domingo, 8 de setembro de 2024

A URDIDURA DO TAPETE

 Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira

 

Para Marcia, com amor, sempre.

 

“É doce morrer no mar

Nas ondas verdes do mar”

(Dorival Caymmi e Jorge Amado)

 

 

 

 

 

Envolto e embriagado pela tão lancinante quanto singela poesia da canção em epígrafe, o circunspecto B, com suas sobrancelhas já grisalhas por mais de meio século de uma existência parcialmente estigmatizada pelas afecções da alma, encetou a obtemperar acerca da extinção por asfixia, e o curso de suas elucubrações foi então arrebatado pela reminiscência de sua tenra infância nos idos da década de 1970, quando ainda padecia, lamentavelmente, de graves episódios de asma cuja etiologia alérgica associava-se, decerto, aos cuidados extremos de uma maternidade marcada pelo amor incondicional, parecendo lícito ventilar que esta hipótese diagnóstica, todavia, exibe-se carecedora de evidência irrefutável, porquanto consistente em mera conjectura leiga consoante a qual o sistema imunológico pode descompensar pela ausência de exposição mínima a agentes patológicos nos momentos iniciais da história individual, de tal sorte que, malgrado a inspiração do exímio poeta já aludido, a suposta doçura do óbito por insuficiência respiratória parece existir somente como oxímoro e metáfora, pois a sensação de falta de oxigênio, seja no mar ou em terra firme, como experimentara B em diversas ocasiões maculadas pela crise asmática, não guarda rigorosamente nada de edificante, mas, ao invés, ostenta tamanha intimidade com a dor e a agonia que a expressão literária sofreria para descrevê-la de maneira conveniente.

No entanto, como atinava B, o sofrimento provocado pela asfixia asmática podia ser cotejado, em intensidade, com outra espécie de pathos que, circunscrito, todavia, ao âmbito do pensamento, parecia-lhe tão agonizante quanto a falta de ar, a saber, o temor de respirar, de sorver pelos pulmões o oxigênio tão abundante no ambiente quanto imprescindível à manutenção da existência, e, nesse particular, B recordava-se enfática e pormenorizadamente do terror que lhe inspirara o surto de meningite que assolou sua cidade natal nessa mesma década de 1970, cabendo assinalar que tal fobia por microrganismos suspensos na atmosfera derivava com efeito dos relatos que lhe chegavam, diariamente, acerca de um parente não muito distante acometido por esta infecção da meninge e cuja higidez tinha sido severamente comprometida por tais entidades devoradoras de cérebro, algo tão assustador que determinava um pânico bem estruturado na imaginação do nosso protagonista.

Mas nem só de asma e hipocondria nutria-se a infância de B, pelo contrário, eis que, sob perspectiva hodierna, tal fase de sua vida apresentou-se de uma riqueza lúdica sem paralelo com a época corrente, em que os infantes consomem seu élan vital na solidão dos jogos eletrônicos diante de aparelhos celulares e computadores pessoais, enquanto B e seus amigos de bairro, entre os anos 1970 e 1980 da era cristã, divertiam-se coletivamente nas ruas da vizinhança mediante jogos e brincadeiras ao ar livre que, em grande medida, estiolaram-se ou simplesmente já não mais existem, tais como corridas de carrinho de rolimã, jogo de taco, futebol de botão, futebol no meio da rua, voleibol idem, pega-pega, esconde-esconde, bolinhas de gude, pipas, ping-pong na mesa de jantar, corridas de bicicleta, desenvolturas em cima de skate, jogo de “stop”, bandas de rock de garagem, e muitas outras formas de diversão, entretenimento, esporte e socialização atualmente impraticáveis, sendo relevante registrar que a casa de alguns desses coleguinhas de infância convolara-se em verdadeiro playground para a criançada dessas paragens, graças à generosidade da respectiva família que concedia sabiamente mais valor à boa desinibição dos jovens do que à arrumação da residência, a qual contava inclusive com um sótão de aura mágica e mística onde se instalava uma farta biblioteca e onde a moçada amiúde celebrava reuniões sigilosas do clubinho secreto das adjacências.

Nada obstante, foi precisamente nessa biblioteca de sótão, quando ainda criança, que B sofreu seu primeiro surto psicótico ao deparar-se involuntariamente com uma figura antropomórfica do diabo que ilustrava uma bíblia sagrada católica, surto esse que deflagrou nova onda fóbica agora direcionada para a possessão demoníaca, um pavor inafastavelmente duradouro de ter a própria mente dominada por alguma forma de entidade maligna apta a conduzir sua alma até as sombras do inferno.

Anotou-se, desde então, o decurso de vinte longos anos de relativa calmaria até que um episódio maníaco de intensidade mais severa perturbasse a já sinuosa trajetória de vida da solene figura de B, e desta feita o estado crítico exsurgiu em roupagens gravemente paranoicas que denotavam certo narcisismo endógeno da sua quase inescrutável personalidade, o que o conduziu finalmente a procurar auxílio psiquiátrico mais incisivo, de que resultou a prescrição médica de determinado fármaco psicotrópico muito adotado, mas que acabou por provocar-lhe efeitos colaterais de considerável importância, mais especificamente conhecidos  pela locução “acatisia”, a saber, um transtorno caracterizado por inquietação psíquica e motora que produz no paciente movimentos incontroláveis, tais como deambulação sincopada e roboticamente estilizada, um desconforto orgânico muito intenso acompanhado por turbilhão inexorável de pensamentos desconexos, praticamente insuportável, o qual culminou na internação parcial de B em nosocômio apropriado para enfermos dos nervos.

