quinta-feira, 12 de setembro de 2024

MEMÓRIAS

 O COLÓQUIO DAS PEDRAS


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador e advogado)


Acredito piamente que poucas crianças tiveram, como eu tive, o exuberante privilégio de conviver com um amoroso e longevo avô versado nas artes do ilusionismo mágico e da ventriloquia, mas tal universo é decerto ainda mais restrito se o ascendente nasceu em um logradouro completamente envolto em histórias místicas e assombradas como a região das cidades barrocas do sul de Minas Gerais.


Eu ostentava já meus sete ou oito anos de idade quando, nas férias, fui conduzido por meus pais a visitar pela primeira vez essa região encantada do Brasil, e não poderia ter antes imaginado que tal experiência lograria escavar sulcos indelevelmente profundos na tábua rasa da minha então incipiente personalidade.


Elegeu-se como parada inicial da viagem, naturalmente, a cidade de São João del-Rei, berço de meu avô, onde ficamos hospedados por dois ou três dias na casa de sua vetusta prima de alcunha Sinhana, uma senhora robusta e de temperamento marcante que lutara com seu falecido marido nas campanhas da Revolução de 1932, sendo interessante notar que a modesta mas bem cuidada residência situava-se significativamente defronte uma praça onde repousava orgulhosa uma belíssima peça de artilharia antiga esculpida em metal já então oxidado. O problema axial consistia, entretanto, no fato de que aquela anciã de gestos largos e impetuosos metia-me um medo incontornável, parecendo-me verossímil que ela pudesse, em sua epidérmica loucura, golpear-nos sorrateiramente durante o sono noturno com a velha espingarda que mantinha guardada em casa, de tal sorte que as noites passadas naquela assustadoramente provecta cidade foram para mim de vigília e insônia.


Nada obstante, os passeios diurnos que empreendemos durante tal estada em São João del-Rei mostraram-se bastante animados e, diria mesmo, de uma inolvidável magia, máxime nas visitas aos antigos amigos de infância de meu avô, que nos acompanhava nessa viagem e desempenhava o importante papel de anfitrião e cicerone.


De proêmio, visitamos o solar dos Viegas, uma mansão em estilo arquitetônico colonial e de chão feito de longuíssimas tábuas de madeira que rangiam solenemente sob a pressão de nossos passos, cujo antigo dono e patriarca da família, José Viegas, inventara e patenteara um tinteiro que evitava o derramamento de seu conteúdo mesmo quando mantido aberto de cabeça para baixo. Sua quase centenária esposa, dona Celina Viegas, que fora professora de meu avô no primário e já não podia valer-se muito dos sentidos da audição e da visão, vencia airosamente a cegueira com os dedos finos por meio dos quais tateava e tramava magníficas e opulentas colchas de crochet.


Depois visitamos o senhor Guerra, que mantinha com galhardia o único cinema da cidade, bem como o senhor Lauro Novais, morador do pioneiro prédio com elevador do lugar e cujo misterioso e recluso filho não aparecia para ninguém que chegasse em sua casa.


Por derradeiro, fomos reconhecer, no passeio mais emocionante, o teatro municipal de São João del-Rei, onde outrora minha mãe, quando ainda criança, desincumbira-se como bailarina de personagem característico da obra “O quebra-nozes” de Tchaikovsky. Ela contou-nos que o frio na ocasião era intenso e a roupa muito apertada, o que não a impediu, porém, de desenvolver com majestade uma coreografia em que botões de rosa desabrochavam ao suave toque da vara de condão por ela manejada. A fotografia desse evento, com minha mãe posando com roupa e sapatilhas de balé, é desses ícones constitutivos do imaginário perene de uma pessoa.


Mas embrenhamo-nos também nas variegadas igrejas do período colonial, componentes do cenário de arraigado catolicismo que caracteriza a cidade e seu povo, quando então tive a oportunidade de travar contato inicial com o nome de Antônio Francisco da Costa Lisboa, vulgo Aleijadinho, sem embargo o mais notável artista do barroco mineiro e quiçá mundial, cujo templo dedicado a São Francisco de Assis, máxime o retábulo de sua capela-mor, com seus detalhes retorcidos banhados em ouro, exibe a aptidão francamente sobrenatural de conduzir-nos diretamente ao céu. Foi aí que eu privei com Deus por vez primeira, foi então que eu conheci e provei os consectários do poder inebriante da religião católica, tão exaltados naquela obra-prima da arte tipicamente barroca, cujo caráter foi rigorosamente escrutinado pelo filósofo Gilles Deleuze ao investigar o pensamento de Leibniz no inspirado livro intitulado “A dobra”.


