimentado, que recolhia e distribuía dados consoante as diretrizes prévia e periodicamente decididas pela própria sociedade comunista mundial, a qual, por seu turno, recebia de tal sistema dados e estudos científicos para novos sufrágios sobre a desinibição econômica.


Fisicamente, o computador central de inteligência artificial, denominado PLANO-RICO 1, permanecia na cidade de São Paulo e era administrado pelo comitê gestor composto por representantes periódica e democraticamente eleitos pela população mundial.


Entrementes, a produção científica da humanidade evoluía a passos largos, tampouco sem contratempos, o mais das vezes de caráter ético, mas sempre norteada por um escopo rigorosamente observado pelos cientistas, a saber, a redução tendencial da duração do trabalho obrigatório e heterônomo, de sorte a permitir a ampliação do labor autônomo, vale dizer, aquele decidido pelo próprio indivíduo trabalhador e não por PLANO-RICO 1.


Nesse diapasão, o segmento científico da robótica tinha haurido grandes contribuições para a população do planeta, criando aparelhos que aliviavam sobremaneira o trabalho heterônomo, mas deparara-se com limites quase intransponíveis, porquanto os robôs, por mais similares que fossem aos humanos, não exibiam a mesma flexibilidade e maleabilidade de corpos orgânicos, sendo certo, outrossim, que sua inteligência apresentava sérias limitações quanto à simulação perfeita das funções cerebrais de seus criadores, nada obstante as conquistas surpreendentes de PLANO-RICO 1.


Mas outro segmento da ciência de ponta apresentava-se deveras alvissareiro: a engenharia genética auferira notáveis conquistas no campo da eugenia dos vegetais e na clonagem de animais, inclusive quanto ao gado leiteiro e de corte. Todavia, problemas conceituais extremamente intrincados obstavam o próximo passo que a biotecnologia estava prestes a dar: a clonagem de seres humanos.


Com efeito, as limitações da robótica acima referidas indicavam obviamente que, sem rebuços, era interessante para a população comunista a obtenção de clones humanos para servirem de escravos nos trabalhos heterônomos mais básicos, isto é, que não exigissem atividade cerebral mais sofisticada, pois a esta deveria ser conferido status de apanágio dos trabalhadores não-clonados.


Ora, o ressurgimento da escravidão, ainda que de seres humanos clonados, representava questão evidentemente tormentosa para uma sociedade comunista, porquanto encerrava sério potencial para trazer de volta, por assim dizer, “toda a velha merda”, como diriam Marx e Engels, eis que os clones escravos poderiam simplesmente rejeitar sua condição servil e insurgir-se contra os humanos “naturais”, ou ainda poderia tornar-se conceitualmente difícil distinguir o indivíduo natural do artificial, o clonado do não-clonado, entre outros pontos controvertidos.


Mesmo assim, diante das discussões que já começavam a sobrecarregar a rede mundial de computadores, PLANO-RICO 1 propôs à humanidade o seguinte plebiscito: proibir ou autorizar a clonagem de humanos, sendo que, neste último caso, ofereciam-se diversas opções quantos às condições em que tal experiência seria levada a cabo.


Por fim, o resultado do plebiscito autorizou a clonagem de humanos, sob a condição de que as experiências respectivas quedariam adstritas, no que pertine ao lugar, ao ainda desabitado continente antártico, o qual passaria a ter como atividade exclusiva as investigações nesse segmento da biotecnologia, tendo sido decidido ainda que qualquer resultado material de tais experimentos, ao menos por enquanto, restaria confinado à Antártida, sob pena de morte, inclusive com a implantação imediata de rigorosíssimas medidas de segurança de caráter militar para evitar a qualquer custo a saída de clones do continente austral gelado.


Outra condição resultante do plebiscito referia-se à necessidade de condicionar geneticamente os clones humanos ao trabalho e à obediência inconteste diante dos “naturais”, algo assim como a obtenção de abelhas ou formigas operárias em forma de seres humanos, incapazes de sublevação contra seus senhores.


