1. Introdução: Da superfície à forma
A obra de David Lynch, especialmente em filmes como A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), pode ser considerada caudatária do cubismo, não em um sentido visual estrito, mas no plano estrutural e ontológico da representação. Se o cubismo pictórico de Pablo Picasso e Georges Braque revela que uma imagem não possui uma única perspectiva — sobrepondo simultaneamente múltiplos ângulos, perfis e pontos de vista —, o cinema lynchiano realiza, na dimensão temporal e narrativa, uma desconstrução análoga: desmonta a linearidade do tempo, desestabiliza a identidade dos personagens e fratura a causalidade clássica do relato.
2. Picasso e a abolição da perspectiva renascentista
O cubismo, especialmente na obra de Picasso, aboliu a noção de profundidade como continuidade visual. Ao invés de retratar um rosto frontalmente ou de perfil, o artista projeta simultaneamente diversos ângulos de uma figura em uma mesma superfície plana. O que emerge daí é uma multiplicidade de planos temporais condensados no espaço visual — o rosto torna-se cubo, vértice e fragmento, revelando a artificialidade do olhar centralizado e a multiplicidade imanente ao real.
3. Lynch como cubista da temporalidade
O que Picasso realiza no plano espacial, Lynch executa na temporalidade e na subjetividade fílmica. Em A Estrada Perdida, a estrutura temporal é circular, não linear: o filme começa e termina no mesmo ponto, como se o tempo fosse um loop lógico, uma fita de Möbius. O protagonista Fred Madison se dissolve e “torna-se” Pete Dayton, num movimento que subverte o princípio aristotélico da identidade: A = A. Aqui, A pode tornar-se B sem transição causal clara, e ambos coexistem num mesmo enunciado narrativo.
4. Implosão da identidade: subjetividade cubista
No cinema clássico, as personagens possuem história, motivação, evolução — uma identidade contínua. Lynch, por outro lado, fragmenta o sujeito como estrutura narrativa. Em Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006), a protagonista é várias, e nenhuma: múltiplos nomes, múltiplas vidas, múltiplas narrativas que se fundem num vórtice de vozes. Essa multiplicação das identidades pode ser pensada como um equivalente cubista da psique: o sujeito não é uno, mas composto de facetas, ângulos, posições em conflito.
5. O tempo como volume deformado
A linguagem cinematográfica clássica funda-se na temporalidade linear: começo, meio e fim, como unidades de sentido. Lynch, ao contrário, trabalha com elipses temporais que não são lacunas, mas torções; reversibilidades narrativas, onde o efeito precede a causa; sobreposição de instâncias que fazem do tempo um espaço em colapso — o tempo torna-se volume curvo, dobrado sobre si mesmo. Tal como no cubismo, que mostra várias faces ao mesmo tempo, Lynch mostra vários tempos simultaneamente.
6. Conclusão: Um cubismo da forma fílmica
A ligação entre Lynch e o cubismo não é decorativa nem meramente influencial. Trata-se de uma homologia estrutural profunda: Picasso desmonta o objeto da pintura: o rosto, o violão, o corpo — revelando a arbitrariedade da forma unitária; Lynch desmonta o sujeito narrativo e o tempo cinematográfico — revelando a arbitrariedade da continuidade narrativa e da identidade. Ambos propõem, portanto, uma crítica da representação como transparência. Em seus universos, não se trata de “mostrar o real”, mas de explicitar o artifício da forma e convocar o espectador a reorganizar fragmentos — visuais ou temporais — para recompor, com esforço, o que nunca será uma unidade, mas uma pluralidade tensiva e enigmática.
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.
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