quinta-feira, 3 de julho de 2025

NÚMERO E MERCADORIA

 O Número como Forma de Sociabilidade

Essa ideia articula com densidade a gênese do conceito de número com a crítica da forma-mercadoria em Marx, situando o número não apenas como uma abstração lógica ou epistemológica, mas como uma forma social de mediação própria do modo de produção capitalista. Desenvolvamos passo a passo.

1. Níveis de Abstração: do Conceito de Ovelha ao Conceito de Número

O conceito de ovelha é um exemplo clássico da abstração conceitual típica da lógica aristotélica: a partir da experiência com múltiplos indivíduos particulares (cada qual com sua cor, tamanho, idade, etc.), elabora-se um conceito genérico que mantém os traços essenciais e elimina os acidentais. Tal conceito ainda se refere a seres particulares concretos, embora de modo generalizado.

Já o conceito de número opera com uma abstração radicalmente mais profunda: ele não se refere a um tipo específico de ser, mas a qualquer coisa — ou mais precisamente, à quantidade indiferenciada de coisas, desprovidas de qualquer qualidade própria. O número é, portanto, uma forma extrema de abstração, pois prescinde de qualquer referência concreta determinada.

2. O Número como Derivado da Forma-Mercadoria

Essa abstração extrema do número não emerge do nada. Ela está profundamente ligada à lógica do capital. A forma-mercadoria, como nos mostra Marx no início de O Capital, é a célula elementar da sociedade burguesa. Ela se constitui quando um objeto, originalmente portador de um valor de uso determinado, torna-se intercambiável com outros objetos por meio do valor de troca.

Essa intercambialidade generalizada exige um denominador comum, uma forma de equivalência entre objetos qualitativamente diferentes. Essa equivalência é o tempo de trabalho humano abstrato cristalizado nas mercadorias. Mas para que essa equivalência funcione socialmente, é preciso quantificá-la. A forma de valor é, pois, a base social da quantificação econômica, e é nesse processo que o número adquire sua função social plena.

Assim, o número não é apenas um instrumento lógico ou técnico: ele emerge e se consolida como expressão da forma social de troca mercantil, da redução de qualidades concretas a magnitudes abstratas comparáveis. O número, nesse sentido, é um produto social da mercantilização da vida.

3. O Número como Forma de Sociabilidade

Se a forma-mercadoria é uma relação social mediada por coisas, então o número — enquanto operador lógico dessa mediação — é também uma forma social. Ele não paira acima das relações sociais; ele é, ao contrário, uma expressão condensada e funcional dessas relações.

Quando dizemos que uma mercadoria vale “10 unidades monetárias”, o que está em jogo não é um número neutro: trata-se de uma forma de expressão do tempo de trabalho socialmente necessário que a sociedade reconhece como critério de equivalência. O número, aqui, mede o tempo abstrato. Portanto, ele não é apenas uma forma simbólica, mas uma forma socialmente operante da própria reprodução capitalista.

Nesse sentido, o número, como a moeda, é um universal real, uma forma de mediação social objetiva, imposta pelas relações de produção.

4. Implicações Filosóficas e Críticas

Essa análise permite ultrapassar tanto o formalismo matemático quanto o empirismo vulgar. O número não é um dado natural nem uma convenção arbitrária: ele é uma forma historicamente determinada de representar e operar a realidade social sob o regime da troca generalizada.

A matematização do mundo moderno — como notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento — não é apenas um avanço técnico, mas a generalização da lógica da equivalência mercantil a todas as esferas da vida, inclusive à subjetividade. A redução do mundo ao número é, portanto, a redução do mundo à forma abstrata da sociabilidade capitalista.

5. Conclusão

O número não é apenas uma abstração lógica que mede coisas: ele mede a sociedade. Ele nasce do processo social pelo qual objetos se tornam comparáveis em termos de valor de troca. A forma-mercadoria, como relação social mediada por equivalência quantitativa, gera e exige o número como seu correlato.