Essa comoção sobrenatural ínsita ao barroco mineiro eu experimentei novamente durante a procissão pelos grandes portais representativos dos passos da Paixão de Cristo, característica das festividades que inescapavelmente acompanham a Semana Santa em São João del-Rei, sendo certo suscitar que, para uma criança de sete anos de idade, tal turbilhão emocional faz impregnar durante muito tempo, senão permanentemente, a religião no mais recôndito e inexpugnável canto de seu átrio esquerdo.


E eu retornei ao céu alguns dias mais tarde, diante dos doze profetas bíblicos, em pedra-sabão, esculpidos pelo mesmo Aleijadinho para compor o proscênio do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos na cidade de Congonhas do Campo, distante alguns quilômetros de São João.


Tão vívida e impressionante foi a experiência de conhecer esse Santuário e suas estátuas fulgurantes que, quando retornamos à noite para o hotel de Congonhas onde fincamos hospedagem, eu fui inexoravelmente compelido a desenhar de memória a assombrosa figura do profeta Daniel afagando o nefasto leão em seu entorno. Tinha sido demasiada aquela visita, comovera-me até às lágrimas, pois eu não imaginava que se pudesse conceber e extrair tamanha beleza de pedra bruta. Eu desenhei o profeta Daniel segundo Aleijadinho porque qualquer tentativa de verbalizar a emoção seria ociosamente malograda, e em dado momento dei-me conta de que especulava de forma solitária e em silêncio se Deus poderia conferir vida àquela escultura, dotando-a de alma e fala.


Eu pensei com minha lógica pueril que, se meu avô, mero mortal, podia de certo modo atribuir vida a seus bonecos de madeira pela ventriloquia, concedendo-lhes movimento e fala, então o onipotente Deus seria capaz de fazer viverem as esculturas de pedra-sabão, que é material mais duro, e portanto mais impermeável à penetração da alma do que a madeira. Seria uma mera questão de fazer soprar o Verbo Divino naquelas estátuas.


Muito mais tarde, quando meu avô, aos noventa e quatro anos de idade, despediu-se deste mundo, eu fui contemplado com seu legado mais interessante, consistente em dois bonecos de madeira para ventriloquia e um desconhecido livro antigo.


Os bonecos eram meus velhos conhecidos, os quais tinham, em suas longas carreiras de encantamento de milhares de crianças, logrado sucesso retumbante, mas já estavam aposentados há algum tempo, conquanto em perfeito estado de conservação. O primeiro deles respondia pelo apelido de Peleco, e mimetizava um moleque afrodescendente de olhos esbugalhados e beiços proeminentes, enquanto o outro, de nome Nicolau, correspondia a uma cabeça perolizada de um velho de barbas brancas confinada em uma caixa preta quadrangular que abria e fechava na parte frontal. No meu sentir, cuidava-se de dois personagens comicamente míticos, o que pode lançar uma pequena ideia do regozijo que foi recebê-los como herança de um avô igualmente mitológico, conquanto de carne e osso.


A derradeira parte do legado veio-me na forma de um misterioso e velho livro editado ainda no século dezenove, em bom estado e de capa dura feita de couro, em cujo frontispício lia-se, em letras douradas, o instigante título “Breve relato dos colóquios entre o Aleijadinho das Minas Gerais e seus doze profetas de pedra-sabão”.


Estarrecido e atordoado na primeira vez que tive essa obra em minhas mãos, pus-me a compulsar seu conteúdo incontinenti, o qual versava sobre as conversas que, supostamente, o grande e deformado artista barroco mineiro mantinha com seus doze videntes de pedra durante as noites de lua cheia. Para meu espanto e surpresa, o colóquio inaugural do livro, de autoria desconhecida, era precisamente com a escultura do profeta Daniel.


“O rei babilônico Nabucodonosor sonhou com uma estátua e com uma árvore, e eu revelei-lhe os significados de tais visões, mas para você os significados são diversos”, disse o profeta Daniel feito de pedra, ao dirigir-se ao seu criador.


“Conte-me tudo, por favor ”, pediu Aleijadinho.


“A estátua de que lhe falei era resplandecente e feita de ouro, prata, bronze e ferro, mas os pés eram feios de uma mistura de barro e ferro. Uma pedra soltou-se espontaneamente da montanha e caiu sobre os pés da estátua, reduzindo-a a pó”, falou Daniel.


