sexta-feira, 26 de julho de 2024

Uma nota de indignação!

 O Supremo Tribunal e outras instituições jurídicas no Brasil, o Quarto Poder, é apátrida e contra-revolucionário. Os imperialistas podem descansar que estão instalados no Governo da colônia brasileira para impedir que Lula instale a democracia, por mais burguesa que seja


A desmoralização das instituições de Justiça no Brasil é antiga, mas continua consumindo o dinheiro do povo que sofre a miséria de um subdesenvolvimento eterno, os crimes impunes, a ingovernabilidade crónica, as irresponsabilidades políticas do Parlamento, as sabotagens do imperialismo que coloniza o país etc. A esperança trazida por Lula escoa pelo ralo do poder de uma burguesia manipulada e corrompida. 

Não é muito diferente do que ocorre no plano internacional que assiste impotente aos assassinatos em Gaza, a guerra na Ucrânia, as sabotagens militares, o uso de armas proibidas, a extinção de soldados que serão substituidos por robôs, a inutilidade de uma ONU impotente, a soberania de um Estado de Israel que trucida a população de Gaza porque quer o lítio e a produção de gaz,  já que os EUA em um mergulho cortou o abastecimento à Europa pela Rússia, empobrecendo a desenvolvida Alemanha que aceita de cabeça baixa. 

Onde está o brio da Humanidade, o respeito pelos que lutam por direitos de cidadania correndo o risco permanente de serem presos e eliminados sem defesa judicial? 

A pretensa Inteligência Artificial é isto? 
Uma brincadeira nefasta e sádica para destruir o planeta e a humanidade gradualmente para alegria de um Bolsonaro, de um Trump, de um Nathanyau, e promover a CIA, o terrorismo, a crueldade, a ambição de riqueza, os assassinos promovidos pelos bilionários?

Zillah Murgel Branco 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A Desindustrialização (algumas notas)

 

Lincoln Secco



O Brasil foi um dos países que mais cresceram no mundo entre 1930 e 1980 ou mais precisamente até 1985. Desde então o emprego industrial caiu como percentagem da população economicamente ativa.

O Brasil não vivenciou uma verdadeira Revolução Industrial e sim um processo de industrialização em que o Departamento I (produção de bens de capital) não foi internalizado. Isso permitiu a regressão vivenciada desde a década de 1970. Todavia, há que se perguntar: as mudanças metodológicas nas contas nacionais alteraram nossa leitura da magnitude e periodização da desindustrialização?



Definição

Uma das maneiras de se definir a desindustrialização é a persistente queda da indústria de transformação no PIB. No caso brasileiro, esse processo se iniciou na metade dos anos 1980.

Para se calcular a participação setorial no PIB divide-se o valor adicionado bruto de cada setor pelo PIB. Para o IBGE o PIB exclui, no entanto, os serviços de intermediação financeira indiretamente medidos. Assim, criou um dummy (uma espécie de setor fictício descrito mais abaixo) para descontar o seu valor. Esse desconto só incidia sobre o PIB total e não sobre cada setor da economia, de modo que a soma dos setores era maior do que o total do PIB.

As instituições financeiras apoderam-se de parte do valor gerado na produção e o registram como receita, mas não produzem esse valor:



O dummy financeiro representa o diferencial entre os juros recebidos e os pagos, isto é, juros imputados como receita às instituições financeiras que não correspondem ao valor efetivo gerado nessa atividade. O que se considera é que as instituições financeiras apropriam-se do valor gerado em outras atividades, pela intermediação financeira, o que implica uma dupla contagem no valor adicionado. Portanto, esse diferencial deve ser descontado no final”¹



Em 1985, ano de maior participação da indústria de transformação no PIB (35,9%), a agropecuária atingiu 12,6%, outras indústrias 12,1% e serviços 52,9%, somando 113,5%² e não 100%.

Paulo Morceiro desenvolveu um método para eliminar tanto as quebras metodológicas do sistema de contas nacionais do IBGE quanto o dummy. Na nova série ajustada a manufatura atingiu o máximo de 27,3% do PIB em 1986.

Nenhuma mensuração do PIB é prefeita. Há problemas com a contabilidade dos serviços e as mudanças deste setor ao longo da história. Também não se leva em conta os “custos” ambientais.


Declínio

O Brasil vivencia uma desindustrialização muito diferente dos países centrais. Os empregos industriais não são substituídos por serviços tecnológicos avançados e nem a indústria sobrante exibe alta produtividade.

Desde 1985 o país passou pela inflação alta, dívida externa, recessão do governo Collor, a valorização cambial e a armadilha dos juros altos criada por FHC, crises internacionais e incapacidade dos governos do PT de modificar a tendência de declínio das manufaturas.

Recentemente, Edmar Bacha, membro da entourage de Fernando Henrique Cardoso na época do Plano Real, escreveu no Valor Econômico que nosso caso não foi o de uma desindustrialização precoce. Aliás, segundo ele, a parcela da indústria no PIB da OECD era 14,3% em 1995 e caiu para apenas 13,8% em 2022, uma medida (0,5pp) dez vezes menor do que a brasileira (5pp) que caiu de 14,5% a 9,3% no mesmo período. Daí segue-se um argumento estatístico de zero significado histórico:


Calculamos que para cada 1pp de desindustrialização na OECD ocorre uma desindustrialização de 1,6pp no Brasil”. Portanto, a desindustrialização de 0,5 pontos percentuais da OECD “consegue explicar apenas 0,8pp da desindustrialização brasileira”.



Essa correlação é arbitrária na medida em que exclui as diferenças entre o centro e o Brasil, país continental, de amplo mercado interno potencial (com milhões de consumidores excluídos em 1995), de renda per capita menor que a europeia, situado na periferia da economia mundo e submetido a uma política econômica que desde 1990 desestimula a indústria com abertura comercial e privatizações de setores estratégicos que geravam encomendas nacionais.

Bacha aplica o mesmo raciocínio para mostrar que a doença holandesa não explica a maior parte da desindustrialização. O termo se refere à descoberta de gás natural na Holanda: as receitas de exportações de produtos primários valoriza a moeda local face ao dólar e reduz os preços dos produtos importados e dificulta as exportações dos manufaturados domésticos. Luiz Nassif desmontou o absurdo de se usar os termos de troca (índices de preços de importações e exportações) para comparar o intercâmbio de um país agroexportador com países exportadores de manufaturados e serviços avançados³.

No Plano Real o juro alto serviu para atrair moeda estrangeira, manter o dólar barato e o Real valorizado. Taxa de juros e câmbio podem explicar muito mais a desindustrialização, embora haja vários fatores que apenas a exposição do processo histórico pode desvendar.

O famoso custo do trabalho foi outra das armas exibidas pelos neoliberais. A ideia é que ao incrementar a diferença entre o que a força de trabalho produz e o que ela custa aumentaria a produtividade. Todavia, esse “custo” vem sendo reduzido por salários baixos e perda de direitos trabalhistas desde a implantação da Ditadura de 1964 e nada disso melhorou a “produtividade” da indústria. Portanto, o custo para se obter o capital, dentre outros fatores, pode explicar mais a falta de investimento na indústria.

Mas em geral não se diz que os juros altos no Brasil são bons, mas sim um amargo remédio necessário. A lógica neoliberal é que se o governo tem déficit fiscal ele precisa emitir título para completar o orçamento, e se faz isso precisa pagar juros. As mega-privatizações, décadas de juros altos, lei de responsabilidade fiscal, teto de gastos e novo arcabouço fiscal não serviram para acabar com a dependência do remédio.

A proposição de Bacha se enquadra no argumento político, com vestimenta técnica, de que a apreciação cambial melhorou o parque produtivo nacional com máquinas importadas; que é cabível a comparação com países muito mais desenvolvidos que o Brasil e que tiveram alguma desindustrialização; e, por fim, que a indústria não precisa ser o carro-chefe do desenvolvimento. Política – ideologia econômica – guerra formam um continuum.




Notas:

1. Cf. Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, 2002.

2. Morceiro, P. C. “Influência metodológica na desindustrialização brasileira”, Revista de Economia Política, v. 41, n. 4, 2021.

3. Nassif, L. “Bacha e a miséria da economia”, GGN, 18-7-2024.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Mundo e Desenvolvimento: novo número

Novo número da Revista Mundo e Desenvolvimento (Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais - IEEI Unesp) 

América Latina na conjuntura pós-pandemia: a crise do sistema e a nova Guerra Fria


https://ieei.unesp.br/index.php/IEEI_MundoeDesenvolvimento


REPHE - novo número

 Novo número da Revista de Economia Política e História Econômica:

Dossiê: Políticas de Regularização e Desenvolvimento Fundiário em Assentamentos de Reforma Agrária e seus Espaços Territoriais

https://www.rephe.net/


segunda-feira, 22 de julho de 2024

O CAPITAL E O INFINITO

A noção de limite pressupõe dialeticamente o seu oposto, a saber, a ideia de infinito. 

Mas a delimitação e a infinitude exibem-se como entidades humanas, demasiado humanas, que quedam arraigadas, pois, nas relações de produção que os seres humanos contraem entre si de maneira heterônoma e alienada. 

Nesse diapasão, parece lícito aventar que a ideia de infinito repousa em grande medida sobre a delimitação consistente na instituição da propriedade privada dos meios de produção, vale dizer, no capital. 

Por tal motivo, Karl Marx enunciava acertadamente que o processo de acumulação de capital não tem limites, ou seja, é teoricamente infinito, malgrado inserir-se em uma sociedade finita. 

De tal contradição ou paradoxo decorrem as crises cíclicas do capitalismo, bem assim a hodierna crise ambiental em sua forma de emergência climática. 





por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

domingo, 14 de julho de 2024

A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

 Vasco Gonçalves traçou o caminho revolucionário em Portugal

A história da Revolução dos Cravos nasceu em Portugal de vários caminhos seguidos pela luta clandestina organizada pelo PCP para despertar a consciência dos trabalhadores oprimidos por uma cultura medieval consolidada pelo governo fascista de Salazar durante meio século.

Em 1947 Alvaro Cunhal propunha ao seu partido um caminho clandestino para os quadros militantes que foram viver junto aos trabalhadores mais pobres para conhecerem a realidade e proporem as formas possíveis de resistência em Portugal. Assim surgiu nos campos do Alentejo o movimento dos trabalhadores agrícolas, nas “Praças de Jorna”, onde se apresentavam aos capatazes do latifúndio para serem contratados. Ali eram escolhidos ou rejeitados, à maneira medieval, sem quaisquer direitos, levados pela fome e subordinados à seleção dos capatazes que rejeitavam os que não pareciam confiáveis. Era um sistema escravista pressionado pela miséria, pelo medo, pela subordinação de classe aos grandes proprietários.

Os militantes comunistas, ao frequentarem as Praças de Jorna como trabalhadores, deram-se conta de que deveriam utilizar essa reunião obrigatória como um local de conversas com a maioria dos trabalhadores que não eram contratados ao preço conveniente aos latifundiários. Com o diálogo que aprofundava o conhecimento da realidade pelo militante e o despertar da consciência dos trabalhadores pela definição dos direitos de cidadania que lhes cabe exigir, começaram a surgir exigências quanto ao valor a ser pago e o turno de todos os candidatos que se apresentavam para o trabalho, até declararem grandes greves que puseram em causa a produção das herdades.

