ANATOMIA DE UM CREDO - O capital financeiro e o progressismo da produção
(RONALD ROCHA). Editora O Lutador, 148 pp.
John Kennedy Ferreira
Antônio Ermínio de Moraes foi símbolo do capitalismo industrial
brasileiro, criticava a ostentação dos novos ricos e o sistema financeiro.
Certa feita, entrou numa loja para comprar um relógio importado e o vendedor
vendo seus trajes humildes lhe avisou que “não era para seu bico”, mal sabia o
comerciante que estava diante de uns dos brasileiros mais ricos. Vestia-se simples e, reza a lenda, que usava
as roupas de seu falecido pai. Para além
disso, sempre foi um crítico contumaz do sistema financeiro, chegou a dizer: “Se não acreditasse no Brasil, seria banqueiro. ” Isso porque em uma época de crise sua empresa pegou um empréstimo que
levou 15 anos para pagar.
Nesse período, a estruturação do capital monopolista estava iniciando a
sua engrenagem no Brasil e predominava a ideia de que havia uma burguesia
nacional progressista, defensora dos interesses nacionais frente aos capitais
estrangeiros e financeiros. Antônio Ermínio foi um herói burguês da
industrialização tardia, foi saudado na sociedade como líder das “classes
produtoras”.
Antônio Ermínio viveu o apogeu de um capitalismo industrial onde, na
maior parte de sua vida empresarial, não havia a fusão monopolista de capitais
industrial e financeiro. (GORENDER, pág.107, 1981)
Essa áurea romântica e esse debate que se desenvolveu nos anos de 1950,
60 e até os anos 80, sobre o papel progressista de uma burguesia nacional
produtora, voltou requentada com a chegada dos governos social-liberais no ano
de 2002 (Boito, 2017; Martuscelli, 2018; Almeida, 2019). O crescimento que se viu com o
mercado interno aquecido e com a poderosa intervenção do Estado, favorecendo
grupos nacionais em disputas internas e externas, levou a que não poucos
observadores imaginassem o surgimento de uma poderosa burguesia interna capaz
de gerar uma nova fase de prosperidade ao capitalismo brasileiro. Não foram poucos os que enxergaram o Brasil
como sócio menor do seleto grupo dos países imperialistas. (FONTES, 2009, p.
115).
Pouco tempo depois dessa euforia toda, o governo social-liberal de Dilma
caiu sem luta, sem que o seu principal beneficiado, a “burguesia interna”,
tomasse qualquer posição concreta para defender seus interesses. O que levou a
muitos a se perguntarem por que não houve nenhuma resistência dessa fração
política?
Ronald Rocha se propôs a debater a formação atual dos capitais
brasileiros e, de sorte, fazer uma anatomia da composição orgânica de sua
estrutura en démarche de seus interesses políticos.
Dessa maneira realiza seu trabalho em três grandes abordagens: a
primeira será sobre a composição antiga dos capitais financeiros, a segunda
sobre os capitais financeiros no século XXI e, por fim, a decorrência política
desse novo capital nos dias que se segue no Brasil.
Logo de cara, Rocha mostra que se formou um mantra que se repete ano
após ano nos jornais, na academia e mesmo em segmentos da esquerda: uma
separação fictícia entre um capitalismo “produtivo” e financeiro. Segundo essa
lenda, os capitais especulativos vampirizam a sociedade e os capitais
produtivos. Por essa lógica, os capitais usurários seriam uma espécie à parte
do capital.
Rocha lembra que desde o século XVIII, os juros modernos advêm da própria
realização da mais-valia, isto é: uma manifestação do lucro empresarial que se divide
enquanto capital empregado na produção ou comércio e outro, em juros do capital
creditício, mas a sua origem é a própria mais-valia extraída da produção da
mercadoria.