“Mas o que isso significa?”, indagou Aleijadinho.


“Você fez-me uma estátua de pedra, a mesma pedra que destruiu a estátua de pés de barro do rei babilônico, então o arrasador confunde-se com o arrasado, mas como eu sou feito de pedra, nada poderá destruir-me. No entanto, a pedra do sonho de Nabucodonosor transformou-se numa grande montanha, então eu voltarei um dia a ser parte das montanhas mineiras”, explicou Daniel.


“E a árvore?”, perguntou o artista.


“O anjo-vigia derrubou a imensa e frondosa árvore, cortou seus galhos, tirou as folhas e jogou fora as frutas, espantando os animais que estavam descansando na sua sombra e as aves que estavam nos seus galhos, sendo certo que o toco e as raízes remanescentes viraram um homem. Você é esse anjo-vigia que mata a árvore e com ela faz santos e messias inanimados”.


Anos mais tarde, fui revisitar Congonhas do Campo colimando falar com a estátua do profeta Daniel.


“Converse comigo, por favor”, exorei ao Daniel de pedra-sabão, numa noite fresca de lua cheia.


Mas ele jamais respondeu-me.


(dedico este conto à memória de meu avô Alcides Franco da Silva)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Caio Prado e Gilberto Freyre

 Já tive a oportunidade de obtemperar que a dicotomia platônica entre corpo e alma está arraigada na dupla faceta da mercadoria como valor de uso e valor de troca, que se desdobra historicamente na divisão do trabalho entre produção e circulação de mercadorias, ou entre produção e dinheiro, que por sua vez se fratura entre trabalho manual e trabalho intelectual.


Pois bem, Caio Prado Júnior debruçou-se sobre a circulação de mercadorias no dinheiro, descortinando pioneiramente aquilo que Fernando Novais denominará “antigo sistema colonial”, ao passo que Gilberto Freyre estudou o universo do trabalho, isto é, o primeiro investigou as relações de produção, enquanto o outro estudou as relações interpessoais.


A superioridade da abordagem de Caio Prado decorre simplesmente do fato de que o dinheiro domina o setor produtivo, de tal sorte que a circulação de mercadorias sobrepunha-se à produção de mercadorias na época colonial no Brasil.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 8 de setembro de 2024

A URDIDURA DO TAPETE

 Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira

 

Para Marcia, com amor, sempre.

 

“É doce morrer no mar

Nas ondas verdes do mar”

(Dorival Caymmi e Jorge Amado)

 

 

 

 

 

Envolto e embriagado pela tão lancinante quanto singela poesia da canção em epígrafe, o circunspecto B, com suas sobrancelhas já grisalhas por mais de meio século de uma existência parcialmente estigmatizada pelas afecções da alma, encetou a obtemperar acerca da extinção por asfixia, e o curso de suas elucubrações foi então arrebatado pela reminiscência de sua tenra infância nos idos da década de 1970, quando ainda padecia, lamentavelmente, de graves episódios de asma cuja etiologia alérgica associava-se, decerto, aos cuidados extremos de uma maternidade marcada pelo amor incondicional, parecendo lícito ventilar que esta hipótese diagnóstica, todavia, exibe-se carecedora de evidência irrefutável, porquanto consistente em mera conjectura leiga consoante a qual o sistema imunológico pode descompensar pela ausência de exposição mínima a agentes patológicos nos momentos iniciais da história individual, de tal sorte que, malgrado a inspiração do exímio poeta já aludido, a suposta doçura do óbito por insuficiência respiratória parece existir somente como oxímoro e metáfora, pois a sensação de falta de oxigênio, seja no mar ou em terra firme, como experimentara B em diversas ocasiões maculadas pela crise asmática, não guarda rigorosamente nada de edificante, mas, ao invés, ostenta tamanha intimidade com a dor e a agonia que a expressão literária sofreria para descrevê-la de maneira conveniente.