O PCP desenvolveu estudos científicos sobre as condições de produção existente no Alentejo e no Ribatejo assim como o abandono de grandes áreas que dariam trabalho à população desempregada, áreas que eram reservadas para a caça como distração para os ricos. Um dos primeiros livros foi escrito pelo engenheiro Júlio Martins durante os anos em que esteve preso, que acompanhou os estudos debatidos pelo PCP e registrados por Alvaro Cunhal que defendia internamente a ideia de que os militantes clandestinos deveriam envidar esforços para que os temas nascidos do conhecimento da realidade popular e que aos poucos despertava ações reivindicativas fossem levados a jovens estudantes e professores, assim como a profissionais que se agregavam em associações culturais ou religiosas, capazes de aderir a projetos de abertura política por via democrática e de apoio jurídico e humanista às formas de resistência que iam surgindo pelo país.

Com esta perspectiva de unidade com caminhos progressistas, os militantes do PCP também entraram em contato com os estudantes vindos das colonias de Portugal na Africa para se profissionalizarem e fortalecerem as suas organizações sociais e políticas que lutavam pela independência das suas nações. Deram o apoio que necessitavam e acompanharam o movimento, iniciado em Angola em 1960, sob a liderança de Agostinho Neto, na Guiné Bissau com Amilcar Cabral, em Moçambique com Samora Machel.

Por outro lado procuraram atuar junto aos militares das Forças Armadas que foram enviados pelo governo fascista de Salazar, de 1961 a 1975. Essa guerra, que consumiu milhares de vidas da população mais pobre de Portugal, além dos combatentes africanos, ficou conhecida na Europa


 como Guerra Colonial e na Africa como Guerra de Independência, gerando uma surda oposição dentro das próprias fileiras portuguesas, que se expandiu internacionalmente pela contradição com a luta pela paz promovida pela ONU a partir da derrota das forças militares e de ocupação de Hitler em vários países da Europa na Segunda Guerra Mundial.

O colonialismo passou a ser denunciado, tal como o fascismo, apesar de mantidos por Salazar e Franco na península Ibérica. O general Spínola, depois de batido pelo exército das forças populares da Guiné e Cabo Verde, ao constatar a surda oposição à guerra dentro das suas próprias fileiras, viu a oportunidade de preparar um golpe militar contra o governo, agora dirigido por Marcelo Caetano e sob a Presidência de Américo Tomaz.

No entanto, o Movimento do MFA, que já fora iniciado em 1973 liderado por capitães, entre outros Vasco Gonçalves, cujos objetivos eram de substituição do governo fascista por políticos democratas que seguissem o rumo traçado pela Europa e permitisse o desenvolvimento econômico e social dentro do sistema capitalista. Spínola na sua auto promoção escreveu um livro, “Portugal do Futuro”, que foi editado no Brasil durante a ditadura militar com o apoio de Carlos Lacerda, e amplamente divulgado na altura do golpe. Este apoio das direitas internacionais, com a CIA e Kissinger organizando, levou Spínola a confiar na sorte sem se preocupar com os militares que compunham o MFA que ele supunha comandar.

Dado o golpe, sem sangue e com a despedida educada do governo cessante, Spínola assumiu a Presidência e nomeou o direitista Palma Carlos o seu Primeiro Ministro, distribuindo entre amigos e bajuladores os ministérios para assumir a vocação fascista disfarçada com o brilho capitalista inovador de um país moderno, apagando os traços sócio-culturais do medievo. Trocavam a roupa do país pobre, habituado a ser colonizado por quem gere riquezas brilhantes.

A organização militar que supunha comandar, o MFA que reunia conservadores como Vitor Alves, liberais de direita como Melo Antunes, esquerdista como Otelo de Saraiva, e o prestigiado engenheiro Vasco Gonçalves que promovia interessantes debates - com conhecimento histórico e científico, e uma carga humanista profunda, - sobre o desenvolvimento da Pátria e do povo castigado ha séculos, em um sentido superior ao capitalismo mandante, com democracia e igualdade. Vasco Gonçalves, desde o levantamento dos capitães em 73, conversava com seus seguidores da tropa e dos sindicatos sobre a realidade, as reivindicações de leis, direitos trabalhistas e sociais, denuncias de fraudes patronais e fugas do dinheiro para fins corruptos, obtinha o desenho da situação com formas e cores que disfarçavam o roubo que está sempre no poder do capital. Vasco já ia longe dos seus companheiros de farda traçando as medidas fundamentais que trariam o povo, com o conhecimento da realidade, para ajudar a fazer rapidamente a mudança da organização económica, política e social da estrutura do Estado iluminado pelas experiências socialistas históricas. Com a sua inata capacidade de liderança bem fundamentada, Vasco levou a Spínola a indicação dos seus colegas do MFA para propor o fim do primeiro governo provisório e início do segundo com a sua pessoa como Primeiro Ministro.

E assim foi, de 15/07/74 a 19/09/75, mais 4 governos provisórios, dirigidos por Vasco Gonçalves que desagradaram profundamente o Presidente Spínola que seguia a sua opção de obter o apoio da direita internacional sem se preocupar com os programas debatidos por militares e civis contrários a uma estratégia monopolista e em busca do desenvolvimento das condições sociais e de vida da classe trabalhadora. Com um bom planejamento e a presença entusiasta dos trabalhadores sindicalizados informados sobre a situação real da estrutura social e economica do país, rapidamente foram anunciadas as metas governamentais:


 Nacionalização dos setores estratégicos da economia e controle de empresas privadas essenciais ao Estado - energia, química, transporte, comunicação, siderurgia, construção, reparação naval, bancos e seguros com afastamento imediato dos banqueiros e demais responsáveis empresariais para não atrapalharem as medidas de controle do dinheiro público pelos funcionários especializados que agora trocavam ideias com os sindicalizados;

e planejamento das nacionalizações para a estrutura económica de Portugal soberano;

Reforma Agrária no Alentejo e Ribatejo, organizada pelos sindicatos rurais recém criados que, com base no conhecimento da realidade rural e dos estudos técnicos, e na companhia de representantes dos ministérios do Trabalho e o da Agricultura, levavam um número suficiente de trabalhadores para corresponder à área produtiva do latifúndio e iniciar o preparo para plantio;

Leis de arrendamento das terras, aplicadas de norte a sul do país, favorecendo os trabalhadores que eram pequenos proprietários mas dependiam do trabalho nos talhões maiores cujos proprietários não tinham capacidade pessoal e familiar de explorarem;

Direitos trabalhistas e sociais a partir dos debates estabelecidos entre juristas e sindicatos que logo propuseram: controle operário nas empresas, salário mínimo nacional, contratos, férias, décimo terceiro mês, aposentadoria, pensão por idade ou condição de saúde, licença de maternidade;

Ensino - criação de creches locais e escolas do sistema básico e profissional com perspectivas didáticas, de ampliação cultural e de participação no conjunto nacional, superando a necessidade da emigração;

Serviço Médico Nacional com a criação de postos municipais com extensões para freguesias e ligações com os hospitais regionais onde o serviço gratuito ou de valor compatível com o salário seria praticado sob a fiscalização do Ministério da Saúde;

Dinamização cultural levando a todo o território nacional a produção cultural, musical e artística produzida nas cidades e despertando interesses locais pela investigação da realidade local por grupos populares que estabelecem contacto com escolas e associações urbanas;

Fim do colonialismo e reconhecimento da Independência das ex-colonias desenvolvendo o convívio fraterno das populações africanas com o povo de Portugal e a solidariedade humana, social e política entre as nações independentes.

Texto Constitucional assegurando a nível de plenos poderes a defesa jurídicas das conquistas revolucionárias decorrentes do 25 de Abril em 1974 com a participação popular e democrática, assinada por todos os partidos políticos com assento no Parlamento.

Vasco Gonçalves explicava ao povo: “O capitalismo não é reformável porque se baseia em relações intrinsecamente injustas”. E, em outro momento, em outra manifestação popular, acrescentava: “Todos sabem que não sou nenhum intelectual. O que interessa é que hajam homens transparentes que digam verdades ao povo. Não se pode ser neutral. Ou se está com a


 revolução ou contra ela. Coragem, clareza, dignidade humana, afeto com a sociedade onde cresceu.”

No bojo das conquistas populares, a institucionalização do MFA e a criação de um Conselho de Revolução que apoiava Vasco Gonçalves no quarto governo provisório, dá-se a tentativa golpista de 11 de Março despoletada por Spínola e seus apoiantes desesperados que recorriam ao terrorismo. Mal conduzida, esta tentativa não conseguiu interromper o caminho revolucionário, e, ao contrário, sensibilizou o povo para atuar ao lado do MFA que criara um Conselho da Revolução liderado por Melo Antunes a 21/02/75.

Mário Soares, apoiado pelo PPD foi eleito Presidente em 25 de Abril de 75, com uma imagem positiva derivada das conquistas realizadas pelos governos provisórios chefiados por Vasco. Seguira os conselhos de Kissinger e do embaixador dos EUA - Frank Carlucci - que pertencia aos altos cargos da CIA, dupla que acabava de derrubar o governo do Chile e matar Allende em Novembro de 1972.

Iniciou a destruição das conquistas políticas e economicas que criavam uma estrutura sólida para a manutenção da independência nacional contando com apoio do “documento dos nove”, produzido por Melo Antunes e outros militares conservadores (que divergiram do MFA que apoiava o quinto governo). Vasco fora afastado a 19/09/75.

Destruiu a Reforma Agrária que aumentara significativamente a produção alimentar em Portugal, dera emprego à população rural do sul e chamava a atenção dos camponeses do centro e do norte que seguiam o exemplo das reivindicações feitas no Alentejo e Ribatejo criando associações de classe. A “ameaça de guerra civil”, apresentada como “hipótese” ao Ministro Barreto e outros, (nada impossível após os atos terroristas que se multiplicaram durante o verão de 1975 contra sedes do PCP e a esquerda em geral), e a experiência de Carlucci e Kissinger na América Latina e outros continentes.

Devolveram aos banqueiros e donos de empresas no setor estratégico da economia nacional, fortalecendo o capitalismo monopolista e empobrecendo Portugal. Restaram as conquistas sociais e legislativas para as populações pobres de trabalhadores que sempre são manipuladas pelos governos de direita de acordo com as suas conveniências, e são defendidas pelos sindicatos em protestos organizados. Para reduzir a força popular organizada, o governo de Mário Soares promoveu uma cisão na Confederação Sindical enfraquecendo o movimento sindicalista. Portugal foi coberto por uma nuvem cinzenta que apagou a alegria da população que experimentara a solidariedade e a coragem de reivindicar durante quase um ano e meio de vigência da revolução de Abril.

Conservou-se, entretanto, o projeto revolucionário que a Constituição registra (apesar das revisões e cortes realizados pelos partidos de direita) porque Mário Soares foi forçado pela esquerda apoiada pelo povo, a aceitar a consagração da Constituição de Abril em 1976, conhecida como a mais avançada da Europa.

No caldeirão da História nasce a ideia revolucionária, mas também morrem ou são perseguidos os líderes populares capazes de organizar a estrutura do país para efetivar as conquistas revolucionárias.


 Mário Soares, apoiado pela Social Democracia Alemã e seus amigos da CIA, foi em missão ao Brasil em Dezembro de 1976 aconselhar o seu colega Geisel (que, no momento ocupava a Presidência do Brasil durante a ditadura militar que liquidava os militantes de esquerda nos requintes da tortura e do assassinato). Ficou muito bem impressionado “com os olhos azuis de Geisel” (como disse ao voltar a Portugal em entrevista) mas não ouviu os gritos dos prisioneiros torturados no DOPS.

Sugeriu ao colega que encontrasse uma forma de abrandar a imagem da ditadura e aceitar uma eleição democrática para “limpar a barra” perante a opinião internacional. Não se sabe se foi em nome da Social Democracia que sugeriu que um bom candidato “democrático” poderia transitar do partido ARENA, da ditadura, para o MDB dos democratas . Mas o fato é que foi isto que José Sarney fez para se tornar o Vice de Tancredo Neves que morreu 5 dias após a eleição que comoveu o povo brasileiro que se considerava livre da ditadura depois de 21 anos de sofrimentos, deixando a Presidência para o seu Vice, Sarney.

