domingo, 3 de agosto de 2025

DANÇA E MÚSICA (para Márcia Claus e Maria Reisewitz)

 A música, dentre todas as artes, talvez seja a que mais intensamente se manifesta no registro da abstração sensível. Ela não precisa da imagem, da representação plástica, da narrativa figurativa ou da materialidade da forma palpável. Pode ser integralmente fruída de olhos fechados — o que a distingue do cinema, da escultura, da pintura e mesmo do teatro. Sua presença, etérea e incorpórea, atravessa o corpo e afeta o espírito sem se fixar em uma representação visível. Neste sentido, a música é o mais próximo que a arte pode chegar da matemática, pois ambas operam com proporções, ritmos, simetrias e estruturas formais regidas por leis internas.


Não por acaso, Leibniz afirmava que “escutar música é fazer matemática sem se dar conta”. A escuta musical seria, assim, uma contagem inconsciente — uma operação rítmica na qual o tempo se organiza em intervalos e a mente, mesmo sem o auxílio da razão discursiva, decifra padrões, repetições, desenvolvimentos temáticos e modulações. A música se torna, então, a matemática tornada sensível, uma forma abstrata de experimentar o tempo ordenado.

Entretanto, a música não paira sozinha no ar da abstração. Desde os tempos primordiais, ela se enlaça à dança, isto é, à corporificação do som no movimento humano. A dança converte o ritmo em gesto, o tempo em espaço, a métrica em deslocamento físico. Com ela, a música deixa de ser apenas experiência auditiva para tornar-se também experiência cinestésica — ela ganha corpo, e o corpo, por sua vez, ganha consciência rítmica.

Nessa junção, revela-se algo mais profundo: a superação da cisão entre mente e corpo, ou melhor, entre abstração e concretude, na acepção marxiana da crítica à separação entre pensamento e prática. A dança ao som da música representa a sublimação dialética da abstração sonora, pois reconcilia o pensamento (a música como ordem invisível) com a prática corporal (a dança como ação sensível e situada no espaço).

Mas a dança, diferentemente do deslocamento cotidiano do corpo humano — que é caótico, fragmentário, muitas vezes alienado — não é aleatória. Ela é organizada por uma coreografia, ou seja, por um plano. A coreografia é uma planificação do movimento corporal realizada de forma consciente, coletiva ou individualmente, com objetivo estético e simbólico. Cada passo, cada deslocamento, cada pausa se inscreve numa totalidade coordenada. Trata-se, pois, de uma ordem pensada, mas não imposta por um centro autoritário: ela pode emergir de ensaios, improvisações, acordos tácitos — uma planificação descentralizada do corpo no tempo e no espaço, guiada pelo som.

E é aí que a metáfora adquire sua força revolucionária. Pois o que divisamos na dança musical não é apenas uma arte, mas uma imagem antecipatória do modo de produção comunista, em sua forma mais nobre: a da planificação descentralizada da vida. A coreografia dançada ao som da música representa, nesse sentido, uma utopia concreta: ela nos mostra como é possível coordenar movimentos individuais dentro de uma totalidade sem recorrer à coerção hierárquica, sem que haja conflito entre autonomia e harmonia.

Ao contrário do capital, que unifica abstratamente os indivíduos pela coação do valor e pela mediação cega do mercado, a dança coletiva concilia a liberdade e a ordem por meio de um acordo rítmico e sensível, onde cada um age por si, mas em consonância com os outros. É o retrato artístico daquilo que Marx chamou de reino da liberdade: uma sociedade onde a produção deixa de ser comandada pelo valor abstrato e passa a ser conscientemente organizada em função das necessidades humanas.

Portanto, ao olharmos para um corpo que dança ao som da música, vemos mais do que uma expressão estética. Vemos uma alegoria material da emancipação humana. A música — abstração sensível; a dança — corporificação rítmica; a coreografia — planificação horizontal; o conjunto — uma pré-figuração da sociedade comunista.

Nesse novo modo de produção, a humanidade deixará de ser uma abstração estatística, jurídica ou ideológica, e passará a se realizar enquanto totalidade concreta, viva, sensível, integrada. O movimento coreografado do corpo dançante é, por isso, a imagem prefigurada de um mundo reconciliado, onde a divisão entre trabalho manual e intelectual, entre indivíduo e coletividade, entre necessidade e liberdade, é finalmente superada.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

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