Muro dos Federados - Cemitério Père-Lachaise. Fonte: Wikipedia
Por Agnaldo dos Santos
(Publicado originalmente em Mouro - Revista Marxista, nº 11, 2017, pp. 273-281)
É atribuída a Henrique de Navarra, futuro Henrique IV da França, a frase “Paris bem vale uma missa” (Paris vaut bien une messe), em 1593, quando abandona o protestantismo e adere ao catolicismo, para tentar pacificar o país dividido pelas guerras religiosas. Poderíamos adaptar sua frase para tratar de outro tema da história francesa tão ou mais importante do que os episódios que antecederam e sucederam a Noite de São Bartolomeu: “A Comuna de Paris bem vale um filme”! Sim, porque chega a ser impressionante que o dramático episódio, registrado na literatura, nos depoimentos de seus participantes e em tratados acadêmicos, tenha sido tão pouco explorado pelo cinema, maior veículo de entretenimento moderno, salvo a excepcional série francesa La Commune (Paris 1871), do diretor inglês Peter Watkins, que recriou em formato de documentário ficcional a epopeia dos trabalhadores parisienses.
E até existe um roteiro prontinho esperando ser transmutado em película: é o igualmente excelente O Grito do Povo, uma adaptação de história em quadrinhos de Jacques Tardi do romance Le Cri du Peuple, de Jean Vautrin (HQ publicada no Brasil em 2005 pela Editora Conrad). A este material se somam outros publicados no Brasil anos anteriores, como o relato do communard Prosper-Olivier Lissagaray (História da Comuna de 1871, 1991 pela Ensaio), as cartas e artigos dos contemporâneos da insurreição (Crônicas da Comuna, 1992 pela Ensaio), coletâneas de artigos sobre o tema (Comuna de Paris na História, 2002 pela Xamã; Escritos sobre a Comuna de Paris, 2003 pela Xamã; A Comuna de Paris: os assaltantes do céu, 1983 pela Brasiliense; A Comuna de Paris, 1968 pela Laemmert), além do clássico de Marx (A Guerra Civil na França, primeiro pela Alfa-Ômega em 1973 e depois pela Boitempo, em 2011). Seria possível ainda lembrar outro clássico da literatura política, O Estado e a Revolução de Lênin (com diversas publicações em português a partir da Edições Avante) e o romance de Umberto Eco, o Cemitério de Praga (2011, pela Record), cujo personagem principal envolve-se com jesuítas, garibaldianos, maçons, satanistas, antissemitas e anticommunards. Enfim, trabalhos para inspirar um cineasta interessado no assunto não faltam...
Agora, temos em português o estudo do historiador John Merriman, da Universidade de Yale, cujo título em inglês é bem mais impactante do que o adotado pela edição brasileira: “Massacre – The Life and the Death of The Paris Commune”. Pois, para o estudioso, é disso que se trata – um verdadeiro massacre da elite burguesa francesa contra o povo trabalhador que vivia na capital e que ousou questionar a ordem do Capital. Merriman demonstra grande erudição sobre o assunto, construindo sua narrativa dos acontecimentos nos gloriosos e fatídicos três meses de duração da efêmera revolução, utilizando fartas fontes primárias e secundárias (arquivos da polícia, da prefeitura e bibliotecas parisienses), além de relatos dos atores diretamente envolvidos, como o acima citado Lissagaray. Para um brasileiro que lê esta obra sob a conjuntura do golpe que inviabilizou o segundo mandato da presidenta Dilma Roussef (e, evidentemente, guardando as devidas proporções) soa familiar a contextualização que o autor faz dos antecedentes e do day after da Comuna. Senão, vejamos: uma cidade reluzente, o melhor lugar do mundo para quem tinha dinheiro e um verdadeiro inferno para seus pobres; intervenções urbanas que buscavam “modernizar” uma cidade que ainda mantida alguns logradouros com aspecto medieval, ótimos para levantes e barricadas; uma ascensão econômica pautada em grande medida pela liberdade que a oligarquia financeira desfrutava sob Napoleão III; o papel atuante da religião, no caso a Igreja Católica, em especial na educação primária; a forte oposição da classe artística ao establishment, bem representada pelo pintor naturalista Gustave Coubert, amigo de Pierre-Joseph Proudhon; o papel da mídia escrita no sentido de criar uma narrativa favorável às classes abastadas; uma crise política e econômica que buscou na guerra com a Prússia uma forma diversionista de resolução; por fim, uma repressão com requintes de crueldade e aplaudida de camarote pelas honnêtes gens, enrolados em suas bandeiras nacionais tricolores!