Zillah Branco

O NÚMERO E O ÁTOMO

Tomemos dois pontos no eixo horizontal da abscissa no plano cartesiano, tais como, verbi gratia, os correspondentes aos números zero e um: ora, entre tais pontos há infinitos outros pontos, assim como entre os números zero e um há infinitos outros números; logo, parece um tanto absurdo estabelecer uma distância ou comprimento de reta delimitado, conquanto aleatório, entre esses pontos zero e um, dada a quantidade infinita de outros pontos entre eles. 

Tal delimitação, portanto, antolha-se-nos um paradoxo, decorrente na verdade do conceito de número, uma abstração humana, demasiado humana, que pressupõe a ideia de infinito, algo que não existe realmente no universo, o qual está em expansão e, por conseguinte, não é infinito. 

Parece, outrossim, que a ideia de átomo, na física, compartilha a mesma abstração matemática ínsita no conceito de número, eis que, a princípio, hipoteticamente indivisível, o átomo exibiu-se divisível e, até o momento, não parece haver limite para tal divisibilidade e para a quantidade de partículas subatômicas descobertas ou ainda a descobrir.

A ideia de unidade, pois, parece engendrar estranhos paradoxos.




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

terça-feira, 2 de julho de 2024

CONJECTURAS A PARTIR DE MARXISMO E PSICANÁLISE.

Para a psicanálise freudiana, parece lícito dessumir que a sociedade reflete as fraturas inerentes à natureza da psique humana, de tal sorte que a divisão entre Estado (autoridade da força ou da violência), capital (razão) e trabalho (pragmatismo ou necessidade vital) decorre na verdade da dissociação entre, respectivamente, superego, ego e id nos seres humanos. 

Para o marxismo, ao contrário, a natureza humana propriamente não existe, mas deve ser encontrada no ser social alienado, ou seja, a divisão da psique humana entre id, ego e superego é que reflete a dissociação histórica entre, respectivamente, trabalho, capital e Estado.

Marxismo e psicanálise representam sinais invertidos da teoria ou da filosofia da história, sendo que o primeiro vê no ser humano um fruto da sociedade que lhe domina, enquanto, para o freudismo, a sociedade é um reflexo do ser humano. 

Por isso, o mal estar na civilização deve ser combatido pelo marxismo com mudança social, ao passo que a psicanálise apregoa a mudança individual. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

sábado, 29 de junho de 2024

A indigência do jornalismo econômico brasileiro

 A taxa de desemprego no Brasil baixou para 7,1%, uma das menores da história, e a cotação do dólar, em razão disso, foi a 5,6 reais ontem, pois o denominado “mercado” vive atrelado à famigerada curva de Phillips, malgrado as evidências em contrário!


Mas o jornalismo econômico pátrio atribui a deterioração do câmbio às críticas de Lula ao banco central!


Pura indigência do jornalismo brasileiro!






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

O POLÍMATA KARL MARX.

 A obra magna de Karl Marx, O Capital, foi originalmente redigida no idioma alemão, mas dado o grau de universalismo de seu teor e conteúdo, rapidamente foi traduzida para a maioria dos idiomas, tornando-se uma verdadeira Bíblia moderna, amplamente lida no mundo todo.


O grau de abstração dessa obra, todavia, permitiria que fosse redigida em linguagem matemática, notadamente quanto à lei de contínuo aumento da composição orgânica do capital e correspondente declínio tendencial da sua taxa de lucro, uma lei econômica e matemática descoberta por Marx.


Mas esse autor considerou politicamente mais interessante atribuir à obra um jaez mais discursivo e mais acessível ao grande público não versado na notação matemática, malgrado Marx dominasse tal linguagem matemática e inclusive a tivesse como passatempo, ele que apreciava o cálculo diferencial e integral.


Marx era um polímata, e tinha condições de redigir uma obra matemática, máxime porquanto o nível de abstração e universalismo do teor de O Capital o permitia, mas para fins políticos preferiu o discurso do idioma coloquial, não a linguagem lógica.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

SÓCRATES 2

No impropriamente denominado "comunismo" primitivo, a propriedade privada coletiva de determinado grupo de seres humanos funda-se no binômio trabalho e violência, a saber, pelo trabalho transformam-se determinados meios de produção, notadamente a terra, em produtos satisfativos de necessidades humanas; pela violência evita-se a turbação da posse desses meios de produção por outros grupos humanos. 

O escravismo antigo decorre dialeticamente do trabalho e da violência acima descritos, de tal sorte que surge uma classe social que só trabalha (escravos) e outra que domina esta primeira pela violência (senhores). 

Nos poros e fímbrias do escravismo antigo exsurgem mercadorias decorrentes do excedente de produção desta formação social, que circulam por meio do dinheiro, a saber, uma atividade que dispensa o trabalho e a violência e atua por meio da razão, vendendo caro e comprando barato mediante as diferenças de preços. 

A classe que exerce a circulação de mercadorias pelo dinheiro denomina-se burguesia, que opera racionalmente nas fímbrias do modo escravista antigo de produção. 

Sócrates e seu racionalismo são fruto legítimo, portanto, do dinheiro e da burguesia mercantil, que mais tarde, na história, convolar-se-á no capital industrial.

Todas as formas de filosofias irracionalistas e niilistas posteriores a Sócrates representam um saudosismo do domínio da violência sobre o trabalho no escravismo antigo. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

domingo, 23 de junho de 2024

Mercado, socialismo e comunismo

 Mercado, Socialismo e Comunismo (Notas sobre o Cálculo Econômico)


LINCOLN SECCO 

Qual a diferença entre socialismo e comunismo? Essa é uma das perguntas consideradas simplórias, típicas de iniciantes, mas que escondem uma complexidade. O comunismo é um movimento ou uma finalidade? O socialismo é uma etapa do comunismo ou uma sociedade específica? Quando Nikita Krushev anunciou que na geração seguinte os soviéticos alcançariam o comunismo, o que ele queria dizer?

Embora seja comum separá-los em duas etapas para fins didáticos, socialismo e comunismo são modos de produção que se sobrepõem numa mesma formação social. Ilhas de comunismo existem na formação social socialista e elas tendem a superar o Estado e o próprio socialismo. Mas para fins classificatórios podemos fazer as seguintes definições:

1. O socialismo é a primeira etapa do comunismo em que o mercado continua operando, mas há a predominância da propriedade social, especialmente no setor de bens de produção; a contabilidade social é mediada por uma moeda de contaii através da qual os bancos estatais funcionam como câmaras de compensação entre as empresasiii; e os preços são estabelecidos pela Comissão Central de Planejamento. Já os bens de consumo são livremente escolhidos pelos consumidores e pagos por papel moedaiv.

2. O comunismo é a plena socialização da produção (planificada) e também do consumo e a sociedade pode retirar livremente dos armazens sociais a maior parte do que precisa e a moeda não tem a mesma função do dinheiro enquanto finalidade única dos produtores. O Mercado é um espaço jurídico impessoal em que ocorrem as trocas.

Em resumo, o socialismo é a planificação estatal da produção, mas não do consumo que permanece privado; nele cada um retira do fundo social de acordo com sua contribuição em trabalho; já o comunismo é a socialização tanto da produção quanto do consumo e nele vigora o princípio: “a cada um segundo sua necessidade”. Obviamente que em ambos os casos está pressuposta a satisfação livre do que é básico.

Objeções ao Socialismo e ao Comunismo

Entre as objeções que se prentendem racionaisv ao socialismo e ao comunismo duas se destacavam no início do século XX. A primeira era a de que não seria economicamente factível e a segunda a de que não incentivaria o esforço individual. A persistência do argumento pode ser demonstrada pelo fato de que em 1983 o sovietólogo Alec Nove lançou A Economia do Socialismo Possível, em seguida criticada por Ernst Mandel, já que Nove defendia o uso de mecanismos de mercado no socialismo.

Admitia-se no início do século XX a superioridade moral da ideia comunista, mas no máximo ela seria um corretivo ético para os excessos do capitalismo e não uma economia viável. Quando Marx realizou sua passagem do liberalismo radical ao comunismo na década de 1840vi este termo equivalia a um movimento real que advogava métodos revolucionários, enquanto o socialismo se referia aos experimentos de reforma social baseados em sociedades alternativas na economia capitalista e que Engels denominou utópicas.


No início da Grande Depressão de 1873 o movimento operário passou a se organizar em partidos socialistas, social democratas e trabalhistas. Socialismo e Democracia Social se tornaram termos de teor revolucionário. Somente a derrocada da Internacional Socialista no início da Primeira Guerra Mundial é que transferiu a lealdade revolucionária para a palavra “comunismo”. Os bolcheviques adotaram o novo nome em 1918.

Os comunistas, entretanto, não pensaram que fosse possível chegar ao comunismo em qualquer horizonte temporal previsível e se dedicaram a tratar deproblemas práticos do socialismo.

Alocação de Recursos na Literatura Marxista

O mercado é um espaço impessoal de deslocamento de recursos entre os setores da economia e regulado por normas jurídicas ou no mínimo aceitas consuetudinariamente. Ele existiu antes do capitalismo e permaneceu na Rússia Soviética. Na década de 1920 as indústrias estavam com o governo, mas o campo permaneceu repartido entre proprietários privados.

Na literatura marxista a preocupação com um sistema de preços e com o mercado não era inexistente. Na CríticadoProgramadeGothavii Marxdefiniuaprimeirafasedasociedadecomunistacomoum“períodode transição política” com a permanência do Estado. No plano jurídico, continua a atuar o “direito burguês”, igual para pessoas desiguais, mas a novidade é que pela primeira vez, o princípio e a prática não entram em conflito, e a igualdade jurídica encontra uma base material, pois cessa a exploração capitalista e as diferenças entre classes sociais. As trocas são medidas pelo quantum de trabalho fornecido pelo trabalhador. Os “vales” ou as moedas que o trabalhador recebe representam o valor que ele gerou, deduzidas naturalmente as contribuições para a formação da poupança social. A limitação burguesa do Direito persiste, pois embora não reconheça privilégios de classe, incorpora diferenças individuais, de acordo com a capacidade de trabalho de cada um.

Na segunda fase “só então o limitado horizonte do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e poderá a humanidade escrever em suas bandeiras: De cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas necessidades”. A frase bíblica, dos Atos dos Apóstolos, poderá ser realizada.

Em duas raras passagens de O Capital sobre o modo de produção associado Marx diz:

“Depois da abolição do modo de produção capitalista, mas com manutenção da produção social, a determinação do valor continuará predominante no sentido de que a regulamentação do tempo de serviço e a distribuição do trabalho social entre os diferentes grupos de produção e, por fim, a contabilidade quanto a isso se tornarão mais essenciais do que nunca”viii.

E:

“Pensemos a sociedade como não sendo capitalista, mas comunista: então o capital monetário desaparece completamente, portanto também os disfarces das transações que dele decorrem”.ix

As duas citações podem servir como descrições aproximadas da primeira e da segunda fase do Comunismo. Como vimos anteriormente, no início do século XX costumava-se atribuir ao socialismo a socialização da produção e ao comunismo a socialização tanto da produção quanto do consumo.


Oskar Lange em dois artigos sobre o debate do cálculo socialista na década de 1930 cita vários autores marxistas sobre a questão dos preços e do mercado. Ele faz alusão aKautsky para quem o sistema monetário é indispensável no socialismo; a Trotsky para quem “o plano se verifica e em medida considerável se realiza através do mercado” e Stalin para quem “teremos que dispor de dinheiro por muito tempo, até que o primeiro estágio de desenvolvimento do comunismo, o socialista, tenha se completado”x.

