Outra vez a China - Wladimir Pomar
Publicado originalmente em: http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/internacional/outra-vez-china
Resta a dúvida se o socialismo de mercado com
características chinesas será mesmo o caminho de transição do capitalismo ao
comunismo na China. Portanto, acompanhar com isenção teórica suas experiências
práticas é indispensável para os socialistas brasileiros terem uma noção mais
realista das dificuldades que a superação do capitalismo coloca
A China ainda terá problemas como as bolhas
especulativas e a desvalorização do yuan
Como acontece de tempos em tempos, a China voltou
negativamente ao noticiário. Internacionalmente, desta vez, porque as bolsas de
Xangai e Shenzhen tiveram uma bolha especulativa, porque o yuan foi
desvalorizado e porque as taxas de crescimento deverão se manter baixas em
“apenas 7% ao ano”.
Em termos nacionais, afora isso, porque as relações
do Brasil e outros países em desenvolvimento com a China conformariam uma
ligação quase colonial, como mercados cativos supridores de matérias-primas
para aquele país. Na prática, além de faltar um passo para apresentarem a China
como o maior inimigo desses países e da humanidade, algumas dessas
interpretações aproveitam a ocasião para criticar o modelo de desenvolvimento
industrial capitalista chinês, que seria predador e o principal fator das
mudanças climáticas mundiais.
Em relação à China nunca é demais lembrar que ela
jamais chegou a ser uma economia dominada pelo mercado, embora este tenha
aparecido cedo em sua história. A Rota Terrestre da Seda para o ocidente passou
a ser trilhada por caravanas de mercadores chineses da dinastia Han e de outras
nacionalidades, especialmente árabes e turcos, desde o século 2 antes de nossa
era. Nos séculos 14 e 15, frotas oceânicas chinesas navegavam pela Rota
Marítima da Seda, negociando com povos do sudeste da Ásia, Índia, Golfo Pérsico
e África Oriental. A essa altura, os chineses já construíam embarcações com
cascos estanques, lemes e velas triangulares, cujas tripulações se orientavam
por meio de bússolas.
Ou seja, antes dos europeus, os chineses realizaram
um mercantilismo que, embora limitado ao sudeste do Oceano Pacífico e ao Oceano
Índico, lhes permitiu acumular grandes riquezas através da venda de seus
artesanatos e manufaturas de seda, laca, cerâmicas e porcelanas. Tal riqueza
poderia ter se transformado em “capital” se a China houvesse revolucionado sua
agricultura, expropriado seus camponeses e os tornado trabalhadores livres para
vender sua força de trabalho para os comerciantes manufatureiros. No entanto, o
sistema feudal centralizado, com mais de 1.500 anos de existência, foi mais
forte e se impôs aos mercadores, impedindo que a China ingressasse no sistema
capitalista antes dos europeus.
A Rota da Seda marítima foi desativada, a esquadra
chinesa destruída, a riqueza entesourada. E a dinastia Ming foi incapaz de
resistir aos manchus, que invadiram a China, instauraram a dinastia Qing e
consolidaram a regressão feudal. Tal regressão e o atraso técnico da China a
tornaram incapaz de enfrentar a segunda onda colonial europeia, realizada pelas
novas potências industriais, a partir do século 19. Entre 1840 e 1949, a China
viveu sob os domínios manchu e dessas potências capitalistas, às quais fez
concessões territoriais, alfandegárias e extraterritoriais para que elas
extraíssem as matérias-primas minerais e agrícolas de que suas indústrias
necessitavam.
Para livrar-se desses domínios, os chineses
realizaram, entre 1864 e 1949, inúmeras revoltas, tendo por base fundamental o
campesinato. Dentre elas destacaram-se as duas primeiras guerras civis
revolucionárias, entre 1924 e 1937, a guerra de resistência contra a invasão
japonesa, entre 1937 e 1945, e a terceira guerra civil revolucionária, entre
1947 e 1949.
Entre 1950 e 1957, os chineses implementaram a
reforma agrária e superaram os três grandes males (fome, desemprego e milhões
de sem-teto). Após isso, fizeram várias tentativas para industrializar o país,
desenvolver suas forças produtivas e construir uma civilização material e
culturalmente elevada, sem passar pelos males do mercado e do capitalismo.
Promoveram o Movimento das Cem Flores, para
corrigir os desequilíbrios entre a indústria pesada e a agricultura e a
indústria leve. Jogaram-se no Grande Salto Adiante para desenvolver a indústria
do aço e as áreas irrigadas. Planejaram as Quatro Modernizações, que pareceram
a muitos uma imensa concessão ao capitalismo e ao mercado. E mergulharam, em
oposição àquelas modernizações, na Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.