Demais disso, o plebiscito dispusera que os clones somente poderiam sair da Antártida para trabalhar para os humanos quando se demonstrasse em índole definitiva, pelos meios científicos adequados, a segurança de sua utilização como escravos absolutamente subservientes, na medida em que a possibilidade de desobediência fosse rigorosamente igual a zero.


Restaria definir por ulterior regulamentação do plebiscito, na oportunidade da liberação dos clones para o trabalho escravo fora da Antártida, em que atividades eles poderiam laborar e qual o nível de inteligência que lhes seria permitido e adequado a tais atividades.


Algum tempo depois, nascia na Antártida o primeiro indivíduo humanoide clonado, por sinal com traços orientais, a quem se atribuiu a alcunha de CIRO 1, uma pequena inversão das letras de RICO.Doravante os humanoides nascidos da clonagem seriam denominados “plebiscitários”, em alusão à consulta mundial que autorizara as experiências de tal jaez no continente antártico.


Tempos depois, a população residente na Antártida já perfazia o montante de aproximadamente 44.000 habitantes, assim divididos: 30.000 militares do exército, marinha e aeronáutica, não considerados os robôs androides que lhes serviam de apoio logístico; 4.000 civis, ligados à área científica; e, finalmente, 10.000 plebiscitários, tanto descendentes diretos de CIRO 1, quanto derivados de outras linhagens menos antigas. Ora, evidentemente, a proporção de 3 militares para 1 plebiscitário guardava razões de segurança adrede e previamente definidas por PLANO-RICO 1.


Com efeito, as experiências com clonagem humana na Antártida lograram êxitos retumbantes, motivo de muito orgulho para os cientistas que laboravam em tal projeto, sendo certo que os plebiscitários em pouco tempo apresentavam características invejáveis aos humanos, tais como vigor físico e longevidade acentuados, inclusive com adaptação perfeita ao rigoroso clima do continente austral, tanto que lhes era despiciendo o uso de vestuário apropriado para frio intenso; fertilidade para reprodução sexual autônoma, independente dos humanos, mas sob rígido controle militar destes; inteligência média um pouco superior à da humanidade em geral; e, finalmente, fácil adaptabilidade aos trabalhos pesados, máxime em razão do pronunciado vigor físico.


Todavia, o motivo da proporção populacional acima destacada, com larga vantagem numérica para os militares, radicava no fato de que uma das condições para a liberação dos plebiscitários para residência e trabalho escravo fora da Antártida ainda não havia sido implementada, qual seja, a subserviência total aos humanos e a decorrente impossibilidade de desobediência diante de suas ordens, valendo ressaltar que, ao contrário, os saudáveis, inteligentes e longevos plebiscitários antárticos ostentavam boa dose de hostilidade perante os humanos e até mesmo certa empáfia diante destes.


Os plebiscitários habitavam uma pequena cidade por eles mesmos construída e mantida, situada no centro geográfico do continente antártico, muito parecida com uma miniatura de Reykjavik do começo do século XXI, com seus prédios baixos e casas de telhados coloridos, a qual, no entanto, era inteiramente circundada por uma altíssima muralha em cuja extremidade foram instaladas cercas elétricas de voltagem altamente letal, sendo certo que do lado externo de tal muralha quedavam de prontidão patrulhas militares armadas com os dispositivos bélicos mais eficientes e destrutivos, inclusive de jaez nuclear, para o caso de necessidade de aniquilação completa da cidade plebiscitária.


Dentro da cidade, à qual fora conferido o nome de “Gênesis”, também havia uma patrulha composta pelos mais treinados e capazes agentes de polícia militar de que se tinha notícia no planeta, que os habitantes plebiscitários haviam denominado de “paulistas”, em referência à capital mundial do comunismo, mas que eram facilmente identificáveis pelo armamento que portavam e pelos seus trajes, compostos por indumentária à prova de bala e com aquecedores embutidos, mais parecida com vestes espaciais da antiga NASA, enquanto os moradores clonados distinguiam-se pela forma absolutamente irreverente com que se vestiam, como se estivessem em uma localidade litorânea tropical ou mesmo equatorial, pois usavam negligentemente trajes de banho ou esportivos absolutamente inapropriados, em termos humanos, ao clima intensamente frio do lugar. Por isso os paulistas chamavam os plebiscitários de “cariocas”.


