Lincoln Secco
O Brasil foi um dos países que mais cresceram no mundo entre 1930 e 1980 ou mais precisamente até 1985. Desde então o emprego industrial caiu como percentagem da população economicamente ativa.
O Brasil não vivenciou uma verdadeira Revolução Industrial e sim um processo de industrialização em que o Departamento I (produção de bens de capital) não foi internalizado. Isso permitiu a regressão vivenciada desde a década de 1970. Todavia, há que se perguntar: as mudanças metodológicas nas contas nacionais alteraram nossa leitura da magnitude e periodização da desindustrialização?
Definição
Uma das maneiras de se definir a desindustrialização é a persistente queda da indústria de transformação no PIB. No caso brasileiro, esse processo se iniciou na metade dos anos 1980.
Para se calcular a participação setorial no PIB divide-se o valor adicionado bruto de cada setor pelo PIB. Para o IBGE o PIB exclui, no entanto, os serviços de intermediação financeira indiretamente medidos. Assim, criou um dummy (uma espécie de setor fictício descrito mais abaixo) para descontar o seu valor. Esse desconto só incidia sobre o PIB total e não sobre cada setor da economia, de modo que a soma dos setores era maior do que o total do PIB.
As instituições financeiras apoderam-se de parte do valor gerado na produção e o registram como receita, mas não produzem esse valor:
“O dummy financeiro representa o diferencial entre os juros recebidos e os pagos, isto é, juros imputados como receita às instituições financeiras que não correspondem ao valor efetivo gerado nessa atividade. O que se considera é que as instituições financeiras apropriam-se do valor gerado em outras atividades, pela intermediação financeira, o que implica uma dupla contagem no valor adicionado. Portanto, esse diferencial deve ser descontado no final”¹
Em 1985, ano de maior participação da indústria de transformação no PIB (35,9%), a agropecuária atingiu 12,6%, outras indústrias 12,1% e serviços 52,9%, somando 113,5%² e não 100%.
Paulo Morceiro desenvolveu um método para eliminar tanto as quebras metodológicas do sistema de contas nacionais do IBGE quanto o dummy. Na nova série ajustada a manufatura atingiu o máximo de 27,3% do PIB em 1986.
Nenhuma mensuração do PIB é prefeita. Há problemas com a contabilidade dos serviços e as mudanças deste setor ao longo da história. Também não se leva em conta os “custos” ambientais.
Declínio
O Brasil vivencia uma desindustrialização muito diferente dos países centrais. Os empregos industriais não são substituídos por serviços tecnológicos avançados e nem a indústria sobrante exibe alta produtividade.
Desde 1985 o país passou pela inflação alta, dívida externa, recessão do governo Collor, a valorização cambial e a armadilha dos juros altos criada por FHC, crises internacionais e incapacidade dos governos do PT de modificar a tendência de declínio das manufaturas.
Recentemente, Edmar Bacha, membro da entourage de Fernando Henrique Cardoso na época do Plano Real, escreveu no Valor Econômico que nosso caso não foi o de uma desindustrialização precoce. Aliás, segundo ele, a parcela da indústria no PIB da OECD era 14,3% em 1995 e caiu para apenas 13,8% em 2022, uma medida (0,5pp) dez vezes menor do que a brasileira (5pp) que caiu de 14,5% a 9,3% no mesmo período. Daí segue-se um argumento estatístico de zero significado histórico:
“Calculamos que para cada 1pp de desindustrialização na OECD ocorre uma desindustrialização de 1,6pp no Brasil”. Portanto, a desindustrialização de 0,5 pontos percentuais da OECD “consegue explicar apenas 0,8pp da desindustrialização brasileira”.
Essa correlação é arbitrária na medida em que exclui as diferenças entre o centro e o Brasil, país continental, de amplo mercado interno potencial (com milhões de consumidores excluídos em 1995), de renda per capita menor que a europeia, situado na periferia da economia mundo e submetido a uma política econômica que desde 1990 desestimula a indústria com abertura comercial e privatizações de setores estratégicos que geravam encomendas nacionais.
Bacha aplica o mesmo raciocínio para mostrar que a doença holandesa não explica a maior parte da desindustrialização. O termo se refere à descoberta de gás natural na Holanda: as receitas de exportações de produtos primários valoriza a moeda local face ao dólar e reduz os preços dos produtos importados e dificulta as exportações dos manufaturados domésticos. Luiz Nassif desmontou o absurdo de se usar os termos de troca (índices de preços de importações e exportações) para comparar o intercâmbio de um país agroexportador com países exportadores de manufaturados e serviços avançados³.
No Plano Real o juro alto serviu para atrair moeda estrangeira, manter o dólar barato e o Real valorizado. Taxa de juros e câmbio podem explicar muito mais a desindustrialização, embora haja vários fatores que apenas a exposição do processo histórico pode desvendar.
O famoso custo do trabalho foi outra das armas exibidas pelos neoliberais. A ideia é que ao incrementar a diferença entre o que a força de trabalho produz e o que ela custa aumentaria a produtividade. Todavia, esse “custo” vem sendo reduzido por salários baixos e perda de direitos trabalhistas desde a implantação da Ditadura de 1964 e nada disso melhorou a “produtividade” da indústria. Portanto, o custo para se obter o capital, dentre outros fatores, pode explicar mais a falta de investimento na indústria.
Mas em geral não se diz que os juros altos no Brasil são bons, mas sim um amargo remédio necessário. A lógica neoliberal é que se o governo tem déficit fiscal ele precisa emitir título para completar o orçamento, e se faz isso precisa pagar juros. As mega-privatizações, décadas de juros altos, lei de responsabilidade fiscal, teto de gastos e novo arcabouço fiscal não serviram para acabar com a dependência do remédio.
A proposição de Bacha se enquadra no argumento político, com vestimenta técnica, de que a apreciação cambial melhorou o parque produtivo nacional com máquinas importadas; que é cabível a comparação com países muito mais desenvolvidos que o Brasil e que tiveram alguma desindustrialização; e, por fim, que a indústria não precisa ser o carro-chefe do desenvolvimento. Política – ideologia econômica – guerra formam um continuum.
Notas:
1. Cf. Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, 2002.
2. Morceiro, P. C. “Influência metodológica na desindustrialização brasileira”, Revista de Economia Política, v. 41, n. 4, 2021.
3. Nassif, L. “Bacha e a miséria da economia”, GGN, 18-7-2024.
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