O Núcleo de Estudos do Capital do Partido dos Trabalhadores (NEC) tem a grata honra e satisfação de entrevistar um de seus mais destacados militantes, Lincoln Ferreira Secco, historiador que completa em 2023 vinte anos como professor livre-docente do departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o qual comenta nesta entrevista um pouco da história de 32 anos de existência desse núcleo de base partidário.
Tal conversa foi conduzida por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, também historiador e membro do núcleo, que a efetuou mediante aplicativo de mensagens para celulares:
NEC: Quais as origens do núcleo, companheiro Lincoln?
Lincoln: O núcleo de estudos de O Capital surgiu no início da década de 1990 em São Paulo, em momento marcado pelo fim da União Soviética e avanço do neoliberalismo no Brasil. Por isso foi tão importante ler O Capital naquelas circunstâncias. Era preciso entender a estrutura e dinâmica de uma sociedade que, malgrado suas mazelas e sua condição periférica, era e é lídimo um produto do modo de produção capitalista.
N: Onde aconteciam as reuniões e como era composto o coletivo? Contemplava somente militantes do PT ou era aberto a militantes de outros partidos e outsiders?
L.: O grupo foi formado por estudantes da USP e FATEC e se reunia no escritório político do deputado Florestan Fernandes na rua Santo Antônio, no bairro paulistano do Bixiga. Havia os que nutriam interesse apenas acadêmico e os que desejavam unir o estudo com a militância política. Com o tempo permaneceram apenas os militantes. Líamos O Capital e acabamos assumindo o nome de núcleo de estudos de O Capital do PT.
N.: O núcleo desenvolveu outras atividades além da leitura da obra magna de Karl Marx? Como se manifesta o entrosamento entre teoria e prática no núcleo?
L: O núcleo atuou no PT difundindo a literatura marxista, publicando boletins, participando da revista Praxis e dos encontros municipais, estaduais e nacionais do PT. Tivemos delegados nesses encontros, apresentamos teses e promovemos muitos debates com Paul Singer, Jacob Gorender e outros intelectuais de esquerda. Publicamos um livro e fizemos todas as campanhas eleitorais. Tudo sem apoio financeiro de ninguém. Fomos um núcleo de esquerda, embora não da esquerda no PT. Não fomos de tendência alguma porque acreditávamos no debate marxista com a maioria e não dentro de seitas. Nossa divisa era a do Manifesto Comunista: os comunistas não formam um partido à parte do proletariado. Nos últimos anos publicamos a exitosa revista Mouro.
N: Qual é, em traços gerais, a linha editorial de revista Mouro? É possível estimar a repercussão teórica e política da revista?
L: Como permaneci na editoria numa época em que ela era só impressa, não sei avaliar seu impacto segundo as métricas mais contemporâneas. Mas surgiu para ser uma revista marxista de debate aberta a todas as correntes de esquerda e também a não marxistas que podem dialogar conosco num terreno comum: a defesa da justiça social e da igualdade.
N: O núcleo apoia ostensivamente candidaturas específicas para o parlamento e para o poder Executivo?
L: Para o executivo sempre apoiou as candidaturas do PT, mas raramente fechou posição em torno de candidaturas proporcionais.
N: Por que o marxismo é a corrente filosófica predominante no núcleo? Há outras correntes filosóficas e políticas que contemplam o imperativo de justiça social e igualdade?
L: Sem dúvida há. O marxismo foi uma das várias correntes socialistas do século XIX. Proudhon, Blanqui, Owen, Fourier, Saint-Simon, o socialismo positivista e evolucionista, o socialismo cristão, o socialismo nacional e de estado de Lassalle, as correntes libertárias, as várias doutrinas cooperativistas como a de William Morris. Isso para não adentrar o século XX com os comunistas do Linkradikalismus, socialismo liberal italiano etc. Alguns comunistas de esquerda eram marxistas, mas havia místicos como Musham. Mas é claro que do ponto de vista teórico a realização de Marx é inigualável. E só hoje é possível perceber a radicalidade de sua crítica do capitalismo. Veja o caso de um autor maldito como Debord: ele partiu da produção de mercadorias e descobriu que hoje todas elas são envolvidas por imagens. Mas as imagens também são mercantis. Sua crítica da sociedade do espetáculo não é uma teoria da comunicação ou da cultura, mas uma crítica do modo de produção do capital que também produz imagens. Assim como Marx pensou uma relação social entre pessoas mediada pela mercadoria, Debord pensou numa sociedade em que a relação social é mediada por imagens. Claro que Debord também não está isento de erros e brigas pequenas e inúteis. Numa sociedade em que o sujeito é o valor que se autovaloriza incessantemente, os indivíduos não contam porque não decidem. São suportes de relações estruturais. Fazem, mas não o sabem, dizia o velho Karl. Dizer isso não é descartar o indivíduo. Quem descarta a pessoa é o capital e não adianta criticá-lo em nome da restauração do indivíduo empírico. Certamente há espaços para construir espaços de convivência intersubjetivos e cabe à história registrá-los. Nosso núcleo foi um deles como há milhões de outros. Mas temos uma estrutura por transformar e só com marxistas não iremos longe, mas sem o marxismo isso não será possível.