Conquanto diuturnamente policiados pelos paulistas e desautorizados de sair de Gênesis, os plebiscitários desfrutavam de relativamente alto padrão de vida material e cultural em Gênesis, sendo-lhes permitido inclusive o acesso à internet, embora completamente monitorado, mas não dispunham de direitos políticos fora da cidade, a qual era praticamente autogerida por eles mesmos, de tal sorte que a relação com o computador central PLANO-RICO 1 era nula e definitivamente proibida. Somente o sistema local de inteligência artificial de Gênesis, designado PLANO-RICO 2, podia comunicar-se com o central PLANO-RICO 1, porquanto, por óbvio, a cidade plebiscitária não era economicamente autossuficiente, dependendo em boa medida de suprimentos forâneos.


Interessante notar que, no plano cultural, Gênesis definia-se por um passadismo e uma nostalgia bastante inusitados e insuspeitos para seus criadores humanos: na música, por exemplo, fazia grande sucesso entre os plebiscitários adolescentes, naquela época, a antiga banda de rock inglesa Radiohead, e os grupos musicais formados pela “molecada” clonada tocavam insistentemente seus hits como “Idioteque”, “High and dry” e “Motion Picture Soundtrack”. Na dança, gostavam muito das velhas coreografias de Pina Bausch e do grupo belga Peeping Tom, enquanto nas telas da cidade exibiam-se vetustos diretores como David Lynch, Peter Greenaway, David Cronenberg, Stanley Kubrick e, sobretudo, Ingmar Bergman e Hitchcock. Nas artes plásticas, Alberto Giacometti, Van Gogh, Vik Muniz, Calder, Rothko, Louise Bourgeois e Picasso tinham a predileção dos plebiscitários, ao passo que na literatura os nomes mais citados eram Kafka, Joyce, Fernando Pessoa, Leminski, Yoshiyasse, Mishima, Kawabata, Saramago, Jorge Luis Borges, Stanislaw Lem, Philip K. Dick, Arthur Charles Clarke e Thomas Pynchon. Evidentemente, muitos outros nomes da orbe artística eram lembrados, mas a atração pelos séculos XIX a XXI restava patente, e artistas do Extremo Oriente eram particularmente admirados, talvez em razão da grande proporção de orientais entre os habitantes de Gênesis.


Na verdade, contudo, o fato é que a humanidade comunista não sabia o que fazer exatamente com aquela comunidade de plebiscitários encravada no meio da Antártida que, a rigor, não guardava qualquer serventia para os seus criadores, porquanto malograram todas as tentativas de conceber clones geneticamente obedientes dirigidos ao trabalho escravo para os humanos. A rigor, a manutenção de Gênesis configurava um estorvo para a humanidade, seja pelos custos que exigia, seja pelo constante perigo que representava. Ora, manter uma população de clones que, além de potencialmente perigosa, gerava custos econômicos sem retribuir com rigorosamente nada para a humanidade parecia ser, com efeito, um despautério, o qual já engendrava indignações públicas na internet e demais canais de comunicação.


A indignação intensificou-se depois que um policial militar de Gênesis apareceu misteriosamente morto, possivelmente assassinado por garrote e despojado de seu armamento e de suas roupas, sendo certo que a ulterior busca por tais pertences e por indícios conducentes aos criminosos culminou em absolutamente nada.


A revolta da humanidade com tal acontecimento em Gênesis foi de magnitude tal que teve de ser organizado por PLANO-RICO 1 um novo plebiscito, agora sobre a continuidade ou não do projeto de clonagem humana mantido na Antártida, o qual resultou, como já era amplamente esperado, na decisão de terminar incontinenti com tal projeto. Todavia, no que pertine à forma de sua supressão, quedou avençado que Gênesis não seria aniquilada por meios nucleares, mas sim deixada à míngua, sem suprimentos até a morte de todos os plebiscitários, o que, à toda evidência, demonstrava uma boa dose de crueldade fundada provavelmente no rancor da humanidade contra o assassinato do “paulista” na cidade dos clones antárticos.