Destaca que tal mobilidade ocorre em função do desenvolvimento da
sociedade civil burguesa nos séculos XVII e XVIII, que apresenta o ser como
indivíduo autônomo e exclusivo, que se desenvolve a partir de sua própria
iniciativa. Essa imaginação reificada
qualifica e vê a individualidade (de seu capital) como sendo oprimido por um
movimento usurário, o que leva a pequena burguesia emparedada - e com pequena
margem de lucros entre as grandes corporações - a crer que a sua produção está
limitada ao pagamento de juros. Sonha-se até com um paraíso terrestre sem os
juros. Evidente que esse setor abstrai o fato concreto de que seus negócios não
teriam começado e nem prosperado sem o capital financeiro e, portanto,
imaginam-se eles os “produtores” onerados pela financeirização da economia.
Por essa ideação, grandes magnatas brasileiros, suas milionárias
federações industriais, mais acadêmicos e imprensa, apresentam esse grupo
econômico como “produtores” e vítimas que são massacradas pelo capital
financeiro, esquecendo o fato de que as riquezas advêm do trabalho humano
expropriado e transformado em mais-valia. Rocha recorda que há mais de 100 anos
o capital financeiro centraliza em um todo orgânico toda a mobilidade dos
capitais.
Retoma então ao processo que desencadeia a financeirização do mundo,
lembrando os estudos e as resoluções dos Congressos da Social Democracia, com a
produção intelectual de John Hobson (Imperialismo,
1902) Rudolf Hilferding (O Capital Financeiro, 1910), Rosa de Luxemburgo (Acumulação Primitiva,1914) e Vladimir Lênin (Imperialismo, fase superior do capitalismo, 1917). Deixando claro que a partir do momento que houve a fusão entre os capitais industriais e financeiros, os velhos capitais autônomos entraram em decadência, tendo como futuro ou se fundir aos grandes conglomerados ou perecer.
De lá para cá a financeirização avançou muito, bastando ver que entre
1980 e 2006 cresceu 14 vezes, enquanto o PIB apenas 5 vezes. As terceira e
quarta revoluções industriais dotaram o capital de uma imensa velocidade, isso
dá a impressão de que o capital não tem base material, mas ao contrário, nunca
a exploração e a extração de mais-valia foram tão amplas e intensas. Dessa
maneira conforma-se um Capital Monopolista Financeiro.
Rocha demonstra que o núcleo de compreensão do sistema capitalista não está
na circulação ou no humor ou outras subjetividades do mercado, mas sim no
processo anárquico de produção de mercadoria, o que é determinante para
entender as crises de 2008 e 2014 e própria política brasileira.
Aqui observamos de que forma as opções dos Conglomerados
Monopolistas Financeiros decidiram por
terminar a experiência social-liberal brasileira, pois essa fração superior do
capital “transformou a massa de
empresários em sua tributária, bem como adquiriu um peso dominante na
exploração do trabalho, na vida social, no controle da mídia, no funcionamento
dos órgãos estatais, na correlação de forças parlamentares, na elaboração das
políticas governamentais e no exercício da hegemonia” (pág.87).
A partir do instante em que o condomínio Monopolista Financeiro
determina as relações sociais, a própria lógica de superação da dependência se
torna uma quimera, já que as relações imperialistas se naturalizaram e
tornam-se partes da realidade geral com o imperialismo agindo internamente e
externamente em seu próprio proveito. Dessa maneira a questão soberana nacional
deixa de ser um apanágio burguês e se “converteu uma tarefa prioritária dos
trabalhadores, na exata medida em que a questão proletária se transformou em
imperativo nacional” (pág. 91).
De igual forma processa-se uma alteração profunda no aparelho do Estado,
que passa a agir conforme os interesses do Capitalismo Monopolista Financeiro,
onde o Estado passa a ser um facilitador dos interesses privados. Se antes a
bancarrota liberal (1929) levou a burguesia a colocar limites à livre
concorrência, nos dias hoje se segue o contrário, o casamento entre os oligopólios
nacionais e o Estado é substituído pelo fortalecimento da livre iniciativa monopolista
financeira tanto nos aspectos voltados à privatização como nas concessões. São
duas faces possíveis da ação e alargamento ou não, das políticas Monopolistas
Financeiras e seu Estado.