Assim, a diferença entre o conceito de “ovelha” e o conceito de “número” não é apenas uma questão de grau de abstração, mas de natureza social da abstração. Enquanto o primeiro abstrai diferenças dentro de uma espécie concreta, o segundo abstrai a própria materialidade qualitativa das coisas, instaurando um mundo de pura quantidade, indispensável à lógica do capital.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

FINITUDE

 I. Plano Matemático: O intervalo como totalidade paradoxal

Ao tomarmos o intervalo [0,1] no eixo das abscissas do plano cartesiano — ou seja, todos os números reais x tais que 0 ≤ x ≤ 1 — deparamo-nos com um conjunto infinitamente denso: entre qualquer dois pontos desse intervalo, sempre existe um terceiro ponto distinto, e entre esse terceiro e os anteriores, outros infinitos, ad infinitum.

Esse fato não é apenas um efeito colateral do uso de números reais: é uma propriedade estrutural da continuidade, cujo fundamento reside na não-enumerabilidade do conjunto dos reais, conforme demonstrado por Georg Cantor por meio de seu famoso argumento da diagonalização.

Assim, embora os pontos extremos 0 e 1 pareçam delimitar um intervalo finito e bem definido, essa finitude é meramente topológica, não numérica. O número de pontos contidos entre eles é o mesmo que em todo o contínuo real: incontável, não numerável, denso e ininterrupto.

II. Plano Epistemológico: A finitude como convenção mental

A demarcação de um segmento como “de zero a um” corresponde a um ato de delimitação simbólica, um corte arbitrário e utilitário no fluxo contínuo da realidade. Tal como o sistema métrico define o metro como uma fração da velocidade da luz ou da oscilação de um átomo de césio, o intervalo entre 0 e 1 nada mais é do que uma convenção de mensuração.

No entanto, essa convenção não captura a infinitude interna do intervalo. Cada ponto ali contido pode ser identificado por uma sequência infinita de dígitos decimais (como 0.333... ou 0.101101...), o que exige uma estrutura simbólica infinitamente extensível, como os sistemas numéricos posicionais ou binários.

Portanto, a finitude geométrica do intervalo é ilusória: ela esconde a complexidade potencialmente infinita que o habita. Ao tentar "fechar" um intervalo, o sujeito matemático na verdade projeta uma moldura racional sobre um objeto que escapa à finitude cognitiva.

III. Plano Ontológico-Crítico: A quimera da finitude

Do ponto de vista filosófico, o intervalo [0,1] é uma figura simbólica da finitude. Ele representa, na imaginação matemática, algo que pode ser "completamente conhecido", "completamente mensurado", "completamente delimitado". No entanto, esse objeto está saturado de infinitude: ele não possui átomos espaciais, não é composto de "últimos elementos", mas de infinitas divisões sucessivas.

Essa contradição lembra as aporias de Zenão de Eleia, segundo as quais o movimento seria impossível porque exige a travessia de infinitos pontos intermediários. O paradoxo da "finitude infinita" não é resolvido, mas apenas administrado simbolicamente pelas estruturas formais da matemática moderna (análise, topologia, lógica dos conjuntos).

O que emerge, então, é que a finitude — tal como concebida na matemática clássica — não é uma propriedade da realidade, mas uma ficção operacional necessária para que possamos praticar mensuração, cálculo e engenharia. A "finitude" é a domesticação simbólica de um real estruturalmente infinito.

Conclusão

O intervalo de 0 a 1, aparentemente tão limitado, revela-se um abismo lógico, onde a distinção entre finito e infinito se dissolve. Ele é o emblema da tensão entre o racional e o incognoscível, entre o desejo humano de domínio simbólico e a estrutura intrinsecamente aporética do real.

Nesse sentido, a matemática moderna — ainda que finque suas bases na abstração pura — nos conduz de volta a um problema profundamente filosófico: a finitude como mito epistemológico, necessário mas ilusório, sempre à beira de se desfazer no oceano do contínuo.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

CONJECTURA SOBRE OS INFINITOS (em homenagem ao matemático Marcelo Viana)

 Na aritmética moderna, Georg Cantor introduziu uma revolução conceitual ao demonstrar que existem infinitos com diferentes "tamanhos", ou melhor, diferentes cardinalidades. Essa descoberta abalou a matemática clássica e estabeleceu as bases da teoria dos conjuntos. Cantor provou, por exemplo, que o conjunto dos números naturais (ℕ) é infinito, mas que o conjunto dos números reais (ℝ) é um infinito maior — ou seja, o infinito dos reais não pode ser colocado em correspondência biunívoca com o dos naturais. Ele distinguiu entre o infinito enumerável (como o de ℕ) e o infinito não enumerável (como o de ℝ), revelando uma hierarquia dos infinitos com base em suas cardinalidades: ℵ₀ (alef-zero) para os naturais, 2^ℵ₀ para os reais, e assim por diante.


