O COLÓQUIO DAS PEDRAS
(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador e advogado)
Acredito piamente que poucas crianças tiveram, como eu tive, o exuberante privilégio de conviver com um amoroso e longevo avô versado nas artes do ilusionismo mágico e da ventriloquia, mas tal universo é decerto ainda mais restrito se o ascendente nasceu em um logradouro completamente envolto em histórias místicas e assombradas como a região das cidades barrocas do sul de Minas Gerais.
Eu ostentava já meus sete ou oito anos de idade quando, nas férias, fui conduzido por meus pais a visitar pela primeira vez essa região encantada do Brasil, e não poderia ter antes imaginado que tal experiência lograria escavar sulcos indelevelmente profundos na tábua rasa da minha então incipiente personalidade.
Elegeu-se como parada inicial da viagem, naturalmente, a cidade de São João del-Rei, berço de meu avô, onde ficamos hospedados por dois ou três dias na casa de sua vetusta prima de alcunha Sinhana, uma senhora robusta e de temperamento marcante que lutara com seu falecido marido nas campanhas da Revolução de 1932, sendo interessante notar que a modesta mas bem cuidada residência situava-se significativamente defronte uma praça onde repousava orgulhosa uma belíssima peça de artilharia antiga esculpida em metal já então oxidado. O problema axial consistia, entretanto, no fato de que aquela anciã de gestos largos e impetuosos metia-me um medo incontornável, parecendo-me verossímil que ela pudesse, em sua epidérmica loucura, golpear-nos sorrateiramente durante o sono noturno com a velha espingarda que mantinha guardada em casa, de tal sorte que as noites passadas naquela assustadoramente provecta cidade foram para mim de vigília e insônia.
Nada obstante, os passeios diurnos que empreendemos durante tal estada em São João del-Rei mostraram-se bastante animados e, diria mesmo, de uma inolvidável magia, máxime nas visitas aos antigos amigos de infância de meu avô, que nos acompanhava nessa viagem e desempenhava o importante papel de anfitrião e cicerone.
De proêmio, visitamos o solar dos Viegas, uma mansão em estilo arquitetônico colonial e de chão feito de longuíssimas tábuas de madeira que rangiam solenemente sob a pressão de nossos passos, cujo antigo dono e patriarca da família, José Viegas, inventara e patenteara um tinteiro que evitava o derramamento de seu conteúdo mesmo quando mantido aberto de cabeça para baixo. Sua quase centenária esposa, dona Celina Viegas, que fora professora de meu avô no primário e já não podia valer-se muito dos sentidos da audição e da visão, vencia airosamente a cegueira com os dedos finos por meio dos quais tateava e tramava magníficas e opulentas colchas de crochet.
Depois visitamos o senhor Guerra, que mantinha com galhardia o único cinema da cidade, bem como o senhor Lauro Novais, morador do pioneiro prédio com elevador do lugar e cujo misterioso e recluso filho não aparecia para ninguém que chegasse em sua casa.
Por derradeiro, fomos reconhecer, no passeio mais emocionante, o teatro municipal de São João del-Rei, onde outrora minha mãe, quando ainda criança, desincumbira-se como bailarina de personagem característico da obra “O quebra-nozes” de Tchaikovsky. Ela contou-nos que o frio na ocasião era intenso e a roupa muito apertada, o que não a impediu, porém, de desenvolver com majestade uma coreografia em que botões de rosa desabrochavam ao suave toque da vara de condão por ela manejada. A fotografia desse evento, com minha mãe posando com roupa e sapatilhas de balé, é desses ícones constitutivos do imaginário perene de uma pessoa.
Mas embrenhamo-nos também nas variegadas igrejas do período colonial, componentes do cenário de arraigado catolicismo que caracteriza a cidade e seu povo, quando então tive a oportunidade de travar contato inicial com o nome de Antônio Francisco da Costa Lisboa, vulgo Aleijadinho, sem embargo o mais notável artista do barroco mineiro e quiçá mundial, cujo templo dedicado a São Francisco de Assis, máxime o retábulo de sua capela-mor, com seus detalhes retorcidos banhados em ouro, exibe a aptidão francamente sobrenatural de conduzir-nos diretamente ao céu. Foi aí que eu privei com Deus por vez primeira, foi então que eu conheci e provei os consectários do poder inebriante da religião católica, tão exaltados naquela obra-prima da arte tipicamente barroca, cujo caráter foi rigorosamente escrutinado pelo filósofo Gilles Deleuze ao investigar o pensamento de Leibniz no inspirado livro intitulado “A dobra”.
Essa comoção sobrenatural ínsita ao barroco mineiro eu experimentei novamente durante a procissão pelos grandes portais representativos dos passos da Paixão de Cristo, característica das festividades que inescapavelmente acompanham a Semana Santa em São João del-Rei, sendo certo suscitar que, para uma criança de sete anos de idade, tal turbilhão emocional faz impregnar durante muito tempo, senão permanentemente, a religião no mais recôndito e inexpugnável canto de seu átrio esquerdo.
