Ao longo do século XIX e início do XX, dois dos mais influentes projetos intelectuais de fundamentação totalizante foram formulados por Karl Marx, no campo da crítica da economia política, e David Hilbert, no campo da matemática. Ambos os pensadores buscaram, por vias distintas, construir sistemas teóricos abrangentes, coerentes e autoconsistentes, capazes de explicar — ou formalizar — a totalidade de seu respectivo objeto de estudo. Contudo, ambos os projetos enfrentaram contradições internas que desafiaram suas ambições originais.
O projeto de Marx, sobretudo a partir de sua obra "O Capital", visava desvelar as leis estruturais do modo de produção capitalista. Sua pretensão era fundar uma ciência da história e da sociedade baseada em uma lógica interna — a do valor — regida pela categoria do trabalho socialmente necessário. A análise marxiana parte do abstrato (mercadoria, valor, dinheiro) e avança para o concreto (mais-valia, acumulação, crise). No entanto, esse edifício conceitual enfrenta aporias internas, notadamente quando define o valor da força de trabalho não diretamente pelo tempo de trabalho necessário à sua produção, mas pelos meios de subsistência historicamente determinados — o que introduz uma circularidade e uma possível tautologia que abalam a consistência do sistema, como alguns leitores apontaram. Além disso, o problema da transformação dos valores em preços de produção gerou intenso debate posterior, desafiando a completude da teoria.
Por sua vez, Hilbert buscava fundar toda a matemática sobre uma base formal e finita. Seu projeto, conhecido como Programa de Hilbert, pretendia demonstrar que os sistemas formais da matemática são completos, consistentes e decidíveis usando apenas métodos finitos. Para Hilbert, a matemática deveria ser um jogo simbólico regido por regras claras, livre de contradições e plenamente verificável. No entanto, esse programa foi abalado pelos teoremas da incompletude de Gödel (1931), que demonstraram que qualquer sistema formal suficientemente poderoso para conter a aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Assim, o projeto hilbertiano foi confrontado com os próprios limites internos da formalização matemática.
Tanto em Marx quanto em Hilbert há, portanto, uma tensão constitutiva entre o desejo de totalidade sistemática e as fissuras internas que emergem do próprio solo conceitual. Em Marx, o real histórico e social escapa ao controle total do sistema lógico-dedutivo, abrindo espaço para contradições dialéticas que não se resolvem formalmente. Em Hilbert, o ideal de completude formal é minado por barreiras lógicas que emergem da própria estrutura do raciocínio matemático. Ambos revelam, a seu modo, o drama da modernidade: o esforço de racionalização totalizante confrontado por limites imanentes, sejam históricos ou lógicos.
Essa análise conjunta permite compreender como os projetos mais ambiciosos do pensamento moderno carregam em si mesmos as sementes de suas rupturas. Longe de invalidá-los, tais contradições internas tornam-nos ainda mais fecundos para uma crítica filosófica profunda — ao evidenciar que a totalidade, seja social ou formal, é sempre um horizonte tensionado e nunca plenamente realizável.
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.
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