Se é verdade que a história contada por Merriman é bastante conhecida, ao menos pelo típico leitor de esquerda, seu livro ajuda a lançar mais luzes sobre vários aspectos que foram apenas pontuados por Marx e demais autores que se debruçaram sobre o tema. Alguns dispensam grandes comentários: a Comuna foi composta em sua grande maioria por trabalhadores semi-artesanais, pela Guarda Nacional, por jornalistas, advogados e outros membros da classe média progressista, mas também por trabalhadores desqualificados, mulheres que viviam da prostituição e abandonaram a atividade, de pequenos criminosos que viviam até aquele momento de furtos, enfim, de um amplo leque de personagens sociais.
Parece que relativamente poucos roubos foram relatados, e provavelmente apenas dois assassinatos ocorreram numa cidade que, apesar da saída de tantas pessoas, continuava sendo um lugar fervilhando de gente. Charles Beslay atribuiu isso ao surgimento espontâneo de uma “moralidade revolucionária”. Mas algumas evidências sugerem que os roubos na verdade podem ter aumentado. Não sabemos. [...] A Comuna proibiu a prostituição, fazendo algumas prisões e empurrando essa indústria para os cantos, embora doenças venéreas tenham proliferado, assim como acontecera durante o cerco prussiano (p. 109).
E, apesar do tom algo moralista pintado pelo ilustre autor de A Guerra Civil na França (“os ladrões e as prostitutas acompanharam a polícia versalhesa”), Merriman indica que boa parte das atividades relacionadas à vida boêmia e ao mercado de sexo continuaram durante a insurreição, ainda que muitos dos que ali viviam simpatizaram e até lutaram pelo novo regime.
O pesquisador de Yale reafirma o que sabemos sobre a composição política da Comuna, fortemente hegemonizada pelos partidários de Auguste Blanqui, de Proudhon e por alas radicais de republicanos (“jacobinos”), muitos deles veteranos das barricadas de 1848, tendo em menor medida membros da I Internacional, como o tipógrafo Eugène Varlin e a militante feminista russa Elisabeth Dmitrieff, que enviava informações do levante parisiense para Marx. Aliás, ao longo de todo o livro as figuras femininas são onipresentes, bem representadas pela militante anarquista Louise Michel, professora de educação primária e uma das mais destacadas lideranças do movimento. Também neste aspecto o livro resgata algo já indicado pelos textos anteriores que tratam do episódio, por ser algo bastante evidente para ser negligenciado. De acordo com Merriman, foi sobre elas que a fúria das tropas de Versalhes se fez mais visível, durante e após a Semana Sangrenta de 21 a 28 de maio de 1871:
A crença disseminada entre os versalheses de que a Comuna havia sido, em parte, obra de mulheres “arrogantes” e “antinaturais” pode ajudar a explicar o tratamento brutal que algumas delas enfrentaram depois de serem presas. Foram relatados estupros nos primeiro, oitavo e nono arrondissements [distritos]. Georges Jeanneret viu mulheres “sendo tratadas quase como árabes pobres de uma tribo de insurgentes: depois de matá-las, eles tiravam, enquanto elas ainda estavam em seus espasmos de morte, parte de suas roupas. Às vezes iam mais longe, como no sopé do faubourg (subúrbio) Montmartre e na Place Vendôme, onde mulheres foram deixadas nuas e violentadas nas calçadas” [...] A fúria de espectadores da classe alta, em particular mulheres, contra mulheres que supunham ser insurgentes, refletia um desejo de mostrar o perigo potencial de as mulheres esquecerem seu lugar (p. 307).
Mas o livro traz informações negligenciadas ou, pelo menos, pouco trabalhadas por aqueles que estudaram o assunto. Uma delas é a luta que existia no interior da Igreja Católica e como isso pode ter influenciado o destino do arcebispo de Paris na Comuna. Georges Darboy era alinhado ao galicanismo, doutrina católica que existiu na França entre os séculos XVII e XIX, inspiradas no absolutismo de Luís XIV, segundo a qual a autoridade do episcopado francês teria precedência sobre a do papa. O conflito com Roma se manteve durante boa parte do século XIX porque o Vaticano aceitou assinar uma Concordata com Napoleão Bonaparte em 1802, que permitia ao Estado francês nomear os bispos no país.
Quando o arcebispo de Paris morreu, no último dia de 1862, o imperador escolheu Darboy para substituí-lo, ignorando a oposição do Vaticano. Ao saber da nomeação, sua mãe comentou: “Arcebispo de Paris, isso é bom, mas os arcebispos de Paris não duram muito tempo”. Desde que Darboy se mudara para Paris, três arcebispos haviam morrido – dois deles de forma violenta (p. 130).
Ele chegou a participar do Concílio Vaticano I (1869-1870) como oposição à infalibilidade papal, no entanto esta posição foi considerada uma heresia e ao final ele se submeteu à Roma. Mas após ser aprisionado pela Comuna, tornou-se um joguete nas mãos de Louis Adolphe Thiers, presidente do Governo Provisório que capitulou frente aos prussianos. Apesar de todas as tentativas dos comunardos e dos aliados de Darboy em trocar o arcebispo por reféns da Comuna, principalmente por August Blanqui que estava preso e enfermo, Thiers se negou até o fim em fazê-lo, provavelmente prevendo que o fuzilamento do clérigo lhe daria o argumento de que os comunardos era meros bandidos, que não mereciam o tratamento de prisioneiros de guerra. É possível que além deste cálculo político, Thiers tenha sido pressionado pelos monarquistas papistas que não simpatizavam com Darboy, visto como muito próximo dos Bonapartes. Marx também afirma em seu texto que o fuzilamento do arcebispo deveria ser creditado àquele “aborto degenerado” chamado Thiers.
Como a obra procura destacar, além da vida durante a Comuna (capítulos 2 e 3), o processo de combate e a derrota da insurreição, boa parte da pesquisa levou em conta a repressão e as suas consequências para os parisienses que a sofreram. A partir da Semana Sangrenta, os comunardos foram caçados e executados sumariamente. Mesmo quem não era combatente comunardo também sofria o mesmo destino, pelo simples fato de ter permanecido em Paris.
Um jornalista britânico estimou que entre 900 e 1,2 mil pessoas foram mortas [no quartel de] Lobau em 24 horas, sob supervisão do coronel Louis Vabre, dos Voluntários do Sena, um amigo sanguinário de Thiers. O massacre foi realizado de maneira implacável e eficiente. Como escreveu Victor Hugo em “Les fusillés”, “um som lúgubre permeia o quartel Lobau: é o trovão abrindo e fechando a tumba” (pp. 245-246)
E ainda:
Uma história horrível circulou rapidamente: uma mulher pediu para ver seu marido, pai de seus quatro filhos, que fora capturado. Um general respondeu com um sorriso que isso poderia ser providenciado: “Mulher respitável, vamos leva-la até ele”. Ela expressou seus agradecimentos e vários soldados jovens a escoltaram até um muro, onde a mataram. O Exército de Versalhes tinha dado um novo significado para a ideia de “reunir uma mulher com seu marido” (p. 259).