No entanto, como atinava B, o sofrimento provocado pela asfixia asmática podia ser cotejado, em intensidade, com outra espécie de pathos que, circunscrito, todavia, ao âmbito do pensamento, parecia-lhe tão agonizante quanto a falta de ar, a saber, o temor de respirar, de sorver pelos pulmões o oxigênio tão abundante no ambiente quanto imprescindível à manutenção da existência, e, nesse particular, B recordava-se enfática e pormenorizadamente do terror que lhe inspirara o surto de meningite que assolou sua cidade natal nessa mesma década de 1970, cabendo assinalar que tal fobia por microrganismos suspensos na atmosfera derivava com efeito dos relatos que lhe chegavam, diariamente, acerca de um parente não muito distante acometido por esta infecção da meninge e cuja higidez tinha sido severamente comprometida por tais entidades devoradoras de cérebro, algo tão assustador que determinava um pânico bem estruturado na imaginação do nosso protagonista.

Mas nem só de asma e hipocondria nutria-se a infância de B, pelo contrário, eis que, sob perspectiva hodierna, tal fase de sua vida apresentou-se de uma riqueza lúdica sem paralelo com a época corrente, em que os infantes consomem seu élan vital na solidão dos jogos eletrônicos diante de aparelhos celulares e computadores pessoais, enquanto B e seus amigos de bairro, entre os anos 1970 e 1980 da era cristã, divertiam-se coletivamente nas ruas da vizinhança mediante jogos e brincadeiras ao ar livre que, em grande medida, estiolaram-se ou simplesmente já não mais existem, tais como corridas de carrinho de rolimã, jogo de taco, futebol de botão, futebol no meio da rua, voleibol idem, pega-pega, esconde-esconde, bolinhas de gude, pipas, ping-pong na mesa de jantar, corridas de bicicleta, desenvolturas em cima de skate, jogo de “stop”, bandas de rock de garagem, e muitas outras formas de diversão, entretenimento, esporte e socialização atualmente impraticáveis, sendo relevante registrar que a casa de alguns desses coleguinhas de infância convolara-se em verdadeiro playground para a criançada dessas paragens, graças à generosidade da respectiva família que concedia sabiamente mais valor à boa desinibição dos jovens do que à arrumação da residência, a qual contava inclusive com um sótão de aura mágica e mística onde se instalava uma farta biblioteca e onde a moçada amiúde celebrava reuniões sigilosas do clubinho secreto das adjacências.

Nada obstante, foi precisamente nessa biblioteca de sótão, quando ainda criança, que B sofreu seu primeiro surto psicótico ao deparar-se involuntariamente com uma figura antropomórfica do diabo que ilustrava uma bíblia sagrada católica, surto esse que deflagrou nova onda fóbica agora direcionada para a possessão demoníaca, um pavor inafastavelmente duradouro de ter a própria mente dominada por alguma forma de entidade maligna apta a conduzir sua alma até as sombras do inferno.

Anotou-se, desde então, o decurso de vinte longos anos de relativa calmaria até que um episódio maníaco de intensidade mais severa perturbasse a já sinuosa trajetória de vida da solene figura de B, e desta feita o estado crítico exsurgiu em roupagens gravemente paranoicas que denotavam certo narcisismo endógeno da sua quase inescrutável personalidade, o que o conduziu finalmente a procurar auxílio psiquiátrico mais incisivo, de que resultou a prescrição médica de determinado fármaco psicotrópico muito adotado, mas que acabou por provocar-lhe efeitos colaterais de considerável importância, mais especificamente conhecidos  pela locução “acatisia”, a saber, um transtorno caracterizado por inquietação psíquica e motora que produz no paciente movimentos incontroláveis, tais como deambulação sincopada e roboticamente estilizada, um desconforto orgânico muito intenso acompanhado por turbilhão inexorável de pensamentos desconexos, praticamente insuportável, o qual culminou na internação parcial de B em nosocômio apropriado para enfermos dos nervos.

Ele não tinha como saber, mas esta internação quase compulsória em manicômio não judiciário revelar-se-ia um divisor de águas em sua caminhada por este mundo tão estranho quanto fascinante.

De fato, após passar pela necessária triagem inaugural da internação no estabelecimento médico, B foi recepcionado acolhedora e efusivamente, perto da porta de entrada, por uma moça mui cordial, também paciente do internato, cujo olhar de azul talássico, malgrado a fugacidade desse encontro furtivo, instalar-se-ia para sempre no mais recôndito âmago de seu átrio esquerdo, um verdadeiro vislumbre do paraíso em plena face da Terra por este mesmo B que, na ocasião, mal conseguia desvencilhar-se de uma tormenta infernal, que não se encontrava hábil para emergir das águas profundas da insanidade, ou, mais especificamente falando, que estava próximo de fenecer por asfixia nas verdes ondas do mar revolto da loucura.