E eu retornei ao céu alguns dias mais tarde, diante dos doze profetas bíblicos, em pedra-sabão, esculpidos pelo mesmo Aleijadinho para compor o proscênio do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos na cidade de Congonhas do Campo, distante alguns quilômetros de São João.
Tão vívida e impressionante foi a experiência de conhecer esse Santuário e suas estátuas fulgurantes que, quando retornamos à noite para o hotel de Congonhas onde fincamos hospedagem, eu fui inexoravelmente compelido a desenhar de memória a assombrosa figura do profeta Daniel afagando o nefasto leão em seu entorno. Tinha sido demasiada aquela visita, comovera-me até às lágrimas, pois eu não imaginava que se pudesse conceber e extrair tamanha beleza de pedra bruta. Eu desenhei o profeta Daniel segundo Aleijadinho porque qualquer tentativa de verbalizar a emoção seria ociosamente malograda, e em dado momento dei-me conta de que especulava de forma solitária e em silêncio se Deus poderia conferir vida àquela escultura, dotando-a de alma e fala.
Eu pensei com minha lógica pueril que, se meu avô, mero mortal, podia de certo modo atribuir vida a seus bonecos de madeira pela ventriloquia, concedendo-lhes movimento e fala, então o onipotente Deus seria capaz de fazer viverem as esculturas de pedra-sabão, que é material mais duro, e portanto mais impermeável à penetração da alma do que a madeira. Seria uma mera questão de fazer soprar o Verbo Divino naquelas estátuas.
Muito mais tarde, quando meu avô, aos noventa e quatro anos de idade, despediu-se deste mundo, eu fui contemplado com seu legado mais interessante, consistente em dois bonecos de madeira para ventriloquia e um desconhecido livro antigo.
Os bonecos eram meus velhos conhecidos, os quais tinham, em suas longas carreiras de encantamento de milhares de crianças, logrado sucesso retumbante, mas já estavam aposentados há algum tempo, conquanto em perfeito estado de conservação. O primeiro deles respondia pelo apelido de Peleco, e mimetizava um moleque afrodescendente de olhos esbugalhados e beiços proeminentes, enquanto o outro, de nome Nicolau, correspondia a uma cabeça perolizada de um velho de barbas brancas confinada em uma caixa preta quadrangular que abria e fechava na parte frontal. No meu sentir, cuidava-se de dois personagens comicamente míticos, o que pode lançar uma pequena ideia do regozijo que foi recebê-los como herança de um avô igualmente mitológico, conquanto de carne e osso.
A derradeira parte do legado veio-me na forma de um misterioso e velho livro editado ainda no século dezenove, em bom estado e de capa dura feita de couro, em cujo frontispício lia-se, em letras douradas, o instigante título “Breve relato dos colóquios entre o Aleijadinho das Minas Gerais e seus doze profetas de pedra-sabão”.
Estarrecido e atordoado na primeira vez que tive essa obra em minhas mãos, pus-me a compulsar seu conteúdo incontinenti, o qual versava sobre as conversas que, supostamente, o grande e deformado artista barroco mineiro mantinha com seus doze videntes de pedra durante as noites de lua cheia. Para meu espanto e surpresa, o colóquio inaugural do livro, de autoria desconhecida, era precisamente com a escultura do profeta Daniel.
“O rei babilônico Nabucodonosor sonhou com uma estátua e com uma árvore, e eu revelei-lhe os significados de tais visões, mas para você os significados são diversos”, disse o profeta Daniel feito de pedra, ao dirigir-se ao seu criador.
“Conte-me tudo, por favor ”, pediu Aleijadinho.
“A estátua de que lhe falei era resplandecente e feita de ouro, prata, bronze e ferro, mas os pés eram feios de uma mistura de barro e ferro. Uma pedra soltou-se espontaneamente da montanha e caiu sobre os pés da estátua, reduzindo-a a pó”, falou Daniel.
“Mas o que isso significa?”, indagou Aleijadinho.
“Você fez-me uma estátua de pedra, a mesma pedra que destruiu a estátua de pés de barro do rei babilônico, então o arrasador confunde-se com o arrasado, mas como eu sou feito de pedra, nada poderá destruir-me. No entanto, a pedra do sonho de Nabucodonosor transformou-se numa grande montanha, então eu voltarei um dia a ser parte das montanhas mineiras”, explicou Daniel.
“E a árvore?”, perguntou o artista.
“O anjo-vigia derrubou a imensa e frondosa árvore, cortou seus galhos, tirou as folhas e jogou fora as frutas, espantando os animais que estavam descansando na sua sombra e as aves que estavam nos seus galhos, sendo certo que o toco e as raízes remanescentes viraram um homem. Você é esse anjo-vigia que mata a árvore e com ela faz santos e messias inanimados”.
Anos mais tarde, fui revisitar Congonhas do Campo colimando falar com a estátua do profeta Daniel.
“Converse comigo, por favor”, exorei ao Daniel de pedra-sabão, numa noite fresca de lua cheia.
Mas ele jamais respondeu-me.
(dedico este conto à memória de meu avô Alcides Franco da Silva)