Esse panorama aritmético subverteu a ideia de que "infinito é apenas infinito" e mostrou que a quantidade de elementos de um conjunto infinito pode variar, ainda que ambos os conjuntos sejam infinitos. O infinito, portanto, deixou de ser uma ideia nebulosa e tornou-se passível de formalização e gradação.

Na geometria e na cosmologia contemporânea, encontramos um análogo surpreendente: a ideia de que o universo em expansão também comporta "infinitos de diferentes tamanhos", embora não formalizados da mesma maneira que na aritmética. A partir da Teoria da Relatividade Geral e das observações astronômicas do século XX, tornou-se claro que o universo não é estático, mas está em expansão acelerada, o que sugere que o espaço pode ser infinita ou potencialmente infinita e diversamente "grande" — dependendo do modelo cosmológico adotado.

Nesse contexto, a geometria assume uma dimensão física e dinâmica: o universo pode ser finito mas ilimitado (como na geometria de Riemann), ou realmente infinito, e a própria noção de “tamanho” do espaço varia conforme sua curvatura e expansão. Com a inflação cósmica e o conceito de multiverso, emerge a possibilidade de múltiplos "universos" com infinitas extensões, talvez com métricas distintas — ou seja, infinitos geométricos de naturezas não equivalentes.

Portanto, se Cantor nos revelou os infinitos aritméticos, hierarquizados pelas cardinalidades dos conjuntos, a física contemporânea parece nos propor, ainda que com menos rigor matemático, uma analogia: infinitos geométricos e físicos com extensões e curvaturas não uniformes. A aritmética formaliza a diferença entre os infinitos através da teoria dos conjuntos; a geometria, através da física, nos sugere que o real pode conter infinitudes diversas em termos espaciais e temporais.








Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

terça-feira, 1 de julho de 2025

FRIEDRICH NIETZSCHE

 Infenso a qualquer sistematização do conhecimento, Friedrich Nietzsche pretendia subverter a marteladas toda a metafísica de origem platônica, que por seu turno tem raizes na oposição entre as duas facetas da forma-mercadoria, a saber, entre seu valor de uso e seu valor de trocas, que sustenta a oposição entre corpo e alma.


Foi, assim, precursor dos teoremas da incompletude de Kurt Gödel, por exemplo, um dos maiores golpes contra a razão iluminista, e propôs, com o além do homem e a vontade de potência, uma transvaloração de todos os valores.


Mas Nietzsche era um aristocrata e não percebeu que a metafísica, isto é, a forma-mercadoria é uma relação de produção, uma forma de sociabilidade, cuja superação depende de uma revolução social concreta, e não somente de um projeto filosófico.


Enquanto a questão da produção e reprodução da vida material humana não for resolvida, o projeto filosófico de Nietzsche remanescerá ideal e irrealizável.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

MATEMÁTICA

 O número e a linha reta, enquanto abstrações fundamentais da matemática, não são apenas construções lógicas ou epistemológicas, mas expressões históricas de uma forma social determinada: a forma-mercadoria. Assim como a matemática clássica busca extrair a essência das coisas na abstração quantificável — reduzindo a multiplicidade qualitativa à homogeneidade do número e da linha —, o capital opera de maneira análoga ao transformar objetos concretos, portadores de valor de uso, em valores de troca mensuráveis, convertidos em tempo de trabalho humano abstrato.


A forma-mercadoria, tal como analisada por Karl Marx, dessubstancializa o objeto concreto para convertê-lo em equivalente geral, isto é, em unidade comparável e intercambiável no mercado. Esse processo envolve a supressão da qualidade e a exaltação da quantidade. Nesse mesmo gesto, a matemática, enquanto forma de saber dominante na modernidade capitalista, privilegia representações que reduzam a complexidade da experiência sensível a grandezas mensuráveis: o número puro, a linha reta infinita, o ponto geométrico sem dimensão.

