DOIS PESADELOS DE SALOMÉ EM NOITE DE LUA CHEIA
(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador)
Lou Andreas-Salomé, então sexagenária, adormeceu sob um luar desfocado que penetrava em seu quarto pela janela escancarada em uma noite de verão escaldante. Não tardou muito para que sua mente, já embalada pelo poder morfético, inaugurasse um complexo jogo de tramas agourentas provocadoras de estremecimentos involuntários que, contudo, não a despertavam.
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O pequeno séquito dos epígonos de Sócrates, dentre eles o poeta Meleto, avançava lentamente pelas ruas de Atenas quando o mestre fez um abrupto gesto para deter a deambulação, pois estavam diante de uma majestosa estátua de mármore do deus Apolo, e então ele encetou seu discurso, dirigindo-lhes a palavra.
“Cidadãos, examinem detidamente esta escultura de mármore e revelem-me em seguida qual a origem do prazer estético por ela engendrado”
“Sua beleza”, responderam.
“Mas a beleza origina-se nos olhos ou no intelecto?”, provocou Sócrates.
“Nos olhos, que nos dota de visão”, apostaram.
“E a visão não nos mostra precisamente que a beleza da figura em mármore reside nas simetrias e nas proporções harmoniosas lapidadas pelo artista? Logo, o artista não se valeu da ciência dos geômetras para esculpir esta bela imagem?”, redarguiu o mestre.
Todos aquiesceram.
“Ora, então é mister avençar que a origem da beleza da imagem está no intelecto, porquanto a geometria é uma atividade eminentemente intelectual, do que se dessume restar em nossa alma, e não no corpo, o prazer estético, com culminar evidente, mais uma vez, que a ideia precede a matéria”, concluiu o sábio.
Meleto ouvia aquela preleção silenciosamente, sem conceber, todavia, como o deus Apolo podia ser reduzido a uma equação matemática.
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O carteiro bateu na porta de Lou Andreas-Salomé portando um pacote amarrado em cordões, e ela incontinenti desfez os nós respectivos para então descortinar uma volumosa resma de cartas manuscritas que a tomaram de sobressalto, pois reconhecia aquela caligrafia.
Não havia dúvida, cuidava-se de um conjunto muito antigo de missivas escritas por Friedrich Nietzsche e endereçadas ao também filósofo Paul Rée.
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Em dado momento, enquanto o séquito prosseguia sua marcha, Meleto e Sócrates destacaram-se dos demais e ficaram a sós na retaguarda, quando então o poeta pegou delicadamente no antebraço do filósofo, paralisando-o, para em seguida tomar-lhe o tronco em virtuoso amplexo. Beijou a fronte do mestre da maiêutica e deslizou seus lábios para baixo até que eles encontrassem e tocassem suavemente a boca entreaberta de Sócrates, que o repeliu com desenvoltura, mas sem violência, dizendo simplesmente: “Não”
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Obcecada com o que tinha em mãos, Lou Andreas-Salomé passou a ler sofregamente aqueles manuscritos que, a certa altura, passaram a descrever com minúcias uma paixão arrebatadora, quase patológica, de Friedrich Nietzsche por seu amigo Paul Rée.
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Acontecia um animado festim dedicado ao deus Dioniso na casa de um famoso político ateniense, fartamente abastecido de comida e vinho, bem assim acompanhado de músicos e dançarinas para alegrar o ambiente, quando a certa altura Sócrates, um dos convidados, passou a discorrer para um pequeno grupo, Meleto e Platão inclusos, sobre a natureza do amor.
Na acepção socrática exposta na ocasião, derivada das ideias de uma certa Diotima de Mantineia, o amor somente deseja aquilo de que carece, de tal sorte que, para atingir a plenitude do amor e alcançar o belo em si mesmo, o cidadão deve agir como se fora um asceta, sem jamais apropriar-se verdadeiramente do objeto amado.
Tal concepção agradou a Meleto, o qual já provara outrora do gosto amargo do desejo frustrado, e ele em seguida mergulhou a fundo na embriaguez etílica que o banquete proporcionava, dançando e cantando desajeitadamente.
Foi então que Meleto, ao adentrar o pátio interno da casa, em que se divisava uma fonte central com a estátua do deus Dioniso, presenciou uma cena desconcertante que acontecia em um dos cantos do lugar.
Conquanto embriagado, o poeta ficou em silêncio e à espreita, conseguindo distinguir um casal que se abraçava e se beijava apaixonada e ardentemente.
Demais disso, foi capaz de identificar os amantes. A cena era na verdade protagonizada por Sócrates e seu dileto discípulo Platão.
O sangue que lhe corria nas veias ferveu e Meleto, evitando uma síncope, apoiou-se em uma coluna para não tombar, tão opressora foi a imagem que se lhe ofereceu aos olhos.
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Em uma das missivas agora em poder de Lou Andreas-Salomé, constava uma desesperada reclamação de Nietzsche contra Paul Rée, o qual, assim parecia, repudiara veementemente as declarações de amor do primeiro, chegando mesmo a humilhá-lo sem piedade, com tripudiar ignominiosamente de sua paixão e mesmo de seu intelecto doentiamente narcisista. Rée teria declarado, outrossim, que todo o seu desejo e amor eram dirigidos a Lou Andreas-Salomé, por quem estava disposto a morrer.
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Meleto denunciou Sócrates às autoridades atenienses, com acusá-lo de corromper a juventude da cidade e desrespeitar os deuses do Olimpo.
O filósofo maiêutico foi condenado à morte, e expirou ingerindo a cicuta.
Platão fez aflorar a público a trama lúgubre forjada por Meleto, o qual foi então banido de Atenas e posteriormente apedrejado até os estertores.
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A derradeira missiva manuscrita por Nietzsche abordava seu ardil contra o insensível Paul Rée: o filósofo de Röcken pediria a mão de Lou Andreas-Salomé em casamento para enterrar de vez quaisquer pretensões de Rée quanto a ela. Uma vingança com sabor de fel.
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A sexagenária senhora despertou no meio da noite em completo estado de terror, mas sossegou paulatinamente ao recobrar o sentido da realidade.
Estava feliz por ter recusado a oferta nupcial de Nietzsche no passado, seja lá o que tal atitude tenha de fato significado.
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