Um aspecto importante, captado por outros estudos sobre a Comuna e que é bastante destacado por Merriman, foi a oportunidade que a repressão à Paris deu aos oficiais e soldados que foram humilhados na Guerra Franco-Prussiana de restaurar seu moral. E para que isso fosse possível foi necessário desconsiderar que suas vítimas eram elas também francesas, e neste sentido o espírito colonialista e o preconceito racial foram fundamentais para justificar a carnificina:
Soldados e comandantes com frequência comparavam os communards a “bárbaros” coloniais. Theophile Gautier os descreveu como “selvagens, com anel no nariz, tatuados de vermelho, dançando uma dança de escalpo sobre os escombros fumegantes da sociedade”. Gaston Galliffet certa vez contrastou os communards com os árabes norte-africanos que o exército francês vinha tratando com brutalidade há quarenta anos: “Os árabes têm um Deus e um país; os communards não tem nenhum dos dois. [...] Muitos soldados de linha haviam lutado na Argélia, no México e até na China e, na opinião deles, os communards não se classificavam mais como franceses do que os insurgentes que eles encontravam no exterior. Alphonse Daudet, outro anticommunard, disse que Paris estava “em poder de denegridos” (pp. 267-268).
Havia uma preocupação, de parte do Governo de Versalhes, com a repercussão do massacre no exterior. A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), com destaque para Marx em Londres, promovia campanhas de auxílio para as vítimas da repressão, e a própria imprensa estrangeira não podia deixar de notar e comentar a matança generalizada. Daí porque parte da imprensa e da produção literária francesa teve papel fundamental na justificação da repressão desumana contra a Comuna:
Entre o fim da Comuna e 1873, surgiram cerca de 300 livros apoiando a versão oficial dos acontecimentos. Esses relatos saudavam a vitória versalhesa e condenavam os “vândalos” e “bárbaros” da Comuna; Theóphile Gautier, Alphonse Daudet e outras figuras literárias publicaram seus ataques aos communards. A interpretação versalhesa da Comuna, procurando justificar a repressão sangrenta, continuou dominante ao longo do período da “República da Ordem Moral”, que durou até 1877. Vinte e um anos depois, um padre antissemita, horrorizado com o advento ao poder na França do povo que já apoiara a Comuna, argumentou que a repressão em 1871 havia sido “talvez ainda suave demais!” (p. 321).
Merriman diz que existe ainda um debate acerca dos reais números sobre o massacre em 1871. Enquanto se estima que os reféns executados pelos comunardos tenham sido em torno de 68 (talvez 66), os números sobre as vítimas de Versalhes são difíceis de calcular. Os números ficam entre 17 mil (oficiais) e 35 mil, pois boa parte das execuções sumárias não tiveram qualquer tipo de registro, e muitas pessoas simplesmente foram consideradas “desaparecidas”, cujos corpos nunca foram encontrados. Muitos foram jogados nos rios, cobertos de cal, queimados e descartados em terrenos baldios fora de Paris. E ainda é preciso considerar o destino daqueles que não morreram fuzilados, mas padeceram nas masmorras da repressão:
Milhares de prisioneiros suportaram viagens longas e sofridas em carroças puxadas por animais até prisões em fortes e navios, bem como em pontões – prisões flutuantes – em Brest, La Rochelle, Rochefort, Cherbourg, Oléron, Lorient ou Île de Ré. Prisioneiros recebiam apenas um pedaço de pão para comer e duas canecas de água, e nenhuma oportunidade de “abaixar para cuidar da mais legítima necessidade!”. Isso era melhor do que ser morto a tiros, mas os prisioneiros ainda sofriam muito e nem todos acreditavam que tinham sorte. Uma canção que prisioneiros cantavam incluía o verso “Prisão é pior do que morte” (pp. 321-322).
Algo impossível de passar desapercebido é a iconografia do evento, que faz lembrar outros eventos igualmente traumáticos das últimas décadas do século XIX, como a Guerra Civil americana e a batalha de Canudos, no Brasil. Dezenas de cadáveres enfileirados um ao lado do outro, mostrando combatentes de diversas classes sociais que foram trucidados pelo Exército versalhês, nos trazem à memória as fotos dos sertanejos igualmente trucidados na Bahia e dos yankees e sulistas em sua guerra fraticida na América do Norte.
Comunardos de 1871. Fonte: Wikipedia
Antonio Conselheiro morto, 1897, em Canudos. Fonte: Wikipedia