Recordo-me que em suas aulas na USP o professor Paul Singer sempre nos lembrava que as necessidades humanas são infinitas e, por isso, jamais poderemos imaginar um modo de produção em que oferta e demanda se equilibrem ao preço zero. O comunismo foi considerado utópico por Kautsky mais ou menos com esse tipo de objeção.

Oskar Lange foi menos taxativo. Para ele a demanda de muitas mercadorias se torna, a partir de certo ponto, inelástica aos preços. Ainda que o preço fosse zero, o consumo de sabão, sal ou pão não aumentaria apreciavelmentexi. O mesmo pode-se dizer da tarifa zero na cidade de São Paulo. Haveria um incremento residual em função dos que hoje não podem pagar e andam a pé ou que usariam transporte público para lazerxii. E numa economia em que todos tivessem um rendimento básico, praticamente não se modificaria o número de viagens.

Lange recorda que o custo continuaria existindo, de forma que a renda monetária dos consumidores seria reduzida (via tributação) ao equivalente do custo de produção desses bens socializados. Ora, no próprio capitalismo já existem situações assim como a educação pública, iluminação de ruas, parques públicos e outras externalidades econômicas.

O Socialismo na Prática

Nos primeiros anos do poder soviético o que estava em debate era o socialismo e não o comunismo.

Os ultra liberais Ludwig Von Mises e F. Hayek atacaram o modelo socialista como algo ineficiente e mesmo inviável economicamente. Para Mises a estatização na União Soviética fez desaparecer o mercado de bens de capital, sendo assim impossível atribuir-lhes preços.

A extrema direita neofascista resgatou Mises (sem o ler, é óbvio) para defender a liberdade de mercado. Como afirma Lippincott no folclore capitalista o socialismo é algo impraticável e isso é compartilhado tanto pela pessoa da rua quanto pelos economistas.

O economista ortodoxo Fred Taylor foi um dos primeiros a demonstrar o funcionamento econômico do socialismo. Os economistas marxistas, apesar daquelas referências supracitadas, dedicaram-se mais a pensar no interior da teoria clássica, portanto em termos de valor e não de preços. Preferiram evitar o confronto no terreno da economia neoclássica. Lange considerou indispensável combinar a abordagem microeconômica neoclássica com o marxismo e tratar do sistema de preços na contabilidade socialistaxiii.

A fundação da União Soviética em 1922, já com a Nova Política Econômica (NEP) em andamento, propôs problemas práticos de gestão econômica para os marxistas. Lenin propôs um passo atrás para recuperar a produção agrícola e industrializar o país, possivelmente citando Leibniz: on récule pour mieux sauter.

Nem o dinheiro e nem as mercadorias foram abolidas. As empresas foram estatizadas, mas a liberdade de escolher onde trabalhar e o que consumir com a renda continuou existindo mesmo que a liberdade fosse


limitada, como aliás acontece no capitalismo. É verdade que no final da década de 1920 o grupo stalinista promoveu a coletivização da agricultura e também da rede de varejo nas cidadesxiv. Mas os produtos continuaram sendo vendidos e comprados.

Lange trata da formação dos preços de equilíbrio num mercado competitivo, abstraindo inicialmente os monopólios. No mercado competitivo ninguém pode influenciar de forma decisiva a formação dos preços. A economia de mercado chega ao equilíbrio pelo método de tentativas e erros. Os empresários produzem sem conhecer a demanda e os preços funcionam como indicadores para aumentar ou diminuir a oferta. Deixemos de lado o fato de que o “equilíbrio” é um recurso heurístico, pois jamais é integralmente encontrado na realidade.

Von Mises faz uma objeção ao socialismo ao dizer que o planejamento teria que solucionar milhares de equações para adequar a oferta à demanda e, no instante em que estivessem resolvidas, as informações nas quais se basearam já estariam obsoletas. Assim, o mercado seria um método mais simples de alocação de recursos.

O Equilíbrio de Walras

Os preços de mercado são casuais. Na formulação do economista Walras, citada por Lange, prix criés par hasard. Eles resultam da ação dos indivíduos, mas cada indivíduo não os controla e se submete a eles. Trata- se de uma alienação necessária comparável à religião ou à representação política. Os preços funcionam como parâmetros para os indivíduos decidirem como gastarão sua renda. É a função paramétrica dos preços.

O preço de equilíbrio é resultante da igualdade entre oferta e procura. Mas se a oferta de um produto for maior ou menor do que a demanda, a concorrência entre vendedores e consumidores altera os preços. Disso resulta novo conjunto de preços e, portanto, outra quantidade de mercadorias ofertadas e demandadas. Os novos preços permitem que os indivíduos redirecionem suas escolhas entre os vários bens ofertados. Cada mercadoria se aproxima cada vez mais do preço de equilíbrio. Após sucessivos rearranjos surgiria o equilíbrio objetivo de preços.

O que Lange argumenta é que uma economia socialista a mesma tentativa e erro acontece. Os bens de capital e seus preços são fixados na contabilidade do Estado e das empresas estatais. As decisões de investimento não são feitas em função do lucro, mas para produzir aquilo que pode ser absorvido pelos consumidores ou por outras empresas estatais. As empresas não fixam os preços como querem os seus gerentes. A função paramétrica dos preços é estabelecida pela Comissão Central de Planejamento. A produção visa ofertar produtos que satisfaçam a demanda representada pelo nível de renda dos consumidores. Se a oferta difere da demanda, para cima ou para baixo, a contabilidade registra um excedente ou um déficit físico da mercadoria em questão. A Comissão Central fixa novo conjunto provisório de preços até obter os preços de equilíbrio. O uso de preços contábeis é necessário, portanto, para evitar o desequilíbrio físico da produção.

O Gosplan soviético realizava as funções de mercado. Lange é irônico com os argumentos de Mises e Hayek: paara fixar os preços nenhuma matemática complexa é necessária por parte de consumidores ou produtores.

A Transição


Lange não se opunha à existência de propriedade privada no socialismo, desde que ela existisse no setor competitivo da economia; tivesse um limite máximo de capital; e sua escala de produção não fosse mais custosa que a produção de ampla escala.

Todavia, a socialização da economia deveria ser feita de forma revolucionária, pois a economia capitalista não pode funcionar sob um governo verdadeiramente socialista. O gradualismo levaria à insegurança das empresas, ao pânico financeiro e ao colapso econômicoxv.

Lange admite, entretanto, um governo socialista reformista, ou seja, que não possui força para socializar a economia, mas que é eleito para realizar tarefas que um governo liberal é incapaz de fazer, devido aos seus preconceitos ideológicos.

Se a eficiência marginal do capital é muito baixa e a preferência pela liquidez elevada, tal como acontece numa fase depressiva do ciclo econômico, só mediante a implementação de um corajoso plano trabalhista de investimentos públicos um governo pode atacar o desemprego e a depressão. É neste ponto que Lange faz duas observações de grande atualidade. A primeira sobre a tibieza da Esquerda reformista:

“...às vezes os governos socialistas se mostraram muito mais dominados pelos preconceitos burgueses, no que tange às suas políticas econômicas e financeiras, que os governos capitalistas. A razão é que com a ‘pureza’ de suas políticas queriam compensar a falta de confiança do mundo financeiro e dos negócios. Não é necessário dizer que inclusive a este preço um governo socialista dificilmente ganha a simpatia dos grandes capitalistas e dos interesses financeiros, enquanto destrói sua única possibilidade de êxito em suas políticas econômicas”xvi.

Lange continua:

“Assim, um plano trabalhista ou uma série deles pode ser um elo importante (an important link) na evolução que, finalmente, deve convergir para um movimento de massas de força e ímpeto irrestíveis que force a reconstrução total da ordem econômica. Mas inclusive um governo socialista cujos objetivos se achem encerrados nos limites de um plano trabalhista deste tipo necessita audácia e decisão para levá-lo a cabo. De outra maneira pode degenerar até converter-se em mero administrador da sociedade capitalista existente”.

A outra observação é sobre um modelo de revolução socialista muito parecido ao de alguns teóricos da Social Democracia alemã antes de 1914: “A possibilidade de tal política pressupõe, evidentemente, instituições democráticas. Entretanto, no caso em que os interesses ameaçados intentassem impedir a obra dos socialistas mediante a derrubada das instituições democráticas, surgiria automaticamente uma revolução social”xvii. Alguns anos depois Kalecky também chamou atenção para os efeitos políticos do pleno emprego sobre os empresáriosxviii.

Fim do Socialismo?

Nota-se como um economista socialista pode ter argumentos “humanistas” que são absolutamente ignorados pelos economistas liberais. Estes partem sempre de um indivíduo abstrato, ignorando as diferenças de classe social e renda.

Lange, ao contrário, mostra como as pessoas podem escolher um rendimento monetário mais baixo, mas também com menor desutilidadexix. Essa desutilidade pode ser equivalente a maior tempo de ócio, prazer no


trabalho ou segurança, por exemplo, e é igual à diferença entre a renda auferida nesta ocupação de menor remuneração e aquela que poderia ser ganha em outras melhor pagas, porém menos atraentes para alguns indivíduos. O socialismo garante maior liberdade individual do que o capitalismo na medida que o pleno emprego e a socialização de grande parte dos serviços fundamentais garantiriam que a sociedade sustentaria o cuidado da infância, a educação dos jovens, a saúde pública, o amparo da velhice e o lazer e a cultura para todos. No capitalismo a vida, a segurança e a saúde não são contabilizadas nos custos do capital, enquanto o socialismo considera os custos sociais como primários.

O “fracasso” da União Soviética derivou de uma derrota ideológica e das escolhas de seus dirigentes. Lange já alertava para o perigo da burocracia. Na segunda edição de meu livro didáticoxx História da União Soviética proponho que o colapso não era inevitável e nem mesmo resultou de uma mudança estrutural no padrão industrial mundial. Havia uma conjuntura de crise em que as estruturas de longa duração se combinaram a uma inesperada cadeia de eventos que demoliram o socialismo burocrático.

O autoconhecimento coletivo da sociedade soviética foi incompleto e suas estruturas econômicas ficaram estagnadas a partir de fins da década de 1970. O passo a ser dado implicaria a mudança das relações de produção no interior da empresa (algo ignorado por Lange) e o comprometimento do Estado com inovações tecnológicas que não interessavam à Nomenklatura. Ou seja, uma vez atingido certo nível de desenvolvimento econômico, o avanço das forças produtivas exigia novas relações de produção e outra superestrutura jurídico política.

No bloco socialista houve revoluções na Hungria e Tchecoslováquia. Ao menos no caso dessa última havia a pretensão oficial de um “socialismo com rosto humano”. A Polônia viveu na década de 1980 uma situação revolucionária e a União Soviética não tinha a intenção de sufocá-la do exterior pelo simples motivo de que não era uma contestação nascida no interior do partido, mas de um vasto movimento sindical e popular. Que Walessa fosse um anticomunista não apaga o fato de que a hegemonia do movimento talvez pudesse ter sido disputada se houvesse revolucionários comunistas na Polônia e não apenas burocratas defendendo o regimexxi.

Era possível uma revolução anti burocrática? Essa pergunta visa sempre expor a falta de realismo atribuída aos revolucionários, mas ela esconde uma orientação ideológica. Por que o fatalismo capitalista é menos idealista do que as esperanças revolucionárias? As possibilidades objetivas estavam dadas tanto para avançar mais ao comunismo, quanto para restaurar o capitalismo. Mas não havia uma subjetividade comunista. Desde 1968 o imperialismo vivenciava uma crise que abria uma potencialmente situação revolucionária. Governos dos EUA, Japão e Alemanha caíram devido a escândalos na metade da década de 1970, a crise do petróleo e as baixas taxas de crescimento indicavam perspectivas sombrias; Grécia, Espanha e Portugal se livraram de suas ditaduras, sendo que os portugueses realizaram uma Revolução que assumiu caráter socialista até novembro de 1975.

