O Número como Forma de Sociabilidade
Essa ideia articula com densidade a gênese do conceito de número com a crítica da forma-mercadoria em Marx, situando o número não apenas como uma abstração lógica ou epistemológica, mas como uma forma social de mediação própria do modo de produção capitalista. Desenvolvamos passo a passo.
1. Níveis de Abstração: do Conceito de Ovelha ao Conceito de Número
O conceito de ovelha é um exemplo clássico da abstração conceitual típica da lógica aristotélica: a partir da experiência com múltiplos indivíduos particulares (cada qual com sua cor, tamanho, idade, etc.), elabora-se um conceito genérico que mantém os traços essenciais e elimina os acidentais. Tal conceito ainda se refere a seres particulares concretos, embora de modo generalizado.
Já o conceito de número opera com uma abstração radicalmente mais profunda: ele não se refere a um tipo específico de ser, mas a qualquer coisa — ou mais precisamente, à quantidade indiferenciada de coisas, desprovidas de qualquer qualidade própria. O número é, portanto, uma forma extrema de abstração, pois prescinde de qualquer referência concreta determinada.
2. O Número como Derivado da Forma-Mercadoria
Essa abstração extrema do número não emerge do nada. Ela está profundamente ligada à lógica do capital. A forma-mercadoria, como nos mostra Marx no início de O Capital, é a célula elementar da sociedade burguesa. Ela se constitui quando um objeto, originalmente portador de um valor de uso determinado, torna-se intercambiável com outros objetos por meio do valor de troca.
Essa intercambialidade generalizada exige um denominador comum, uma forma de equivalência entre objetos qualitativamente diferentes. Essa equivalência é o tempo de trabalho humano abstrato cristalizado nas mercadorias. Mas para que essa equivalência funcione socialmente, é preciso quantificá-la. A forma de valor é, pois, a base social da quantificação econômica, e é nesse processo que o número adquire sua função social plena.
Assim, o número não é apenas um instrumento lógico ou técnico: ele emerge e se consolida como expressão da forma social de troca mercantil, da redução de qualidades concretas a magnitudes abstratas comparáveis. O número, nesse sentido, é um produto social da mercantilização da vida.
3. O Número como Forma de Sociabilidade
Se a forma-mercadoria é uma relação social mediada por coisas, então o número — enquanto operador lógico dessa mediação — é também uma forma social. Ele não paira acima das relações sociais; ele é, ao contrário, uma expressão condensada e funcional dessas relações.
Quando dizemos que uma mercadoria vale “10 unidades monetárias”, o que está em jogo não é um número neutro: trata-se de uma forma de expressão do tempo de trabalho socialmente necessário que a sociedade reconhece como critério de equivalência. O número, aqui, mede o tempo abstrato. Portanto, ele não é apenas uma forma simbólica, mas uma forma socialmente operante da própria reprodução capitalista.
Nesse sentido, o número, como a moeda, é um universal real, uma forma de mediação social objetiva, imposta pelas relações de produção.
4. Implicações Filosóficas e Críticas
Essa análise permite ultrapassar tanto o formalismo matemático quanto o empirismo vulgar. O número não é um dado natural nem uma convenção arbitrária: ele é uma forma historicamente determinada de representar e operar a realidade social sob o regime da troca generalizada.
A matematização do mundo moderno — como notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento — não é apenas um avanço técnico, mas a generalização da lógica da equivalência mercantil a todas as esferas da vida, inclusive à subjetividade. A redução do mundo ao número é, portanto, a redução do mundo à forma abstrata da sociabilidade capitalista.
5. Conclusão
O número não é apenas uma abstração lógica que mede coisas: ele mede a sociedade. Ele nasce do processo social pelo qual objetos se tornam comparáveis em termos de valor de troca. A forma-mercadoria, como relação social mediada por equivalência quantitativa, gera e exige o número como seu correlato.
Assim, a diferença entre o conceito de “ovelha” e o conceito de “número” não é apenas uma questão de grau de abstração, mas de natureza social da abstração. Enquanto o primeiro abstrai diferenças dentro de uma espécie concreta, o segundo abstrai a própria materialidade qualitativa das coisas, instaurando um mundo de pura quantidade, indispensável à lógica do capital.
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.