Essa foi a maior tentativa massiva até então
conhecida pela humanidade para, através da intensa mobilização popular,
ideológica e política, desenvolver as forças produtivas, estabelecer relações
de produção e de vida igualitárias e promover a democracia direta. Seus
resultados foram um baixo desenvolvimento das forças produtivas e da
produtividade, o aumento da escassez, em parte produzido também pelo rápido
aumento da população, uma regressão cultural causada pelo fechamento das
universidades e danos à democracia popular.
O igualitarismo obtido teve como base 400 milhões
de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e, como teto, 700 milhões de
pobres. A experiência de dez anos de Revolução Cultural demonstrou que não é
possível socializar as relações de produção sem ter, por sustentação, forças
produtivas (meios de produção e força de trabalho) técnica e cientificamente
desenvolvidas. Os chineses tiveram de cair na realidade, já prevista por Marx.
O alto desenvolvimento técnico e científico das
forças produtivas é uma tarefa histórica do capitalismo e dos instrumentos que
herdou das formações históricas anteriores e que elevou a um novo patamar. Isto
é, a propriedade privada, as relações assalariadas, a indústria e o mercado.
Por outro lado, através da própria experiência, o capitalismo sabia que esse
modo de produção gera, constantemente, experiências de socialização, tanto na
produção quanto na cultura e na política. E que suas crises o levam a apelar ao
Estado, dando-lhe autonomia para salvar o sistema do desastre de sua anarquia
produtiva.
Em outras palavras, o Estado pode, ao mesmo tempo,
desenvolver instrumentos econômicos socialistas e se impor aos capitalistas e
ao mercado para realizarem um desenvolvimento menos caótico das forças
produtivas. Assim, foi com base na combinação do rescaldo de sua Revolução
Cultural, das crescentes dificuldades econômicas do socialismo soviético, das
crises do capitalismo e de sua restruturação nos anos 1970, especialmente dos
Estados Unidos, e das previsões de Marx sobre a transição do capitalismo para o
comunismo que os chineses discutiram suas experiências e decidiram empreender
reformas e abertura em seu socialismo, a partir de 1978.
Essas reformas têm tido como métodos básicos o
passo a passo, sem choques, e experimentações diversas antes de adotar medidas
e generalizá-las. O mercado é tomado como indispensável para a determinação do
cálculo econômico (demandas, ofertas e preços) e para o revolucionamento das
forças produtivas. Nele atuam as empresas estatais, como instrumentos do Estado
para orientar o desenvolvimento econômico e social e para conquistar superioridade
na competição com as outras formas de propriedade (privadas e sociais). Os
monopólios, sejam estatais, sejam privados, não são admitidos porque tendem a
promover o congelamento da concorrência, ou da competição, e portanto estimulam
a burocratização e a estagnação das forças produtivas.
Desse modo, na economia o Estado tem o papel de:
planejar a longo prazo; desenvolver projetos macroeconômicos específicos; atuar
economicamente no mercado através das empresas estatais, que por sua vez
possuem autonomia para competir entre si e com as empresas privadas; atuar
econômica e administrativamente sobre o mercado para garantir preços básicos
baixos para o conjunto da população; atuar sobre os juros para ampliar os
investimentos produtivos; atuar sobre o câmbio para garantir preços
competitivos no mercado internacional; atrair investimentos externos no sentido
de adensar suas cadeias produtivas e garantir a transferência de inovações
científicas e tecnológicas.
Nas diferentes áreas sociais o Estado deve: investir
pesadamente em educação e em pesquisa e desenvolvimento; garantir o
enriquecimento em ondas do conjunto da população; universalizar os serviços
públicos de saúde e atendimento médico; ampliar a formação cultural de modo a
garantir que, paralelamente à construção de uma nova civilização material, seja
edificada uma nova civilização cultural.
Esse é o atual sistema socialista chinês. Nele, o
Estado e seus instrumentos econômicos e administrativos desempenham papel
planejador e diretor no processo de desenvolvimento. Eles operam no sentido de
combinar o desenvolvimento social e cultural com o desenvolvimento econômico e
combinar a cooperação e o conflito entre as formas sociais e privadas de
propriedade. Depois de mais de dez anos de experiências de reforma e abertura,
tal sistema foi conceituado, em 1994, como “socialismo de mercado com
características chinesas”.
Ou seja, não é um socialismo para servir de padrão
para ninguém, já que as outras nações que pretendam ingressar em caminhos
idênticos possuem características históricas próprias e podem pretender seguir
por outros caminhos de transição. Além disso, os chineses reiteraram que se
encontram na fase primária da construção socialista. E que tal construção,
material e cultural, talvez tenha de atravessar décadas ou mais até alcançar
sua fase superior.