Na Europa Ocidental, o Eurocomunismo ganhou força eleitoral. Comunistas entraram no governo em Portugal (1974-1976), Islândia (1971-1973) e Finlândia (1966 e 1970-1971). Em 1976 o PCI obteve 34% dos votos. Em 1981 os comunistas e socialistas ganharam as eleições na França. Na Nicarágua e em Granada marxistas estavam no poder por via revolucionária e El Salvador apontava na mesma direção. Angola,


Moçambique e outros países africanos e asiáticos assumiam orientação socialista e as ditaduras agonizavam na América Latina.

A palavra eurocomunismo foi cunhada em 1975 e Norberto Bobbio a definiu com razão como a social democratização dos comunistas, mas na época ninguém sabia aonde aquele movimento levaria, apesar das críticas de comunistas ortodoxos. Giovanni Sartori, para quem o Eurocomunismo simbolizava “a busca por legitimidade” dentro da ordem, ainda assim lembrava que a guerra de posição apregoada pelos comunistas italianos continuava sendo uma guerraxxii. Se era provável que dali não adviria qualquer processo socialista, ainda assim a cultura comunista na Itália desfrutava de hegemonia em vastos segmentos da sociedade civil. O novo “trabalho do negativo”xxiii, a destruição da superestrutura socialista soviética, foi feita não pela classe trabalhadora, mas pela burocracia em proveito próprio. Gorbatchev visou retomar a Nova Política Econômica de Lenin sem as pré condições dela. Gorbatchev visou ampliar as relações mercantis num país que já era industrializado. O consumo real per capita cresceu 3% ao ano entre 1950 e 1980. O número de máquinas de lavar por 100 lares ascendeu de 21 em 1965 a 75 em 1990xxiv. O problema habitacional havia sido bem amenizado e não havia qualquer ameaça interna para o regime.

No Ocidente a classe trabalhadora já vinha sendo atacada por políticas neoliberais. O fim da União Soviética consolidou o neoliberalismo. Igualmente, seu surgimento ajudou a formação do Estado do Bem Estar Social. Mas tanto no alfa quanto no ômega do processo o elemento externo só se desenvolveu mediante as contradições internas dos distintos países. Onde não havia diferenciação produtiva mínima e movimento trabalhista, as burguesias exibiram apenas sua face repressiva sem se preocupar em obter o consentimento de suas populações exploradas.

É preciso reconhecer que a subjetividade política, a capacidade hegemônica da classe operária agregar as inúmeras vontades desagregadas, é um momento da história que não apaga a “determinação em última instância” da produção da vida material. O socialismo se desagregou porque cessou sua capacidade de incrementar a produtividade do trabalho, o tempo livre e os bens materiais e espirituais de consumo. Mas como recordou um inovador pensador argentino, se para se conceber um sistema hegemônico deve-se partir da “economia”, para se operar sua desestruturação o caminho é o inverso, o dominante são os conflitos no plano da políticaxxv.

Em conversa com o professor da USP Wilson Barbosa, que conheceu o funcionamento de algumas economias socialistas, ele me confirmou que a decadência da União Soviética é um fenômeno subjetivo, cuja expressão é a transformação de burocratas em acionistas majoritários e de dirigentes comunistas em mafiosos.


i Notas redigidas a partir de aula no curso de História Contemporânea da USP, 2024. Também fui motivado por uma pergunta que me fez o grande jurista Jorge Souto Maior. Acrescentei observações a partir da leitura do livro (citado infra) de Oskar Lange que me foi presenteado pelo companheiro Procurador Federal e historiador marxista Luis Fernando Franco.

ii O dinheiro tem as funções de reserva de valor, meio de troca e meio de pagamento (e tesouro).

iii Vide Pomeranz, Lenina. Do socialismo soviético ao capitalismo russo. São Paulo: Ateliê, 2024, 2 ed. A moeda

escritural usada na União Soviética funcionava como pagamento entre as empresas através dos depósitos bancários

(meio de pagamento).

iv Hoje moeda eletrônica.

v Excluo o anticomunismo que, como notei em outro artigo (O Anticomunismo Preventivo), se trata de negação

indeterminada ao comunismo.

vi Vide Padial, R. A Passagem de Marx ao Comunismo. São Paulo: Ateliê, 2024.

vii Cf. Mehring, F. Storia della Germania moderna, Milano, Feltrinelli, 1957, pp. 234-238. Esse texto foi escrito por

motivos circunstanciais, nem por isso irrelevantes. Havia na Alemanha dois partidos operários socialistas. A União Geral Operária Alemã (Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein) de inspiração lassaliana (fundada em 1863), e o Partido Operário Social-Democrata (Sozialdemocratische Arbeiterpartei), conhecido como partido dos eisenachianos, pois fora fundado em 1869 na cidade de Eisenach. Este partido era o mais próximo de Marx e Engels, e era liderado por August Bebel (1840-1913) e Wilhelm Liebknecht (1826-1900). A União Geral Operária Alemã era dirigida por Lassale (1825-1864). No início de 1865, depois da morte de Lassale, a União passou a publicar o jornal Social-Democrata, que saía três vezes por semana, era dirigido por J.B. Schweitzer (1833-1875) e tinha a colaboração de Marx, Engels e Liebknecht. Schweitzer era favorável a uma unificação alemã feita através de uma revolução social, mas não negava o sucesso político da unificação promovida pela Prússia de Bismarck, embora este submetesse fins nacionais a interesses dinásticos-particularistas. Schweitzer não deixava de advertir os operários de que era preciso sempre lutar de maneira independente pela sua liberdade, muito menos desconhecia a política despótica de Bismarck, mas considerava, de maneira talvez mais realista, que a prussianização da Alemanha era um fato consumado e que a burguesia não tinha mais vontade, nem interesse, em se opor a Bismarck, enquanto o proletariado carecia de forças para fazer uma revolução sozinho.

viii Marx, O Capital. S. Paulo, Abril Cultural, 1983, v.III, t. 2, p. 293.

ix Marx, O Capital. S. Paulo, Abril Cultural, 1983, v.II, p.233.

x Lange, Oskar e Taylor, Fred. introd. De Benjamin Lippincott. Sobre la Teoria Económica del Socialismo.

Barcelona: Ariel, 1969, p. 153.

xi Id. ibid., p.155.

xii Paul Singer defendeu a tarifa zero quando secretário do planejamento de São Paulo e dizia que ela ajudaria a

racionalizar o uso de outros serviços públicos, como a saúde.

xiii Lange discutiu depois a cibernética, ou seja, sistemas de controle automático de máquinas supridas por uma miríade

de informações fornecidas pelos agentes econômicos.

xiv Fitzpatrick, Sheila. Breve História da União Soviética. São Paulo: Todavia, 2023, p. 78.

xv Lange e Taylor, pp. 136-7.

xvi Id. ibid., p. 140.

xvii Id. ibid., p. 142. Na tradução de Camarinha Lopes na Revista Jacobina há algumas diferenças importantes em

relação ao texto em inglês e à versão espanhola. Consultei portanto, além da tradução espanhola: Lange, O. e

Taylor, F. On The Economic Theory of Socialism. Introd. De B. Lippincott. 4 ed. Minessota, 1956.

xviiihttps://jacobin.com.br/2020/09/aspectos-politicos-do-pleno-emprego/

xix Id. ibid., p. 112.

xx Secco, L. História da União Soviética. São Paulo, Maria Antonia, 2 ed, 2023.

xxi É apenas uma hipótese. Assumo minhas dúvidas sobre a natureza do processo polonês por falta de dados.

xxii Sartori, G. “Calculatin the Risk”, in Sartori, G. and Ranney, A. (orgs). Eurocommunism: the italian case.

Washington, 1978.

xxiiiCohen, G. A. A Teoria da História de Karl Marx. Campinas: Unicamp, 2013, p. 35.

xxivAllen, R. Farm to Factory: a Reinterpretation of the Soviet Industrial Revolution (Princeton, 2003), pp. 54-5.

LADAINHA

E o PIG (partido da imprensa golpista) continua sua campanha subversiva contra o governo Lula mediante a velha ladainha econômica do desajuste fiscal que seria responsável pela inflação e por todos os males dela decorrentes na nação brasileira. 

Com efeito, esse discurso não consegue transcender o binômio oferta e demanda no âmbito do processo de circulação de capital, atribuindo à demanda efetiva ou às baixas taxas de desemprego a carestia e tudo que de mal acontece neste país. 

Já esgrimi inúmeras vezes que, na verdade, é o próprio capital que provoca inflação e juros elevados, em razão da lei descrita por Karl Marx consistente no declínio tendencial da taxa de lucro, combatida com aumento generalizado de preços. 

Sem embargo, hodiernamente a revolução digital difundiu-se pelo mundo afora e provocou um incremento do valor da força de trabalho e consequente diminuição da taxa de mais-valia, decorrente da necessidade de sua maior qualificação com um aumento do tempo de sua formação no âmbito escolar, fora dos limites familiares. 

Isso causou uma diminuição nas taxas de lucro do capital pelo mundo afora, e desde a década de 2020 o planeta convive com altas taxas de inflação decorrente da contraposição do próprio capital a tal declínio.

Mas o discurso econômico neoliberal dominante não admite olhar para esse processo de produção de capital, pois isso requer uma admissão da existência da extração da mais-valia, a saber, da exploração econômica do ser humano pelo seu semelhante, que acompanha o Homo sapiens desde seu nascedouro. 

Mudar esse estado de coisas, de fato, é muito difícil. 





por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador formado pela USP.  

sábado, 22 de junho de 2024

BERNARDO BERTOLUCCI

Bernardo Bertolucci foi um cineasta italiano de grande envergadura e sucesso no mundo inteiro, mas hoje foi cancelado por acusações de ter filmado uma cena de violência sexual real, em que a atriz Maria Schneider teria sido estuprada. 

Como dizem o franceses, c´est dommage.

Realizou obras primas como 1900, O céu que nos protege e O último imperador, o qual recebeu nove Oscars da Academia de ciências cinematográficas dos Estados Unidos. 

Mas o seu projeto mais ambicioso, em que a cena de estupro real acima mencionada foi filmada e integrou a montagem final da película, foi O último tango em Paris, de 1972. 

Não fosse pela cena de estupro que o integra, esse filme provavelmente figurasse entre os maiores já realizados em todos os tempos. 

Com efeito, Louis Althusser postulava que somos todos meros vetores de determinações estruturais do capital, ao passo que hodiernamente o biólogo Robert Sapolsky aniquilou em sua obra a existência do livre arbítrio entre nós. 

A individualidade, pois, foi colocada em xeque mate, de tal sorte que não nos seria facultado usar nomes individuais para distinguir nossa subjetividade individual. 

Sem embargo, na produção e reprodução de sua vida material em sociedade, os seres humanos contraem entre si relações de produção heterônomas que escapam ao seu controle e volição, dirigindo-lhes o destino de forma alienada e reificada; por outro lado, na reprodução dos próprios indivíduos humanos, a sexualidade impõe suas determinações, a começar pela definição de macho e fêmea.

Destarte, Marx e Freud foram a dupla que moldou definitivamente nossa percepção da produção e reprodução da vida material humana, seja no campo do trabalho, seja no campo da reprodução sexuada, de tal sorte que somente nos é dado usar dois nomes de cada vez, a saber, ou o binômio capital e trabalho, ou o binômio macho e fêmea e suas derivações.

O mencionado filme mostra um casal que não se identifica individualmente, malgrado a atração sexual que os une, e quando se identificam finalmente, parecem mais sombras dançando uma coreografia preconcebida como no tango. 

Mas a cena de estupro maculou toda a película, que atualmente foi colocada no ostracismo. 

O que teria conduzido Bertolucci a filmar e aproveitar essa violência sexual, não sei dizer, mas me parece lamentável. 

Enfim, é uma pena...





por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

SÓCRATES

A morte de Sócrates, o filósofo grego, marca o início da ideologia que no século XX seria conhecida como fascismo.


O racionalismo socrático reflete a ascensão da circulação de mercadorias mediante o dinheiro em um universo histórico dominado pelo modo de produção escravista antigo, com a decorrente dissociação entre atividade eminentemente intelectual (dinheiro) e atividade eminentemente manual (produção de mercadorias).


Os algozes de Sócrates combatiam esse irrefreável ímpeto histórico da ascensão monetária no mundo escravista, colimando extirpar a classe burguesa em seu nascedouro, mas quando os nazifascistas vituperavam contra a finança judaica, também deliravam com a utopia de uma sociedade de senhores e escravos despojados da racionalidade capitalista!


Uma ideologia perniciosa que elegia um inimigo imaginário na sociedade, o dinheiro, que era suscetível de hiperinflação, para propor uma fusão de classes produtivas, capitalistas industriais e proletariado, contra essa finança estrangeira e judaica.


O futurismo industrialista foi a manifestação mais clara de tal fusão no âmbito estético.


A morte de Sócrates é o pecado original da Bíblia nazifascista.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

NAZISMO 3

 A democracia antiga cingia-se a uma minoria aristocrática de que não participavam os trabalhadores escravos.


A democracia moderna estende-se a todos, burguesia e proletariado, donos do capital e trabalhadores assalariados, e funciona mais ou menos como termômetro da luta de classes.


O nazifascismo quer, portanto, abolir a democracia com a união entre classes antagônicas!






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

NAZISMO 2

 A ideologia nazifascista, pois, encerra seus pródromos na sentença de morte de Sócrates, e representa a inversão do comunismo:


Se este colima superar o dinheiro e o capital pela vitória dos trabalhadores sobre os representantes desses objetos de reificação de relações de produção, o nazifascismo pretende vencer o dinheiro e o capital com uma união de classe entre burguesia e proletariado contra os mesmos!


Ocorre, todavia, que a burguesia é o dinheiro e o capital personalizados, o que torna o nazifascismo uma utopia irrealizável!




Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

NAZISMO

 Em consonância com o texto imediatamente precedente, o nazismo é uma ideologia saudosista de um modo de produção escravista antigo, máxime do Império Romano, em que o dinheiro, representado pelos judeus, é extirpado!





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA

 A oposição entre apolíneo e dionisíaco reflete na verdade a dicotomia entre senhor e escravo no modo de produção escravista antigo, enquanto o racionalismo socrático emerge da circulação de mercadorias no dinheiro, com a dissociação entre atividade eminentemente intelectual (dinheiro) e atividade eminentemente manual (universo do trabalho e da produção de mercadorias).


A grande obra de Nietzsche do título em epígrafe é portanto um saudosismo do escravismo antigo na sua pureza anterior ao advento do dinheiro.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

FANTASIA BARROCA

 FANTASIA BARROCA

 

Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira

 

Dedicado a Manina, Madu e, in memoriam, a Ci e Valtinho.

 

 

1. Mogno e pedra sabão.

 

Em sede preambular, exoro, aos eventuais leitores destas páginas de jaez memorialista, encarecidas escusas por encetar o vertente discurso mediante um singelo exercício de digressão metalinguística atinente à peculiar equivalência entre as artes da literatura e da ventriloquia, pois se esta última empresta a voz do ilusionista a seus bonecos articulados de mogno, não é menos verdadeiro que aquela beneficia-se da fértil imaginação do escritor para atribuir alma a suas personagens, de tal modo que se faz mister, com a máxima urgência, que os mais destacados literatos prestem suas contas e paguem devidamente seus emolumentos à decadente confraria dos ventríloquos, a qual, lamentavelmente, subsiste à míngua dos parcos contributos de seus raros associados hodiernos, e isto desde que o telefone celular e a famigerada rede internacional de computadores substituíram o mundo real e analógico das entidades de carne, osso e madeira pelas insípidas e insossas telas de imagens digitais.

 

Isto posto, é hora de me identificar.

 

Respondo pelo epíteto de Alcides e tive o grato privilégio da longevidade, eis que, entre os anos de 1909 e 2003 da era cristã, fui galardoado com a honra de desfrutar, com meus coetâneos, de noventa e quatro primaveras neste mundo caudaloso, sendo certo que exerci orgulhosamente o ofício de farmacêutico autodidata, mas me foi também concedida a façanha de poder despertar, como mágico ilusionista e ventríloquo diletante, variegados sorrisos e assombros em semblantes pueris, adolescentes, adultos, idosos e vetustos, veiculando por vezes conforto e esperança onde havia somente rasgos de melancolia.

 

Ora, o leitor atento perceberá liminarmente que o presente relato não se mostraria exequível sem o concurso de outrem, já que prestei a prévia informação de minha extinção no ano de 2003, quando me despedi peremptoriamente desta vida, o que me obsta, jurídica e materialmente, de formular este memorial, razão pela qual desde logo apresento-lhes meu neto batizado como Luís Fernando, o qual aqui comparece, em consonância com nossa metalinguística precedente, na qualidade de ventríloquo cujo loquaz boneco sou eu mesmo, cabendo divulgar nesta ocasião que este meu fiel e mui amado descendente já veio ao mundo sob a égide, o pálio e as bênçãos de dois titãs da poesia lusitana e universal, a saber, Luís de Camões e Fernando Pessoa, cujos prenomes lhe foram egregiamente atribuídos no ato do registro civil das pessoas naturais, fato que, nada obstante, pouco se amolda ao temperamento deste querido parente, o qual na verdade inclinou-se de forma mais manifesta à prosa cartorial e labiríntica de um Franz Kafka, sendo certo, aliás, que Luís Fernando adotou por ofício a mesma função de causídico da orbe infortunística, tão cara ao exímio novelista de Praga.

 

Oportuno obtemperar que a arte da prestidigitação e do ilusionismo mágicos, que desempenhei com certa fidalguia por determinado tempo, antolha-se-nos em muito caudatária do mesmo espírito galhofeiro e sardônico que se divisa na obra de Kafka, cuja novela intitulada A Metamorfose rompeu inapelavelmente a crisálida da corrente literária vulgarmente denominada realismo fantástico, mas também conhecida como realismo mágico, parecendo lícito aventar que o abrupto advento, na narrativa desta corrente,  daquilo que escapa ao que normalmente acontece na realidade empiricamente observável, constitui traço compartilhado com a mágica dos ilusionistas e prestidigitadores, plena de varinhas que se metamorfoseiam em buquês de flores, de moedas metálicas que afloram de narizes e orelhas de infantes estupefatos e que caem estrepitosamente em baldes prateados, de copos que não descolam de cima de livros repentinamente virados para baixo, de pombos que obedecem aos comandos do mestre e que somem de um lugar para aparecer em outro, de outras varinhas rígidas que derretem ao simples toque de crianças incrédulas, de cartolas de onde emergem coelhos de dimensões incompatíveis com o tamanho do mencionado chapéu, de argolas de ferro desprovidas de lacunas ou furos mas que se interpenetram com grande estrondo para formar figuras geométricas similares à arte cinética, enfim, de tudo aquilo que não soa natural nem corriqueiro, mas que engendra assombro, espanto, risos, gargalhadas, desconfiança e uma portentosa dose do mais puro, honesto, despretensioso e ingênuo entretenimento coroado por ovações que provocam inefável sensação de contentamento e júbilo no respectivo artista.

 

Já devem ter colocado reparo que a imodéstia pode consistir, muito provavelmente, em certa falha de caráter daquele que vos dirige a palavra, mas humildemente devo esclarecer que, se a mágica detinha morada no mais recôndito âmago do meu átrio esquerdo, o fato é que a ventriloquia exibia o condão de usucapir meu corpo e minha mente da maneira mais avassaladora, completa e regozijante, a ponto de ter sido considerado um dos melhores ventríloquos de minha época em meu país, conquanto tal ocupação tenha representado mero diletantismo em minha longa existência, eis que executava tal atividade amadora apenas nos finais de semana, em apresentações para animar festas familiares da elite da cidade de São Paulo, inclusive como forma de haurir um cabedal extraordinário, embora diminuto, para auxiliar um tantinho no orçamento doméstico de um farmacêutico autodidata cujos rendimentos mal cobriam as despesas decorrentes da manutenção de um lar composto por esposa e quatro filhos, sendo certo, portanto, que posso quedar subsumido na classe social do proletariado, a despeito de jamais ter abraçado com fervor qualquer causa política, seja de esquerda ou direita no espectro ideológico, absorto que estava em prover uma subsistência digna para minha relativamente numerosa família, e malgrado ter sido procurado por entidades político-partidárias e lojas maçônicas que se interessaram, sem lograr êxito, por minha adesão aos seus quadros permanentes, interesse este que talvez fosse decorrente de alguma exposição pública que minha atividade diletante de mágico e ventríloquo tivesse por pressuposto, mas isto não posso asseverar com a devida segurança, configurando mera conjectura carente de confirmação.

 

Demais disso, ainda no compartimento dedicado à minha identificação, devo observar que fui engendrado, concebido, nascido e criado no logradouro assombrado e mítico conhecido pela alcunha de São João del Rei, na região encantada das cidades barrocas do estado de Minas Gerais, mas por uma ironia do destino não cheguei a travar conhecimento de meu próprio pai, que partiu deste mundo quando eu ainda ostentava idade demasiado tenra para fazer ideia de qualquer coisa, parecendo interessante notar que ele sucumbiu letalmente ao resvalar e cair de elevadíssimo desfiladeiro, em algum dos penhascos tão típicos do lugar, quando pastoreava um rebanho de ovelhas de propriedade de seu patrão, mas muito provavelmente tal acidente laboral deva ter remanescido sem ensejar qualquer forma de indenização à minha querida genitora, dada a precariedade das leis e instituições trabalhistas e previdenciárias na época, sendo certo que minha mãe contraiu segundas núpcias com um senhor muito distinto, conquanto também sem muitas posses, que me tratou como se seu próprio filho eu fosse, razão pela qual sempre o considerei carinhosamente como meu verdadeiro progenitor, e pelo qual minha mãe nutria um amor sincero e honesto, malgrado ela padecesse de afecção dos nervos que se agravou com o curso do tempo, de tal sorte que deste segundo enlace matrimonial não resultaram outros descendentes, o que me conferiu a condição de filho único sobre os ombros de quem ulteriormente, com o passamento deste padrasto, ainda relativamente jovem, restou o encargo de cuidar da mãe doente, encargo este que jamais se convolaria em fardo e do qual me desincumbi com galhardia e airosamente, dados os estreitíssimos laços de afeto e ternura profundos que me atrelavam àquela que me trouxe a lume, de modo que discorrer sobre sua história exibe-se tarefa árida e dolorosa, uma dor lancinante que corrói a medula óssea e dilacera o cerne da alma.

 

Cumpre anunciar, não obstante a chaga que isso me provoca, que minha saudosa mãe chamava-se Rosa Margarida, e recordo-me muito bem que seu cabelo preso em forma de coque consistia em evidência suficiente de que seu humor estava sob controle, pois, ao revés, quando ela amanhecia com os seus lisos e castanhos cabelos livres e soltos, decerto que o curso do dia seria aterrorizado e chancelado pela sua nefasta afecção nervosa, uma insanidade epidérmica que tempos mais tarde a conduziria ao confinamento em famoso nosocômio psiquiátrico no município de Franco da Rocha, onde ela, literalmente, viria a falecer e ser inumada, eis que morreu na véspera do feriado da Independência e o telegrama que informava o acontecimento não me chegou a tempo em São Paulo, de sorte que quando visitei o dito manicômio, no dia seguinte, revelaram-me o ocorrido com a notável impassibilidade típica dos que cuidam daqueles que não sabem o que fazem aqui na Terra, o que provocou em minha esposa, que me acompanhava na ocasião e estava grávida de minha primeira filha mulher, um surto de risos copiosos e estridentes em um amálgama de incredulidade, nervosismo, tristeza e mesmo alívio, ao passo que eu mesmo fui jogado, estarrecido, em estado de paralisia transitória por um considerável lapso temporal.