Assim decidido, encetou-se a retirada completa de humanos da Antártida, até que Gênesis restou solitária como única manifestação da civilização no continente gelado. Além dos mantimentos, as comunicações dos plebiscitários com o restante do planeta foram completamente removidas, mas os clones souberam com antecedência de sua condenação à morte por inanição.


Com o moral plebiscitário profundamente abalado, uma melancolia contagiante tomou conta de toda a população de Gênesis, que resolveu então, em plebiscito local, por uma medida trágica: o suicídio coletivo. Mas decidiu-se também que iriam, por assim dizer, “pregar uma peça” contra os humanos, em contrapartida pela sua crueldade contra seres vivos por eles mesmo criados. Destarte, foi elegida uma comissão de cem plebiscitários dispensados do suicídio coletivo, com a incumbência de levar a bom termo a vingança contra a humanidade.


Assim, com as armas do paulista recentemente morto, as quais haviam sido escondidas exitosamente dos militares humanos sediados na Antártida, os plebiscitários abriram uma enorme cratera na muralha com cerca elétrica que os confinava, e por tal cratera passou um grande barco que haviam construído em pouco tempo, o qual seria conduzido pela comissão dos cem clones até o litoral antártico para, daí, alcançarem a costa austral da Argentina.


Nessa comissão estava um garoto plebiscitário de quatorze anos, com traços orientais e de nome CIRO 2, o qual exibia a característica de ser um gênio intelectual, portador de uma inteligência de magnitude e alcance raramente observados na história do planeta Terra. A missão dos cem plebiscitários dispensados do suicídio coletivo consistia em infiltrar sub-repticiamente CIRO 2 entre os humanos e deixar que ele se encarregasse da “peça” contra a humanidade.


A comissão dos cem plebiscitários logrou êxito.


Aos trinta e sete anos de idade, CIRO 2 já constava entre os cientistas chefes do Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo, responsável pela manutenção e constante aperfeiçoamento de PLANO-RICO 1. Ele residia na cidade de São Bernardo do Campo, nas adjacências da capital mundial, onde mantinha, no porão de sua casa, um laboratório clandestino de cuja existência somente ele tinha conhecimento, onde realizava os experimentos que culminariam na revanche de seu povo contra os humanos.


Tais investigações colimavam a criação de um cérebro sintético que reproduziria com perfeição os neurônios e as sinapses de CIRO 2, transportando toda a identidade individual, vale dizer, a personalidade e a inteligência do gênio plebiscitário para um pequeno chip.


Obtido tal dispositivo com sua identidade, CIRO 2, que tinha acesso praticamente irrestrito ao computador PLANO-RICO 1, substituiu, por assim dizer, o cérebro de tal computador pelo seu chip genial. Empreendeu os testes devidos para comprovar que PLANO-RICO 1 agora tinha uma mente com a personalidade, vale dizer, a própria identidade de CIRO 2, voltou para casa e praticou o haraquiri ao som de “No surprises”, do Radiohead, é claro.


Não tardou muito tempo para a superveniência de uma catástrofe nuclear mundial que extinguiu a humanidade.



Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador 

sábado, 3 de junho de 2023

Por uma nova ética

 Max Weber estabeleceu de forma duradoura a conexão entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, ao passo que Karl Marx evidenciou que tal conexão deriva diretamente de relações de produção alienadas, as quais encerram no lucro do capital o objetivo primordial da sociedade moderna, ou seja, o lucro, para tais autores, representa o valor moral mais elevado da sociedade capitalista. Eis a ética do capital: valorização de valor, vale dizer, obtenção de mais-valia e lucro.


Por óbvio, cuida-se de ética alienada, imposta aos indivíduos por relações de produção que eles contraem entre si de forma heterônoma, ou seja, a despeito e mesmo contra a sua vontade. 