Ambas as operações — a da forma-mercadoria e a da matemática formal — repousam sobre o princípio da abstração: abstração do conteúdo qualitativo, da história, da singularidade. O que importa é a possibilidade de cálculo, de mensuração, de intercâmbio. Nesse sentido, o número e a linha reta podem ser compreendidos como produtos simbólicos do mesmo processo social que transforma o ser humano em força de trabalho abstrata e a riqueza em tempo de trabalho quantificado.

Assim, a crítica da forma-mercadoria, se levada às últimas consequências, deve também incluir uma crítica das formas do saber que com ela compartilham a mesma lógica abstrativa: o saber matemático, em sua pretensão de neutralidade, é cúmplice — ou ao menos efeito — da racionalidade reificante do capital.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

ALBERTO GIACOMETTI

Alberto Giacometti, em suas esculturas esguias e espectrais, reduz o ser humano a um punhado de linhas retas, abstraindo-lhe toda a concretude e densidade material. Essa depuração extrema da forma não visa meramente à economia de meios, mas sim à revelação de uma essência moderna: o sujeito alienado, esvaziado, reduzido à condição de existência abstrata. Nesse sentido, as figuras de Giacometti não representam apenas uma estética do vazio, mas denunciam uma ontologia do capital.

No modo de produção capitalista, o ser humano é subsumido como mera força de trabalho. Ele já não é portador de uma singularidade qualitativa, mas expressão de uma funcionalidade mensurável, calculável, intercambiável. O capital, ao reduzir todas as relações sociais à lógica do valor, transforma a subjetividade humana em mercadoria: seu valor é definido não por sua interioridade, mas pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua reprodução.

Assim como a forma-mercadoria converte os objetos de uso em valor de troca, destituindo-os de seu vínculo direto com necessidades concretas, também o capital converte o ser humano em abstração operante — força de trabalho pura, sem história, sem rosto, sem peso ontológico. As esculturas lineares de Giacometti encarnam precisamente essa abstração reificante: são homens e mulheres transformados em vetores, em traços de tempo e produtividade, em corpos já desprovidos de carne, desejo ou história. São, em última instância, figuras da alienação total.

A obra de Giacometti, nesse sentido, pode ser lida como crítica estética do processo de reificação capitalista. Ao mostrar corpos tão despojados de substância que parecem prestes a desaparecer, o escultor antecipa, na arte, aquilo que o capital realiza na vida: a dessubstancialização do ser humano, sua conversão em cifra, em código, em número. No lugar do homem integral, surge o trabalhador abstrato. No lugar do sujeito histórico, a variável econômica.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

A FORÇA DE TRABALHO COMO MERCADORIA ANTITÉTICA DO CAPITAL

 A força de trabalho é a mercadoria que singulariza o modo de produção capitalista. Diferentemente de todas as demais mercadorias, ela contém em si a capacidade de produzir valor e, portanto, mais-valia. Contudo, essa mesma força de trabalho carrega uma contradição ontológica: ela resiste a ser integralmente produzida segundo as leis da valorização do capital. Ou seja, sua gênese escapa, em grande parte, à lógica da produção de mais-valia e de lucro.

Nesse diapasão, a força de trabalho é inicialmente forjada no seio da família, através do trabalho doméstico não remunerado, sobretudo exercido por mulheres. Essa etapa corresponde à formação da força de trabalho manual, voltada para tarefas físicas e operacionais, em um processo totalmente à margem da produção capitalista direta. Não há, aqui, extração de mais-valia, pois não há relação contratual de compra e venda de força de trabalho.

Num segundo momento histórico e funcional, a formação da força de trabalho desloca-se para a esfera estatal, mais especificamente para o interior da escola pública. Aqui se dá a produção da força de trabalho intelectual, requerida pelo capitalismo avançado para operar as máquinas, os sistemas informacionais e os processos complexos de gestão. Mesmo nesse contexto, a produção dessa força de trabalho se dá à margem da geração de lucro e da valorização direta do capital. Trata-se de uma produção social subsidiada, que compõe as condições gerais de reprodução do capital, mas que não se conforma inteiramente à lógica da mercadoria.

Assim, a força de trabalho é, ao mesmo tempo, o pilar e o limite do modo capitalista de produção: é a mercadoria geradora de valor por excelência, mas sua própria produção repousa em esferas não diretamente capitalistas. Essa antinomia estrutural revela que o capital depende de formas sociais e institucionais que não controla completamente, mesmo enquanto as submete funcionalmente à sua reprodução ampliada.







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.