 

Mas tratemos agora de assuntos mais edificantes.

 

Epifania catártica, eis a locução invariavelmente evocada pela reminiscência da primeira ocasião em que experimentei, aos dez anos de idade aproximadamente, o universo maravilhoso dos circos, um episódio que lograria escavar sulcos profundos e indeléveis na tábua argilosa de minha então incipiente personalidade, cabendo destacar que se tratava de um circo relativamente singelo, montado na periferia da cidade mineira onde nasci, mas com suas extensas lonas de coloração azul e vermelha, bem assim seu carrossel de cavalinhos nas cercanias da respectiva entrada, e com apresentar, como algumas de suas principais atrações, acrobatas, equilibristas, trapezistas, anões, domadores de leões, elefantes adestrados, palhaços, globo da morte, homens bala e, naturalmente, um formidável mágico ilusionista e ventríloquo, atração esta que arrebatou minhas entranhas viscerais de plano, e desde então eu soube que também seria capaz de reproduzir aqueles números de transformações inusitadas, manifestações e desaparecimentos inexplicáveis, pessoas se esquivando de situações de aprisionamento aparentemente inescapável, enfim, tudo o que arrostava acintosamente o comportamento habitual daquilo que se convencionou designar por realidade, mas o maior encanto, obviamente, exsurgiu quando um boneco articulado de madeira de lei começou a se movimentar e a proferir anedotas no colo daquele mágico, isso foi demais para mim, sabe-se lá por que motivo, mas receio que aquele embrião dos vindouros autômatos exercia fascínio por mimetizar os humanos, malgrado ser fabricado por eles com material inflexível e rígido, portanto impermeável à penetração da alma em seu âmago.

 

Poucos dias depois, sobreveio-me outra epifania catártica, agora por ocasião de uma visita, com meus pais, ao santuário de Bom Jesus de Matosinhos, na localidade de Congonhas do Campo, alguns quilômetros distante de São João del Rei, onde o conspícuo escultor barroco Antônio Francisco da Costa Lisboa, vulgo Aleijadinho, concebeu um proscênio guarnecido por doze estátuas de pedra sabão de grandes dimensões que representam profetas bíblicos, uma obra prima da arte universal declarada patrimônio da humanidade pela UNESCO no ano de 1985, de tal sorte que a visão daquele conjunto ensejou-me uma comoção tal que talvez tenha sido o maior êxtase de minha vida, pois, meninote que era, jamais atinara que se pudesse extrair tamanha beleza de pedra bruta, máxime na estátua do profeta Daniel afagando um leão em seu entorno, que me evocou os domadores de feras do circo de dias antes, e eu comecei a elucubrar que, naquele logradouro sagrado, Deus poderia conceder alma àquela escultura magnífica, malgrado ter sido lapidada em mineral duro e mais impermeável à penetração do sopro divino, portanto, do que a madeira de que eram feitos os bonecos de ventriloquia, mas eis que repentinamente o profeta Daniel de pedra sabão encetou a falar e conversar comigo em voz aveludada de barítono, enquanto meus pais estavam distraídos diante de outras estátuas e não perceberam o que ocorria.

 

“Menino Alcides, guardo comigo o apanágio de vaticinar sobre o seu destino, pois ambos somos rebentos, como o mestre artesão que me lapidou e me dotou de animação e de fala mediante o sopro que faz viver a pedra, das montanhas destas paragens, por isso você conferirá vida ao mogno, com duas figuras mitológicas das Minas Gerais, um menino de corpo inteiro e olhos esbugalhados com lábios proeminentes, bem assim uma cabeça, desprovida de corpo, de europeu em provecta idade, esta confinada em caixa preta que abre na parte frontal para exibir o pálido e vetusto semblante respectivo, e você portará o milagre de transfigurar, com tais bonecos de mogno loquaz, a tristeza em alegria, a dor em prazer, a velhice em infância, a morte em vida”, ponderou-me o profeta Daniel esculpido em pedra sabão.

 

2. Parentes por afinidade.

 

Em rompante de sinceridade de minha parte, cabe revelar que Honorato, meu sogro, encerrava o condão de me deflagrar um irrefreável ímpeto invejoso, pois, ao menos aparentemente, as crianças em geral nutriam por ele mais apreço e afeto do que pela minha própria pessoa, malgrado todo o esforço que despendi para atualizar o vaticínio do profeta Daniel de Aleijadinho, fato que talvez seja devido ao temperamento perenemente jovial e brejeiro do pai de minha esposa, que nunca deixou de se comportar como adolescente gracejador, mas suspeito que o verdadeiro motivo seja o posto que orgulhosamente ele ocupava na maior fábrica de brinquedos do país, o que lhe conferia o privilégio de poder levar as crianças, invariavelmente nos meses de dezembro, em visita ao galpão de tal fábrica onde se situava o mostruário de todos os produtos da empresa, ou seja, uma constelação de bonecas de todos os tipos e roupas possíveis, bem assim de carrinhos de todas as cores e modelos, um embevecimento inigualável para esses infantes, que não economizavam nas demonstrações de sincera gratidão a Honorato, ainda que, na maior parte das vezes, seus pais não tivessem condições financeiras de adquirir para seus rebentos esses objetos produtores de enlevo, apesar dos descontos nos seus preços que se conseguia obter pela ocupação desse meu parente.  

 

Cumpre anunciar que meu sogro exercia o ofício de simples vigilante noturno da festejada fábrica de brinquedos, o que não removia de forma alguma o regozijo dos meses de dezembro para essas crianças, muito pelo contrário, atribuía ao velhinho Honorato certa aura mítica de encantador de imberbes, e suspeito também que meu querido sogro tenha escolhido tal emprego para satisfazer a seu jovial caráter de infante de cabelos grisalhos.

 

Recordo-me ainda de um tio de minha esposa, o Tio Bié, cujo verdadeiro nome era Gabriel, um próspero aristocrata e abastado fazendeiro da região de Ribeirão Preto, que chegou a estudar agronomia na Bélgica, ou na França, não sei bem ao certo, e cujas colegas europeias certa feita passaram uma temporada em sua propriedade rural, mas não tomaram banho de banheira no lugar, do que dão testemunho e notícia as empregadas do Tio Bié que, conquanto providenciassem água quente para tal finalidade todos os dias, sempre encontravam, debaixo da janela do lado de fora do quarto das mencionadas moças, consideráveis montantes de algodão que exalavam perfume de água de colônia francesa, confirmando certo mito muito propagado entre nós brasileiros sobre a higiene dos europeus, mas o interessante mesmo consiste na história segundo a qual todas as noites, após o jantar, Tio Bié sentava-se, com seus longos bigodes e botas negras de couro com cano alto, em sua cadeira de balanço na varanda da casa da fazenda para fatiar um queijo inteiro, colimando dar de comer aos sapos que compareciam, enormes, às dezenas nesta varanda, cabendo observar que, de acordo com difundida lenda agrária da região, Gabriel chamava cada sapo, individualmente considerado, pelo respectivo nome, sendo certo ainda que, determinada noite, um irmão de minha esposa, Dirceu, com seus quatro ou cinco anos de idade, entrou na sala de estar dessa casa portando em seus braços um desses anfíbios, que apresentava um porte maior do que o dele próprio, causando celeuma entre os presentes, salvo no fleumático Tio Bié, que logo foi ordenando a soltura do sapo Godofredo pelo pequeno Dirceu.  

 

Minha memória registra ainda outra figura marcante, a tia de minha esposa, Tia Lourdes, freira católica e notável educadora montessoriana da irmandade das ursulinas, cujo pseudônimo religioso era Madre Helena, e que também encerrava o condão de me provocar sentimento de inveja, eis que permaneceu entre nós por cento e três verões, desfrutando daquilo que denominava matrimônio com Deus, um amor abstrato e platônico sem dúvida, mas que talvez constitua o segredo de sua longevidade, e o fato é que se cuidava decerto de uma noviça bem rebelde, que visitava os parentes com certa frequência e adorava a companhia das águas oceânicas, chegando a vestir até mesmo trajes de banho, pasmem, quando se encontrava no litoral, e certa feita, em Caxias do Sul, pulou os portões trancados do convento para nele adentrar, já tarde da noite, ao voltar de um passeio, iniciado depois do pôr do sol, com minha filha Manina pelas ruas da cidade, de tal sorte que, percebe-se de plano, as núpcias divinas e o celibato terreno não lhe removeram de todo um certo apreço pelo mundo concreto, malgrado ter sido digna de muito respeito tanto como religiosa quanto como educadora, e sua obra nesta última vertente pode ser hodierna e airosamente conferida no colégio das ursulinas na já aludida cidade interiorana de Ribeirão Preto, cujo prédio, de considerável magnitude, conta até mesmo com um campo de futebol de dimensões oficiais.

 

3. Cambuci.

 

Aos dezessete anos de idade, logo em seguida ao falecimento de meu padrasto, desembarquei com minha mãe em São Paulo para me estabelecer em caráter definitivo, trazendo na bagagem três objetos de grande importância, a saber, dois bonecos para ventriloquia, de nomes Peleco e Nicolau, respectivamente o menino de olhos esbugalhados e a cabeça sem corpo de um velhinho de barbas grisalhas confinado em caixa preta, exatamente como vaticinados pelo profeta Daniel de Aleijadinho, bem assim um inspirado e denso manual de medicina popular intitulado por metonímia como Chernoviz, sobrenome de seu autor, datado da época do Império, e logo fui contratado pelo senhor Jaime como empregado em uma farmácia situada no bairro do Belenzinho, mais precisamente na praça da igreja principal desse distrito urbano, onde permaneci por alguns anos até me transferir para o bairro do Cambuci, já que não me acostumara com as idiossincrasias do Belenzinho, razão pela qual compus um singelo sambinha com o refrão “não me dou bem, não me dou bem com as meninas do Belém, não fico aqui, não fico aqui, vou-me embora, vou morar no Cambuci”

 

Com efeito, foi neste último bairro que eu vim a conhecer Dirce, minha esposa, cujo largo sorriso fazia-me ferver o sangue em êxtase de paixão, e com quem engendrei quatro descendentes que respondiam pelos epítetos de Valtinho, Manina, Ci e Madu, cabendo notar que no Cambuci, reduto historicamente vinculado ao movimento operário em geral e anarquista em particular, finquei morada e raízes em uma ruela, que denominávamos “vila”, composta por treze casinhas térreas geminadas, de aproximadamente oitenta metros quadrados de área construída cada, divididas em sala, dois quartos, cozinha e banheiro situado em um quintal onde, em nosso caso, acalentávamos uma frondosa goiabeira e onde chegamos a criar vários animais domésticos e não tão domésticos, tais como cachorros, gatos, galinhas, gansos, tartarugas, saguis, macacos, pombos, papagaios etc., vila esta que constituía um verdadeiro microcosmo da imigração na cidade de São Paulo, com cidadãos originários da Espanha, Itália, Portugal e Líbano, parecendo lícito aventar que os diversos idiomas respectivos amalgamavam-se com o português em um divertido dialeto que somente a grande família de habitantes da vila saberia compreender.  