Friedrich Nietzsche, conquanto extremamente polêmico, estava certo ao suscitar a necessidade de uma nova ética, o que denominou "transvaloração de todos os valores", ao identificar a metafísica como responsável por submeter os homens a certa moral infensa à sua mais recôndita e verdadeira natureza, mas descurou de estabelecer, por assim dizer, as condições materiais para essa nova moral, já que as relações de produção alienadas do capitalismo e a decorrente divisão entre classes sociais antagônicas limitam a "humanidade" a um conceito vago e abstrato. 


Mister, pois, suplantar a alienação capitalista e sua divisão entre classes sociais antagônicas para que exsurja uma humanidade concreta, real e prática, condição inafastável de uma nova ética humana, demasiado humana. 


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira)

Excerto acadêmico

 O filósofo e matemático britânico Alfred North Whitehead, coautor dos Principia Mathematica com Bertrand Russell, tinha boa dose de razão ao afirmar que todo o pensamento filosófico ocidental não passava de glosas marginais à obra de Platão. 


Decerto, parece que tardou quase dois mil anos para que a filosofia ocidental esboçasse um começo de superação das dicotomias diretamente derivadas do trabalho do grande pensador grego, o qual, partindo do indivíduo humano, opôs corpo e alma e, assim, suscitou a autonomia do mundo das ideias. 


Com efeito, a oposição entre racionalismo e empirismo, entre o mundo das sensações e o mundo da inteligibilidade, bem assim todas as variações filosóficas derivadas dessa dicotomia, somente foram postas em questão com a dialética de Georg W. F. Hegel e Karl Marx, os quais, suplantando a perspectiva cognitiva do indivíduo, divisaram a inteligibilidade do tempo histórico das sociedades. 


Ora, ocorre que a perspectiva individual, a saber, o tempo de vida de um indivíduo não se mostra suficiente para apreender, pela experiência empírica, a dialética inerente ao tempo histórico vinculado à longa duração, aos grandes movimentos das sociedades, ou, em terminologia especificamente marxista, à lógica da sucessão dos modos de produção das sociedades: daí talvez a suposição platônica de que o mundo da inteligibilidade, ou o mundo das ideias, encerrasse autonomia em relação ao mundo material.  


Por isso é que apenas tardiamente esboçou-se a superação das dicotomias derivadas da perspectiva individual de Platão e seus glosadores ocidentais, mas os quase dois mil anos de seu predomínio filosófico apenas corroboram a majestade desse grande pensador, talvez o maior de que se tenha notícia.  


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

Duas hipóteses materialistas

 A primeira hipótese, concisamente, consiste na ideia de que, em A ideologia alemã de Marx e Engels, em particular, enquanto houver divisão do mundo em classes sociais e em Estados nacionais, a "humanidade" somente pode ser um conceito vago e abstrato, ou seja, ideológico, sendo certo que sua realidade concreta, a saber, a da humanidade, somente será efetiva com o advento do comunismo em escala internacional, ou seja, com a extinção das classes sociais e também da divisão entre Estados nacionais. 


Logo, o comunismo é que inaugura a humanidade em seu sentido prático e concreto, e os indivíduos deixarão de ser meros vetores de determinações estruturais do capital (vide a obra de Louis Althusser) para desfrutarem da verdadeira liberdade, uma liberdade também prática e concreta. 


Nesse diapasão, o humanismo, no âmbito do materialismo histórico, é um humanismo histórico, prático e concreto, que divisa e peleja pela construção da verdadeira humanidade sob a égide do comunismo. 


A segunda hipótese, de jaez epistemológico, consiste na ideia de que o materialismo histórico exibe uma transcendência prática, isto é, o advento da apreensão cognitiva da história da humanidade sob a perspectiva materialista, em particular no que pertine aos mecanismos lógicos da sucessão dos modos de produção, somente foi possível porquanto a superação da pré-história da humanidade, na acepção acima, tornou-se uma possibilidade concreta com o advento da classe proletária dominada pelo capital.