N: Qual foi a reação do núcleo às crises políticas do mensalão e das jornadas de junho de 2013?
L: O mensalão foi uma tentativa de golpe de estado contra Lula mas também uma crise de relacionamento do PT com as instituições. Foi a última campanha conjunta de que participei no núcleo e no PT. Nós fomos o único núcleo do PT em São Paulo que fez uma verdadeira campanha em defesa do Partido dos Trabalhadores. Eu me lembro que vários dirigentes, inclusive da esquerda partidária, chegavam à sede do diretório nacional sem camisetas; os símbolos estavam escondidos. Como nossa sede casualmente ou não casualmente era defronte à da direção nacional do partido, na rua Silveira Martins na região da sé no centro de São Paulo, nós nos postamos por alguns dias ali e distribuímos estrelinhas do PT para os dirigentes. Eles aceitavam constrangidos. Nós fomos também a alguns encontros partidários e promovemos alguns debates sempre com a bandeira invertida, mas ela tinha um significado diferente. Nosso lema era bandeira invertida até cair a direção. Aqui eu devo fazer um esclarecimento pessoal. Desde 2003 eu era professor da Universidade de São Paulo e decidi me afastar de atividades político partidárias, embora continuasse na comissão executiva editorial da revista teórica do Partido dos Trabalhadores, a Teoria e Debate. Queria independência política para agir como professor. Nunca escondi dos meus alunos e das minha alunas meus pontos de partida teóricos e até ideológicos porque todos têm. Já em junho de 2013 tivemos uma ação mais teórica. Nossa revista Mouro já abrigava autoras libertárias e marxistas que punham no centro da discussão a rebeldia para superar positivamente o legado dos governos petistas. O GMARX-USP, onde passei a atuar, já antecipava nos debates teóricos parte do que explodiu em junho. Junho foi uma explosão popular sem direção política que por diversas razões foi apropriada pela extrema direita e nós já fazíamos desde então uma discussão sobre o fascismo no Brasil, quando muita gente negava o caráter fascistizante dos movimentos de extrema direita que foram ganhando as ruas em 2016 e que chegaram ao poder em 2018.
N: Qual é a importância dos núcleos de base na estrutura do PT?
L: Eu vou reproduzir parcialmente o que escrevi no meu livro História do PT que está agora na sexta edição brasileira. Ao meu ver, a melhor maneira de se entender a trajetória de um partido é estudar as formas que ele assumiu ao longo do tempo para dar conta das contradições da sociedade onde ele atua. Assim, é muito mais importante ver a trajetória de um partido federativo de núcleos de base para um partido dominado pelas suas margens parlamentares e institucionais inorgânicas do que ficar discutindo as mudanças do conceito de socialismo nos programas políticos. Claro que os conteúdos importam e eu os discuto, mas não abandonei um aprendizado que tive na USP: a forma significa! Os núcleos de base do PT não desapareceram, mas já no final dos anos 1980 perderam toda a influência sobre as direções locais. Acredito que esta é a maneira dialética de entender o PT. Obviamente que no livro aquela dialética está entranhada na narrativa e não exposta numa introdução teórica. Sou um modesto historiador antes de tudo. E em segundo lugar um aprendiz de marxismos. E claro, sempre um bibliófilo. A história e os livros são minhas motivações. Nos piores momentos, como em 1990, 2005, entre 2018 e 2022 nunca duvidei que temos sempre que recomeçar nosso trabalho teórico e político. Sozinhos, se necessário. Até que várias pessoas resistentes reconstituam nossas redes de solidariedade política.
Sensacional
ResponderExcluirMuito bom o depoimento. Parabéns pela iniciativa. Como sempre, Lincoln é muito claro e lúcido. Mas achei meio curta a entrevista.
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