 

De fato, os moradores da vila formavam uma grande família que organizava, por exemplo, animadíssimas festas juninas na ruela, ocasiões em que os meninos soltavam balões, as meninas dançavam quadrilhas, os pais queimavam fogos de artifício e as mães preparavam as guloseimas típicas da época, tais como pipoca, quentão, bolo de fubá, paçoca, canjica, arroz doce etc, e eu particularmente providenciava a música ambiente com minha vitrola que tocava discos de vinil bem adequados à atmosfera festiva, parecendo imperioso ainda destacar os trajes característicos constituídos por chapéus de palha, lenços coloridos no pescoço, calças de brim remendadas, camisas de tecido xadrez e vestidos de chita floridos, com rendas e fitas.          

 

Recordo-me ainda que todos os dias dirigia-me, na hora do almoço, até uma conhecida loja de material fotográfico e lentes oftalmológicas situada na avenida São João, já nas proximidades do vale do Anhangabaú, em cujo proprietário, o distintíssimo senhor Floriano, aplicava injeções para controle de determinada comorbidade de que ele padecia, cumprindo ressaltar que provavelmente eu me desincumbisse de tal tarefa com certa excelência, pois este senhor chegou a me oferecer como regalo, no início dos anos 1950, um aparelho televisor da marca Crosley, isso nos pródromos dessa nova tecnologia, ainda dotada de imagens em preto e branco, uma verdadeira maravilha do engenho humano, e eu exibia com orgulho tal aparelho aos demais moradores da mencionada vila do Cambuci, mantendo aberta a minha janela da sala onde ficava tal objeto em pleno funcionamento, janela esta com acesso direto à rua, com provocar destarte considerável aglomeração de curiosos transeuntes em frente à minha casa, nos quais se notavam traços de manifesta estupefação, entusiasmo e arrebatamento causados por aquele pequeno instrumento apto a exibir o mundo em movimento e ao vivo, o que logo me despertou uma singela dose de desconfiança, máxime quando, certa feita, a televisão passou subitamente a mostrar em sua tela a figura de um exímio ventríloquo em ação, cujo nome, salvo ledo engano, era Don Trujillo, e então eu percebi que a disputa entre aquele aparelho milagroso e minha atividade diletantemente artesanal de ilusionista conduziria ao gradativo estiolamento dos meus ganhos de mágico amador, e pronuncio o vocábulo “ganhos” não somente na acepção financeira, mas sobretudo no seu significado mais nobre, consistente na alegria despertada pelos sorrisos e pelas ovações das crianças.

 

Impõe-se anotar ainda que a vila também desvelava suas assombrações noturnas, cabendo recordar que por diversas vezes os luares do lugar foram estigmatizados por um ébrio contumaz, de nome Joaquim, que frequentemente chegava deveras alcoolizado, já tarde da noite, e deambulava madrugada adentro pela ruela a entoar cantilenas lúgubres com sua voz dissonante e avolumada, fazendo-se escutar por todos os moradores e metendo um temor inafastável nas minhas crianças, particularmente na Manina, que corria para a cama dos pais em busca de proteção, ela que, tempos depois, em determinada noite, foi recebida, ao chegar do trabalho, pelo irmão Valtinho no ponto de ônibus onde costumava desembarcar na avenida mais próxima, ocasião em que, já perplexa pelo inusitado dessa recepção, lhe foi revelada uma vultosa aglomeração de policiais decorrente de um bizarro e trágico homicídio ocorrido na vila, a saber, uma jovem moradora local, com seus dez ou doze anos de idade, fora atingida letalmente bem na fronte, entre os dois olhos, por uma bala de revólver disparada por seu pretendente, também adolescente, que apontou jocosamente essa arma de fogo, de propriedade do respectivo pai, em direção a sua amada quando ela exibiu a palma da mão com o nome dele nela estampado, sendo certo, todavia, que esse galanteador não tinha ciência de que o tambor do armamento estava carregado e apertou o gatilho por engano, fato que não o poupou de ser punido com medida de segurança, nem tampouco do remorso que o acompanharia pelo resto de seus dias, mas anos depois ele viria a contrair núpcias com a irmã da falecida.

 

Bizarra também foi a noite em que uma senhora, bastante obesa, caiu, não se sabe ao certo por qual motivo, da janela de um prédio, contíguo ao fundo do quintal da minha casa, e foi parar no chão deste pátio, vindo a sofrer lesões graves, eis que a altura da queda não fora desprezível, fato este que ensejou outro comparecimento maciço de policiais na vila e especialmente dentro do meu próprio lar, causando-nos aborrecimento e desconforto por um bom interregno, pátio este que também foi palco de outro episódio pitoresco e excêntrico quando meu primogênito Valtinho, sempre gaiato e quiçá zombeteiro, malgrado ainda imberbe, lá apareceu subitamente com um avantajado cavalo pangaré que encontrara naquelas paragens, aparentemente abandonado, conquanto ainda portando montaria, com provocar certa perplexidade temperada por gargalhadas incontidas, mas o certo é que tal primogênito não logrou êxito no manifesto desejo de possuir tal equídeo com o objetivo de brincar de cowboy com seus amigos da vila, sendo certo que tal exercício lúdico de mocinhos contra bandidos com seus colegas de infância rendeu-lhe certa feita sérios hematomas no nariz proeminente, pois fora amarrado em um poste de luz pelos pés e pelas mãos ao desempenhar o papel de bandido, mas conseguiu desvencilhar-se tão somente das amarras das mãos, o que o desequilibrou e fez cair com o rosto no chão e, se é certo que Valtinho sempre encerrou de fato um espírito deveras galhofeiro, o mesmo acontecia com meu outro filho varão, Valdecir, de alcunha Ci, mas nesse último caso o temperamento também era contaminado por certa irascibilidade à flor da pele, do que dá notícia seu costume de, sempre furtivamente, chutar a lata de lixo de uma das vizinhas da ruela, com quem não simpatizava por ter sido denunciado perante minha esposa por causa de alguma de suas traquinagens.

 

Nosso lar na vila do Cambuci também foi palco de animadas reuniões de vários integrantes do Clube Mágico Paulista, cuja verdadeira sede instalava-se no prédio do colégio Sagrado Coração de Jesus, situado nos Campos Elíseos e atualmente sob lamentável ameaça de desaparecimento, e era composto de figuras bastante excêntricas, peculiaridade, ao que parece, de incidência endêmica entre ilusionistas, prestidigitadores e ventríloquos, o que não me impediu de estabelecer duradouros laços de sincera amizade com boa parte deles, tais como o carioca Bakito, cujo filho veio a falecer prematuramente em razão de uma bola de futebol que lhe fora disparada contra a cabeça numa partida de várzea, o russo Makarade, cujas histórias de congelamento de orelhas, narizes e demais extremidades corporais pelo clima extremo da Sibéria, combatido com altas doses de vodka engolidas abruptamente, estimulavam a imaginação de todos, o querido Bruno, com seus cabelos ruivos, que morava em cubículo no centro da cidade, o altivo Morgado, vocacionado comerciante que administrava uma rede de vendas de material para mágicos, algo plenamente incompatível com a hodierna era digital, o invulgar Raful de Raful, que colecionava automóveis antigos, o talentoso Sandro, notável pela destreza com as cartas de baralho, entre tantas outras figuras extravagantes desse universo encantado.

 

Se, consoante adiantado, meu fiel amigo Morgado encerrava vocação para o comércio, o mesmo não sucedia comigo, pois cheguei, por um período razoável de tempo, a ser proprietário de um estabelecimento de natureza farmacêutica em nosso bairro, inicialmente instalado na rua Mesquita e posteriormente transferido para a avenida Lins de Vasconcelos, via arterial do logradouro, mas, movido por uma noção um tanto rara de honestidade imbricada com altruísmo, comprava à vista e vendia fiado, o que logo me conduziu a vender o negócio, ainda que a contragosto, com revelar, talvez, uma certa incompatibilidade entre o espírito comercial e a administração da saúde, parecendo lícito aventar que o mesmo não acontece com o ramo dos negócios de mobília, eis que, na sobreloja dessa farmácia, um simpático senhor de nome Samuel prosperou fabricando e vendendo móveis, ele que invariavelmente se dirigia à minha filha Manina com a carinhosa denominação de “turquinha”, provavelmente em razão de suas delicadas feições típicas de uma certa região do Oriente Médio, e facilitava a troca do nosso mobiliário anualmente com preços subavaliados, sendo certo ainda que, no interregno em que logrei relativo êxito como empresário, pude adquirir uma casa de veraneio no então distante e rural distrito de M’Boi Mirim, nas extremidades da zona sul do município paulistano, para onde nos dirigíamos nas férias por meio de táxi, pois eu nunca me interessei em obter habilitação de motorista de automóvel, ou éramos conduzidos por meu cunhado Eloy, que possuía um carro de grandes dimensões em cujo porta-malas, com a respectiva porta aberta, a criançada ficava e se divertia no trajeto, malgrado a necessidade de descerem deste porta-malas para que a viatura pudesse vencer o Morro do Índio no caminho, sendo de interesse notar que a casa de veraneio contava com quarto e sala bem amplos, cozinha dotada de um delicioso fogão à lenha, bem assim um largo pátio com poço artesanal, banheiro e as instalações da governanta que cuidava do lugar.

 

Quando me afastei definitivamente dos negócios de comércio de medicamentos, fui reconduzido ao estado de empregado, agora em um laboratório também de jaez farmacêutico, vindo a perceber que, no frigir dos ovos, o universo proletário também guardava suas delícias, nada obstante certa deterioração do conforto material, o que obrigou Valtinho e Manina, os filhos mais velhos, a se submeterem outrossim ao mercado de trabalho, mas a existência permaneceu animadora e emocionante, como na época em que eu adquiria arenque defumado na Mercearia Godinho, na rua Líbero Badaró, e me refestelava com minha família em casa, onde chegava sempre tarde da noite, de ônibus, carregando pedaços de pizza e chocolates “sonhos de valsa”, os quais fazia minhas crianças apreciarem, quase dormindo, mas já na cama.  

 

4. À guisa de conclusão.

 

A música, arte das musas, sempre exerceu sobre minha alma barroca e católica um poderoso fascínio, talvez pelo fato de se cuidar da mais abstrata das artes, a única que dispensa o sentido da visão para o seu deleite, conquanto compartilhe com a literatura o condão de estimular a criatividade, seja do intérprete da respectiva partitura, seja do leitor da obra impressa, e creio que seria vantajoso para todos se fosse exequível dotar a prosa literária de sons musicais, ou seja, se os livros fossem aquinhoados com músicas neles acopladas, de tal sorte que o leitor pudesse ouvir melodias e acordes no ato da leitura, notas musicais cuidadosamente escolhidas pelo escritor para enfatizar a narrativa, e quiçá em futuro próximo os livros digitais o façam, mas, por ora, como sou um cidadão do século passado, cingir-me-ei a sugerir uma sonata incidental para aquilo que narrarei em seguida, uma peça sonora que o eventual leitor pode colocar para tocar em seu dispositivo apto para tanto, e nesse sentido ouso recomendar o primeiro movimento da sonata Ao Luar de Beethoven, um movimento marcado com adagio sostenuto pelo compositor, algumas das páginas mais solenes e misteriosas do repertório clássico, bastante adequada ao estado de espírito com que, em certa ocasião, retornei, já idoso, a Congonhas do Campo colimando estabelecer novo colóquio com o profeta Daniel de pedra sabão engendrado pelo mestre Aleijadinho, numa fria noite de junho cuja lua cheia aparecia intermitente entre a bruma espessa que caíra no lugar, e eu efetuei uma genuflexão para suplicar àquela escultura magnífica que conversasse comigo, como fizera outrora.

 

Mas ela nunca mais me respondeu.