Destarte, ao sujeito cognoscente tornou-se possível superar a perspectiva do indivíduo e sua experiência empírica imediata, adstrita ao tempo de uma vida humana, para alcançar a lógica concreta e materialista do tempo histórico da humanidade, somente porquanto a própria possibilidade de superação histórica e prática do capitalismo e, portanto, da pré-história da humanidade tornou-se também real e efetiva com o advento do proletariado como classe despojada dos meios de produção.  


São duas hipóteses em caráter bem embrionário à espera, respeitosamente, de contribuições e sugestões dos caros leitores. 


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador).

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O diálogo com as fontes da historiografia

 Certa feita, meu professor de história medieval, o exímio historiador brasileiro Hilário Franco Júnior, fez uma instigante objeção ao método de seu colega britânico, o festejado marxista Perry Anderson, o qual, na obra Passagens da antiguidade ao feudalismo, não teria recorrido em seu trabalho às fontes primárias, documentais, adstringindo-se a manusear a historiografia disponível a propósito. 


Tal objeção antolha-se-nos bastante pertinente, conquanto problemática, senão vejamos. 


Ora, a historiografia disponível, em meu humilde sentir, não deve ser desprezada como fonte do trabalho do historiador, sob pena de se olvidar o avanço científico que ela representa (o "estado da arte", por assim dizer), como se todo o trabalho historiográfico fosse inócuo. Isaac Newton já advertia que enxergou mais longe pois apoiara-se sobre ombros de gigantes, e isto vale também para a história, como para as demais ciências humanas.   


Mas estou convicto de que o professor Hilário Franco Júnior aludia a uma questão metodológica mais delicada, a saber, o retorno às mesmas fontes primárias documentais. Bem, se a historiografia elaborada com fontes primárias guardasse o apanágio de dizer a verdade acabada sobre tais fontes, então, realmente, seria inútil e ocioso retornar indefinidamente a esses mesmos documentos, mas, evidentemente, não é isso o que ocorre nas ciências.           


O material empírico da disciplina histórica, a saber, isso a que tenho designado fontes primárias, não ostenta o condão de falar por si só, ele deve ser interrogado pelo historiador e, nesse caso, como aduzia Karl Marx, cada época da história humana formula as questões que lhe são pertinentes, e que pode responder. Por isso, as fontes primárias documentais devem ser sempre revisitadas, pois cada época histórica, considerando o avanço científico prévio, formula a tais fontes questões diversas por intermédio do ofício do historiador. 


Eis o interminável e necessário diálogo entre o historiador e suas fontes, primárias ou não, o qual garante o avanço científico da disciplina histórica. 


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)

quinta-feira, 1 de junho de 2023

A história é arte ou ciência?

 O título desta singela intervenção encerra, no meu humilde modo de entender, uma falsa dicotomia. 


Com efeito, o modo como se escreve a História é que determina seu caráter científico ou artístico. Pode-se escrever a História: 1) para o deleite estético, como literatura; ou 2) como contributo para a inteligibilidade do tempo e do devir, ou seja, para enriquecer o conhecimento do presente por meio do passado.


Observe-se que este discernimento não é estanque nem envolve juízo de valor: há bons historiadores que conseguem produzir deleite estético com efetiva contribuição ao conhecimento e à ciência, sendo certo, aliás, que o prazer não está definitivamente dissociado da inteligibilidade, ao contrário, o conhecimento também provoca bem-estar. 


A distinção entre arte e ciência participa, em verdade, daquela vetusta dissociação filosófica entre o mundo empírico, ou dos sentidos, e o mundo da razão, ou do intelecto: o ser humano, no entanto, é dotado tanto de razão como de experiência empírica, parecendo muito difícil estabelecer o limite entre ambos. 


O certo, todavia, é que há momentos em que preferimos viajar no tempo para tentar viver e experimentar sensações como os nossos antepassados, e nesse caso escolheremos uma historiografia mais próxima da literatura; outros em que desejamos desfrutar do prazer típico da descoberta científica, o que a historiografia também pode proporcionar: em ambos os casos a História parece ser uma disciplina fascinante e prazerosa.


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.


(Este texto é dedicado ao camarada Marcelo Aparecido Feitosa)