Ou seja, a caracterização do Estado como Monopolista e Financeiro define
ainda dois momentos de análise: o primeiro, mostrando as dimensões e
particularidades nacionais em comparações com outras experiências. Rocha toma,
por exemplo, os países que fizeram rupturas com o sistema financeiro mundial
(Cuba, China etc.), chama a atenção que as concessões feitas ao sistema
capitalista foram realizadas por Estados sobre o controle de organismos
revolucionários e comunistas e, em seguida, mostra que as concessões feitas
pelo Estado brasileiro foram promovidas por um Estado burguês sobre controle do
Capital Monopolista Financeiro. Daí decorre algumas falsas compreensões: a mais
notória de todas é de limitar o universo das ações do proletariado ao limite da
ordem burguesa, crendo por falsa análise da realidade e da história em que há
“uma etapa” de democracia burguesa, decorrendo novos pactos com a burguesia
nacional antiimperialista e etc.
A segunda, e tão importante quanto primeira, é a limitação teórica que a
falsa análise da realidade produz, já que limita a ação e a imaginação dos
partidos e movimentos dentro de um Estado dominado (interna e externamente)
pela ação imperialista e de seu condomínio Monopolista Financeiro.
Voltemos a Antônio Ermírio de Moraes, este ao fundar o Banco Votorantim
(BV), disse que “a ideia era não pagar os juros cobrados pelo mercado e
estabelecidos pelo Banco Central”. Poucos anos depois, o BV já era um dos mais
importantes bancos financeiros do país. Antônio Ermírio de Moraes Neto,
herdeiro desse importante grupo econômico, saúda o crescimento explicando a
habilidade e mobilidade que a financeirização possibilitou à corporação.
O livro de Ronald Rocha é uma contribuição que chegou silenciosa e aos
poucos vai ganhando voz no debate após o golpe de 2016. Enquanto alguns se
preocupam em criar uma nova burguesia, em crer na autonomia das frações
burguesas, Rocha mostra o inverso, como deve se organizar e se preparar as
classes proletárias e populares para os embates no centro de uma nova realidade
concreta: o Capitalismo Monopolista Financeiro.
Por fim, as 148 páginas do livro são bem escritas, acinzentadas, cansando
menos ao leitor. O autor é conhecido pelo seu refinado marxismo e exigente
erudição, a orelha vem com um bom comentário do líder sindical José Reginaldo
Inácio e, na outra orelha, uma breve apresentação biográfica do autor. Já no corpo, segue uma apresentação muito boa
de Carlos Machado, diretor do Sinpro-MG.
Um bom texto e uma boa contribuição para os dias que se seguem!
Referências bibliográficas e obras consultadas
ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Burguesia
nacional e burguesia interna: elementos para a análise da atual fase do
imperialismo. Revista Lutas Sociais, n. 43.
São Paulo, 2019.
BOITO Armando. Reforma
e Crise Política no Brasil: os Conflitos de Classe nos Governos do PT. Ed Unicamp/Unesp; Campinas, 2018.
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 2 ed. Rio de
Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010
GORENDER Jabob. A Burguesia
Brasileira. Editora Brasiliense, São Paulo, 1981.
MARTUSCELLI, Danilo Enrico. Classes
Dominantes, Política e Capitalismo Contemporâneo. Editora em Debate-UFSC.Florianópolis,2018
ROCHA, Ronald. Anatomia de um
credo - O capital financeiro e o progressismo da produção. Ed. O Lutador.
Belo Horizonte, 2018.
Site da Votorantin. https://www.sunoresearch.com.br/tudo-sobre/antonio-ermirio-de-moraes/ consultado em 09/ 03/ 2020.