Tal recepção carinhosa, que lhe abriu as portas do manicômio, consistia decerto em traço sintomático do peculiar microcosmo que aquele logradouro encerrava, pois B lá deparou-se, muito provavelmente, com algumas das idiossincrasias mais humanas e interessantes de toda a sua história até o momento, o que lhe forneceu a convicção consoante a qual a humanidade demasiada, talvez, indicasse o pecadilho primordial de toda aquela gente perturbada, composta, verbi gratia, por um rapaz atormentado por certo espírito de velho africano que discorria por seu intermédio, com voz alterada de barítono, sobre temas ancestrais do respectivo continente; por uma senhora que imergira na depressão profunda logo após ter sido milagrosamente curada de certa cegueira supostamente irreversível; por uma moça que não conseguia desvencilhar-se do uso obsessivamente ininterrupto dos óculos de sol; por um senhor que não parava de deambular compulsivamente por ser perseguido por outro espírito maligno; por uma rapariga que exibia tremores incontroláveis de etiologia desconhecida; por um jovem artista plástico, intelectualmente brilhante, cuja nêmesis derivara da experiência da morte de uma colega de profissão em seus braços; por outro jovem que fugia todos os dias do manicômio, pulando através dos seus muros; por um esquizofrênico severo que mal se comunicava e fumava de forma exacerbada, mas que por vezes discorria com muita propriedade sobre temas religiosos; enfim, uma miríade de figuras e distúrbios das mais variegadas gravidades e naturezas.

Tal amálgama humano reunia-se invariavelmente em determinados dias da semana para participar daquilo que se denominava “roda de contos”, em que umas das psicólogas do internato, exímia profissional, narrava uma história, de ficção ou não, e depois permitia a intervenção e comentários dos pacientes, um momento catártico em que se divisava a riqueza das experiências singulares, e foi provavelmente em uma dessas sessões que B conseguiu atrair, não por seus eventuais dotes físicos, mas pelo seu cultivado intelecto, a atenção mais acurada da moça de olhos azuis, que chamarei de C, pois formulara um comentário deveras prestigiado, combinando as dialéticas de Platão e Hegel, acerca de um conto sobre o cavalo de Troia, o que despertou em C certa curiosidade que a fez remover os óculos e lançar seu olhar inebriante em direção a B, que acenou de volta, estupefato.

Outro momento catártico no nosocômio consistia nas sessões de terapia ocupacional, teoricamente lastreadas nas investigações da festejada psiquiatra brasileira Nise da Silveira, onde B, cujo acalentado intelecto acabara por desprover-lhe de qualquer traço de habilidade manual, logrou milagrosamente urdir com disciplina e perfeição um pequeno tapete de lãs entrelaçadas e coloridas, uma singela obra-prima para quem jamais esperava ser incentivado a fazer algo materialmente complexo daquele jeito, enfim, uma conquista, em seu entender, de inefável contentamento, cabendo destacar que, em uma dessas sessões, C confessou-lhe que não tinha companhia para comparecer a uma festa que aconteceria no final de semana seguinte, confissão esta que B redarguiu incontinenti, colocando-se de total prontidão para acompanhá-la em dito evento, mas a proposta de B foi prontamente afastada por C, que sugeriu que ele viesse a ser apresentado à irmã filósofa de C.

Desapontado, B obteve permissão da diretoria do hospital para permanecer em casa por uma semana, eis que se cuidava de internato apenas parcial, em que os internos chegavam de manhã bem cedo e partiam no final da tarde.

Mas quando retornou ao nosocômio, o estado de ânimo de B foi liminarmente recuperado por uma grata surpresa, eis que já era época natalina e ele sorteou para presentear como amiga secreta, nas celebrações de fim de ano naquela instituição psiquiátrica, ninguém menos que sua admirada C e, então, ele quedou convicto de que o universo estava a conspirar a seu favor, de que a maré, finalmente, lhe era francamente favorável.

E qual não foi seu embevecimento quando pode apreciar uma apresentação, por C, de dança do ventre durante aquelas festividades de final de ano no manicômio, um espetáculo revelador da poderosíssima magia sedutora daquela mulher extraordinária, o que lhe provocou um êxtase sem precedentes e arrebatou-lhe definitivamente o coração.

Por derradeiro, B deu a C, como regalo de amigo secreto, o tapete que urdira com tanto carinho nas sessões de terapia ocupacional.

Eles estão juntos até hoje.