Se considerarmos a teoria marxista do valor como um axioma — isto é, como um ponto de partida incontornável e não demonstrável dentro do próprio sistema teórico — o projeto de Karl Marx aproxima-se ainda mais do projeto formal de David Hilbert em sua tentativa de fundar a matemática moderna. Ambos os autores propuseram arquiteturas conceituais totalizantes que partem de princípios fundamentais: o valor-trabalho em Marx, os axiomas formais em Hilbert. Cada um, à sua maneira, buscava derivar a totalidade de um domínio — o social-econômico e o lógico-matemático — a partir desses fundamentos. Mas se esses projetos partem de axiomas, eles também se deparam com os limites lógicos e históricos desses mesmos fundamentos.
No caso de Marx, o axioma do valor — segundo o qual o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção — estrutura toda a crítica da economia política. É com base nele que Marx analisa a produção de mais-valia, a acumulação de capital, as crises e a própria forma social do trabalho. Entretanto, quando esse axioma é aplicado à força de trabalho, surge uma aporia interna: seu valor é definido não pelo tempo de trabalho diretamente, mas pelos meios de subsistência, introduzindo uma tautologia (valor definido pelo valor). Tal fissura sugere que o axioma não é logicamente autossuficiente para dar conta da totalidade que pretende explicar. Ainda mais, o problema da transformação dos valores em preços de produção desafia a universalidade dedutiva do sistema, expondo tensões entre forma lógica e realidade empírica.
Hilbert, por sua vez, tratava os axiomas da matemática como convenções iniciais — fundamentos simbólicos a partir dos quais toda a matemática deveria ser deduzida formalmente. Seu Programa visava garantir que os sistemas matemáticos fossem consistentes, completos e decidíveis. No entanto, os teoremas da incompletude de Kurt Gödel demonstraram que nenhum sistema formal suficientemente poderoso para abarcar a aritmética pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Ou seja, mesmo partindo de axiomas bem definidos, Hilbert esbarrou em contradições lógicas imanentes ao seu próprio projeto. O axioma, longe de sustentar toda a edificação, revelou sua incapacidade de abarcar a totalidade que se pretendia deduzir.
Assim, tanto Marx quanto Hilbert, partindo de axiomas fundantes, tentam construir sistemas totalizantes — e ambos colapsam diante de suas contradições internas. No caso de Marx, a contradição é histórica e dialética: o social escapa à apreensão formal integral. No caso de Hilbert, a contradição é lógica e estrutural: o formalismo não pode provar sua própria completude. Esses projetos mostram que a totalidade é um horizonte sempre tensionado, e que mesmo os sistemas mais rigorosos carregam, em sua raiz, limites que os impedem de se realizar plenamente. A noção de axioma, longe de garantir estabilidade, pode ser justamente o ponto onde a instabilidade irrompe.
Portanto, a comparação entre Marx e Hilbert revela o destino paradoxal dos grandes sistemas modernos: sua grandeza reside tanto em sua ambição totalizante quanto em sua capacidade de revelar os próprios limites da razão formal ou crítica. Ambos os autores, cada um em seu campo, iluminam o dilema fundamental da modernidade: a busca por fundamento absoluto, confrontada com a impossibilidade interna da totalização definitiva.
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário