domingo, 2 de junho de 2019

Eu não preciso ler a biografia do Zé Dirceu










Ciro Saurius


- Pode contar aí, são 71 anos de prisão anistiados! Gritou Zé Dirceu dentro da delegacia da Mooca.


Depois de uma panfletagem contra a perseguição de alunos na Universidade São Judas houve uma grande mobilização de estudantes. Desceram as escadarias às centenas e cercaram as viaturas que levavam o diretor da UNE, algemado. Acho que isso aconteceu numa noite fria de 1987. Diante do impasse negociaram-se as algemas: Rogério Fagundes iria para a delegacia registrar uma queixa contra a PM, mostrou os pulsos livres de pé em cima do capô do camburão, discursou, os estudantes abriram caminho para a saída da polícia. Nunca mais vi isso acontecer.

Na delegacia chegamos como testemunhas e viramos suspeitos – lembro-me estar sentado no chão, com o deputado Lucas Buzato e o vereador Adriano Diogo (que encontrei de novo em outras noites tirando jovens da cadeia em 2013). A sala estava cheia de policiais com suas pistolas emounhadas – a posição de prontidão para o tiro; parece que lhes dá uma satisfação, entre tensão e tesão, o peitoral enche tanto que parece que vai explodir.

Muita coisa aconteceu naquela madrugada. Os estudantes fizeram tudo errado para variar: desacatamos, ficamos brincando com os ânimos dos policiais, eles sentiam que a democracia tinha chegado para ficar. As coisas iam mudar, nós achávamos que éramos a mudança e eles sabiam que eles eram "as coisas". Hoje isso tudo virou.

Madrugada adentro o delegado puxou a ficha do Zé. A impressora gritava estridente na sala de luzes fluorescentes, o papel se desenrolou pelo chão, a escrivã e policiais trocavam murmúrios impressionados com a ficha corrida do Zé.  Ficou muito claro. O delegado ameaçou, o Zé devolveu acusando-o de dar voz de prisão para um Deputado – sucedeu-se uma gritaria imensa, mas a voz do Zé se elevava. Dali em diante só cresceu a tensão, levantamo-nos e, surpreendentemente, o Zé com a maior calma do mundo “avisou” o delegado que os estudantes presos iriam fazer uma reunião com ele.

Não me lembro o que foi dito na sala reservada, escura. Lembro-me da sua voz calma, de quem tinha tudo calculado, inclusive o risco de dar tudo errado.

Pela manhã saímos xingando a TV Globo que aguardava lá fora. Acho que o delegado foi afastado.

Poucos meses depois, milhares de estudantes de escolas privadas em passeatas em todo o país derrubaram pela primeira vez um decreto lei, o da "liberdade vigiada". A Paulista encheu de estudantes das escolas particulares. Acho que o Lula deve ter aprendido algo naqueles dias: um estudante trabalhador não é só um filho de trabalhador: ele é o trabalhador. E quem trabalha de dia precisa estudar à noite. Ele não poderia frequentar o ensino público, em geral diurno. Mas a classe trabalhadora estudantil entrava em cena naquele ano e voltaria muitos anos depois, pela política educacional do governo do Partido dos Trabalhadores, que possibilitou o acesso dos jovens trabalhadores  ao ensino privado. "os pais dos jovens querem que ele estude perto de casa" teria dito Lula.

Sempre haverá quem diga sobre os nossos erros e sobre tudo o que poderia ter sido feito e não fizemos. É como que se carregássemos todos nós culpas e mágoas, e se nos veem sorrindo, parece- lhes ofensivo. Mas a esta hora nem me vem à cabeça pedir desculpas por existir,  perdoo fácil defeitos meus e os dos meus, porque eu estava lá. Eu, não você, nem ele. Eu, os meus, e o Zé.

O Zé Dirceu é tido como um dos grandes  arquitetos deste milagre que é o Partido dos Trabalhadores, porque na urbe, o encontro é um milagre. Juntar gente e mudar a história não era para acontecer, não... A história é uma sucessão de desastres silenciosos que soterram coisas boas e as substituem por réplicas, assim temos saudades de tempos bons que nem eram assim tão bons e a vida segue canalha.
Mas estavam errados sobre o Zé. Na verdade, ele é só um sujeito quase comum... não fosse por um detalhe: as pessoas não conseguem pensar por causa do Medo, ele as paralisa e nos faz correr para dentro e protegermos tudo o que nos é caro. Ali, o Medo captura, aterroriza e nos faz reféns... Mas o Zé não tem medo. Os cretinos vão saber disso.

Três bolas de fogo
incendiaram o mar
Acordei e eu não era eu
senti meu olho secando
eu era um pouco Dirceu


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