Ele não tinha como saber, mas esta internação quase compulsória em manicômio não judiciário revelar-se-ia um divisor de águas em sua caminhada por este mundo tão estranho quanto fascinante.

De fato, após passar pela necessária triagem inaugural da internação no estabelecimento médico, B foi recepcionado acolhedora e efusivamente, perto da porta de entrada, por uma moça mui cordial, também paciente do internato, cujo olhar de azul talássico, malgrado a fugacidade desse encontro furtivo, instalar-se-ia para sempre no mais recôndito âmago de seu átrio esquerdo, um verdadeiro vislumbre do paraíso em plena face da Terra por este mesmo B que, na ocasião, mal conseguia desvencilhar-se de uma tormenta infernal, que não se encontrava hábil para emergir das águas profundas da insanidade, ou, mais especificamente falando, que estava próximo de fenecer por asfixia nas verdes ondas do mar revolto da loucura.

Tal recepção carinhosa, que lhe abriu as portas do manicômio, consistia decerto em traço sintomático do peculiar microcosmo que aquele logradouro encerrava, pois B lá deparou-se, muito provavelmente, com algumas das idiossincrasias mais humanas e interessantes de toda a sua história até o momento, o que lhe forneceu a convicção consoante a qual a humanidade demasiada, talvez, indicasse o pecadilho primordial de toda aquela gente perturbada, composta, verbi gratia, por um rapaz atormentado por certo espírito de velho africano que discorria por seu intermédio, com voz alterada de barítono, sobre temas ancestrais do respectivo continente; por uma senhora que imergira na depressão profunda logo após ter sido milagrosamente curada de certa cegueira supostamente irreversível; por uma moça que não conseguia desvencilhar-se do uso obsessivamente ininterrupto dos óculos de sol; por um senhor que não parava de deambular compulsivamente por ser perseguido por outro espírito maligno; por uma rapariga que exibia tremores incontroláveis de etiologia desconhecida; por um jovem artista plástico, intelectualmente brilhante, cuja nêmesis derivara da experiência da morte de uma colega de profissão em seus braços; por outro jovem que fugia todos os dias do manicômio, pulando através dos seus muros; por um esquizofrênico severo que mal se comunicava e fumava de forma exacerbada, mas que por vezes discorria com muita propriedade sobre temas religiosos; enfim, uma miríade de figuras e distúrbios das mais variegadas gravidades e naturezas.

Tal amálgama humano reunia-se invariavelmente em determinados dias da semana para participar daquilo que se denominava “roda de contos”, em que umas das psicólogas do internato, exímia profissional, narrava uma história, de ficção ou não, e depois permitia a intervenção e comentários dos pacientes, um momento catártico em que se divisava a riqueza das experiências singulares, e foi provavelmente em uma dessas sessões que B conseguiu atrair, não por seus eventuais dotes físicos, mas pelo seu cultivado intelecto, a atenção mais acurada da moça de olhos azuis, que chamarei de C, pois formulara um comentário deveras prestigiado, combinando as dialéticas de Platão e Hegel, acerca de um conto sobre o cavalo de Troia, o que despertou em C certa curiosidade que a fez remover os óculos e lançar seu olhar inebriante em direção a B, que acenou de volta, estupefato.

Outro momento catártico no nosocômio consistia nas sessões de terapia ocupacional, teoricamente lastreadas nas investigações da festejada psiquiatra brasileira Nise da Silveira, onde B, cujo acalentado intelecto acabara por desprover-lhe de qualquer traço de habilidade manual, logrou milagrosamente urdir com disciplina e perfeição um pequeno tapete de lãs entrelaçadas e coloridas, uma singela obra-prima para quem jamais esperava ser incentivado a fazer algo materialmente complexo daquele jeito, enfim, uma conquista, em seu entender, de inefável contentamento, cabendo destacar que, em uma dessas sessões, C confessou-lhe que não tinha companhia para comparecer a uma festa que aconteceria no final de semana seguinte, confissão esta que B redarguiu incontinenti, colocando-se de total prontidão para acompanhá-la em dito evento, mas a proposta de B foi prontamente afastada por C, que sugeriu que ele viesse a ser apresentado à irmã filósofa de C.

Desapontado, B obteve permissão da diretoria do hospital para permanecer em casa por uma semana, eis que se cuidava de internato apenas parcial, em que os internos chegavam de manhã bem cedo e partiam no final da tarde.

Mas quando retornou ao nosocômio, o estado de ânimo de B foi liminarmente recuperado por uma grata surpresa, eis que já era época natalina e ele sorteou para presentear como amiga secreta, nas celebrações de fim de ano naquela instituição psiquiátrica, ninguém menos que sua admirada C e, então, ele quedou convicto de que o universo estava a conspirar a seu favor, de que a maré, finalmente, lhe era francamente favorável.

E qual não foi seu embevecimento quando pode apreciar uma apresentação, por C, de dança do ventre durante aquelas festividades de final de ano no manicômio, um espetáculo revelador da poderosíssima magia sedutora daquela mulher extraordinária, o que lhe provocou um êxtase sem precedentes e arrebatou-lhe definitivamente o coração.

Por derradeiro, B deu a C, como regalo de amigo secreto, o tapete que urdira com tanto carinho nas sessões de terapia ocupacional.

Eles estão juntos até hoje.

2 comentários:

  1. Que relato delicado sobre desafios físicos e emocionais que se sublimam em fios pacientemente entrelaçados para compor beleza, mas acima de tudo, conforto e segurança.
    B e C, mais do que almas feridas com as quais todos nos identificamos, são particularmente sensíveis na forma como transformam suas próprias experiências em arte de resiliência e ternura. Vida longa a esse amor. Que seja eterno enquanto for puro.

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