Afinal, o socialismo chinês ainda enfrenta inúmeros
problemas. Há corrupção nos mais diferentes níveis de governo. O
desenvolvimento regional ainda é muito desigual. O enriquecimento individual e
familiar também é desigual, embora cerca de 800 milhões de pessoas tenham sido
elevadas da situação de pobreza para a que comumente se chama de classe média.
À poluição herdada de milênios de exploração dos solos e das águas juntou-se a
poluição da construção industrial. O produto nacional bruto (PNB) continua
menor que o produto interno bruto (PIB) em virtude da grande participação das
empresas estrangeiras em sua economia. A grande acumulação de reservas exige
que a China exporte capitais, seja na forma de investimentos de empresas
chinesas no exterior, seja na forma de empréstimos externos. E a democratização
é paulatina e mais vagarosa do que seria desejável.
Além disso, a China se confronta com problemas
internacionais sobre os quais tem pouca ou nenhuma influência. Ela necessita de
paz por longo prazo para poder se desenvolver plenamente, mas se vê obrigada a
investir na indústria bélica para se precaver. Necessita de multipolaridade
para evitar ser tomada como único perigo ao capitalismo, e por isso precisa investir
e ajudar outros países a se desenvolver e a desempenhar um papel mais ativo na
arena internacional. Tem necessidade de matérias-primas minerais e agrícolas,
mas isso às vezes é tomado como uma ação de tipo colonial, embora a China
sempre procure obtê-las através do mercado internacional e jamais tenha se
utilizado de canhoneiras para garantir sua obtenção.
Olhando em perspectiva, bolhas especulativas nas
bolsas de Xangai e Shenzhen, valorizações e desvalorizações do yuan, taxas de
crescimento de 7% ao ano, desemprego de 4% ao ano, guerra constante contra
corruptores e corruptos, desenvolvimento regional desigual, enriquecimento
individual e familiar desigual, presença residual de bolsões populacionais
abaixo da linha da pobreza, ou na pobreza, poluição, democratização paulatina e
outros problemas internos talvez ainda se mantenham na China por décadas. Num
país com tamanha dimensão territorial, populacional e histórica, seria pedir
milagres querer resolver seus problemas estruturais em menos de cem anos.
Para complicar, a China também não está imune às
loucuras do capitalismo em crise. Nem depende dela que cada um dos países com
os quais mantém relações diplomáticas, econômicas e comerciais tenha seus
próprios planos e projetos de desenvolvimento e coopere e/ou compita com ela no
mercado internacional. Ela continuará tendo necessidade de matérias-primas
minerais e agrícolas, e depende de quem as tem aproveitar-se disso para
investir no próprio desenvolvimento industrial, como é o caso do Brasil.
O problema aqui reside em que há poderosas
correntes contrárias à retomada da industrialização brasileira. Umas, na utopia
de que a desurbanização, a agricultura familiar e o modo indígena de tratar a
natureza serão capazes de resolver os problemas nacionais. Outras, com o
objetivo de impedir o surgimento de novos concorrentes internos e
internacionais e manter o Brasil subordinado aos ditames dos oligopólios
estrangeiros aqui implantados, assim como os do sistema financeiro. Todas se
contrapõem a que o Brasil possua planos gerais e projetos executivos voltados
para a industrialização e que atraiam investimentos chineses para sua
efetivação.
Por outro lado, como os chineses, na ausência de
tais planos e projetos, procuram investir em áreas de seu próprio interesse,
fica mais fácil chamá-los de investidores capitalistas interessados na
exploração das riquezas brasileiras, embora, em comparação com os investimentos
das potências capitalistas no Brasil, participem apenas com um pequeno
percentual. Em outras palavras, o Brasil não subordina suas relações econômicas
aos projetos nacionais, não aproveita suas vantagens competitivas para importar
bens de capital e industrializar-se nem tem projetos para disputar segmentos do
crescente e imenso mercado chinês.
Resta, para finalizar, a dúvida sobre se o
socialismo de mercado com características chinesas será mesmo o caminho de
transição do capitalismo ao comunismo na China. Isso, somente a prática e a
luta de classes poderão responder. Da mesma forma que a prática demonstrou que
o socialismo de tipo soviético, com estatização total, é inviável, somente a
prática poderá dizer se países atrasados do ponto de vista capitalista poderão
superar o capitalismo através de longas transições socialistas de mercado, com
características nacionais.
Por isso, independentemente de gostarmos ou não dos
chineses, ou dos vietnamitas, ou dos cubanos que agora ingressam por caminho
idêntico, acompanhar com isenção teórica suas experiências práticas será
indispensável para os socialistas brasileiros terem uma noção mais realista das
dificuldades que a superação do capitalismo coloca diante deles. Isso é ainda
mais necessário porque voltaram a vicejar as correntes utópicas que acham
possível superar o capitalismo retornando a uma felicidade indígena ou
camponesa que jamais existiu.
Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate
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