quinta-feira, 9 de abril de 2020

Política em tempos de Coronavírus



É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”. In:  a Peste de Albert Camus 

John Kennedy Ferreira*


Não são poucos os que comparam o comportamento dos governantes neoliberais ao do Príncipe Próspero de Edgar Alan Poe; isso é ainda mais gritante quando observamos a atitude de governantes como Trump ou o histriônico Bolsonaro.
As faixas de moradores isolados nas sacadas de Lisboa, Madri ou Bologna denunciam   o descaso e omissão de seus ricos aliados da UE e dos EUA. Mais claro que isso, só o desespero do primeiro-ministro — neoliberal — sérvio, Aleksander Vucic sobre a situação de seu enfermo país. Tudo isso vem acompanhado de um agradecimento arrependido a Cuba e a China.
Estamos aqui diante do primeiro dado empírico que merece ser estudado. Os países com economia planificada têm maior capacidade de lidar com uma emergência (pandemia) do que os países que deterioraram ou privatizaram seu sistema (de saúde), favorecendo determinados grupos do Capital Monopolista Financeiro. 
II.
Em seu livro sobre a peste de 1665, Daniel Defoe nos conta que os interesses dos ricos comerciantes, nobres fundiários e seus parlamentares eram de que a doença não alcançasse a City. Líderes políticos e econômicos traçam planos para manter a insanidade para além dos muros, enquanto os desesperados enfrentaram as baionetas dos soldados e esmurraram inutilmente duros muros de pedra em busca de salvação.
Aos médicos e enfermeiros é destacado o papel de cuidar dos doentes mas, tecnicamente, viabilizar os planos dos poderosos. Aqui são desenhados os hospitais e as camas de campanha, aqui são selecionados os destinos de vida ou morte.
Camus, nos conta através do Dr Rieux, que abandona o seu conforto e dedica-se aos trabalhadores pobres e moribundos, um universo de solidariedade — que ele não conhecia —  e destaca o incômodo do médico frente as orientações que mais extermina do que salva, que mais esconde do que revela.
Assim são as orientações neoliberais que traduzem o incômodo do Dr Rieux, nos trazem uma sensação de insegurança de um lado, apontando como caminho a reclusão “juntos” aos seus iguais, nos mostra como sociabilidade o Whatsapp, o Twitter etc.  Tal qual aos dez jovens de Boccaccio que se escondem da peste num castelo, alienados do restante do mundo, buscam viver suas aventuras sem que a realidade os alcancem. Assim nos é apresentada a nova vida social. Por outro lado, e enquanto isso, é escondido — da realidade — o abandono a que estão destinados a grande maioria dos brasileiros que vivem em parcas economias e muitas carências. 
Cerca de 10% dos brasileiros vivem em favelas e cortiços, quase 50% da população não têm acesso a coleta de lixo e saneamento básico, quase 40% dos trabalhadores vivendo na informalidade e 65% dos brasileiros tendo uma renda de até R$ 400,00. A nossa teia de saúde e previdência foram sucateadas etc. mostrando que a vida Severina foi selada antes de nascer.  Os dados da OMC, e de pesquisadores, corroboram com isso: teremos uma catástrofe social.
III
De seu palacete a Marquesa de Angélica via os corpos sendo trazidos da quarentena do sítio de Higienópolis e chorava, em consolação, pelos mais pobres que tinham morrido na gripe espanhola de 1918.  Hoje, nem isso poderemos esperar dos mais ricos. Christopher Lasch (A Rebelião das Elites), nos fala que as classes dominantes abandonaram qualquer compromisso com a sociedade, se refugiam no seu próprio mundo e suas redes. Hoje, eles estão se refugiando em resorts nas ilhas Maldivas e em outros “paraísos” onde poderão curtir sua quarentena, mesmo correndo o risco de serem contaminados pelos trabalhadores que lhes servem.
De lá dirão o que deve ser feito: as medidas fiscais, o arrocho dos salários, a cesta básica aos necessitados; os R$ 200,00 mensais aos uberizados, uma bolsa família ali ou acolá e etc.  Entre um drink e outro, receitarão aos seus ideólogos que passarão a profilaxia econômica-social a sua imprensa e ao seu Estado.
 Definirão ainda, como ficaram patentes na Itália e Espanha, aqueles que não precisam mais viver. Isso será legitimado por técnicos de saúde que dentro de sua roupagem positivista, se apresentam como cientistas neutros e isentos de opiniões políticas e submetidos aos mesmos juramentos morais que nos levaram ao cemitério clandestino de Perus, aos crematórios de Auschwitz ou recentemente as marchas orgulhosas contra Dilma pela manutenção de seus status quo.

IV
Manifestações virtuais e as panelas batidas pedem muita coisa, acima de tudo nos lembram que somos e continuamos sendo humanos e que podemos agir mesmo confinados. Não faltam vigorosos manifestos exigindo mais direitos, mais saúde, mais cuidado, mais ciência e menos, muito menos ignorância.
O papel do Estado ganha relevo. Lideranças sindicais e políticas expressivas pedem mais Estado, mais funcionários, mais investimentos etc. E colocam o Estado como o representante da produção de vacinas, de máscaras, de ventiladores.  O Estado é representante da educação, da ciência e da saúde, o Estado é o representante do interesse nacional que está sendo atacado pelo Capital financeiro, o neoliberalismo e o imperialismo. Apesar de ganhar algum espaço no debate/conflito entre as frações das classes dominantes e mesmo ter algum apelo junto a setores médios, trata-se de uma quimera:  o Estado não é neutro e sempre representa os interesses do condomínio das classes dominantes, mesmo com uma autonomia relativa. 
Essas lideranças expressivas bem-intencionadas miram-se numa aliança com uma suposta fração da burguesia interna que teria autonomia e interesses distintos dos da grande burguesia nacional-estrangeira. Mera utopia, basta ver o balancete das 200 maiores empresas nacionais para observar que os capitais industriais e financeiros se fundiram, e que tal qual ao príncipe Próspero, este, protegerá seus parentes, amigos, cortesãs, sua arte, cultura e beleza no seu mais exótico castelo contra a gentalha e seus operários em construção.
V
Na fome das batatas irlandesas de 1845, os capitalistas e os cientistas da época, diziam que a responsabilidade vinha de um fungo. Marx mostrava que a Irlanda foi destruída pelas forças econômicas de um país poderoso, a Inglaterra. No seu estudo, a Irlanda não fora destruída pelos fungos, mas sim pela conquista, pela pilhagem, pela escravidão, pela inflação e por todas as medidas econômicas que as classes dominantes inglesas e suas intermediárias nativas impuseram ao povo irlandês. Tal qual hoje, estudos sérios mostram que o vírus corona é resultado da devastação impetuosa do meio ambiente.

VI
A crise sanitária encontrou uma crise de superprodução, que está se manifestando na grande produção de petróleo e derivados e no conflito comercial envolvendo China, Rússia, EUA, Arábia Saudita, Israel e EUA. Ao fim e ao cabo, os grandes conglomerados monopolistas financeiros optarão que seus Estados estatizem ao Norte  e semi-colônias ao Sul? Manterão o liberalismo extremado? Construirão grandes políticas planejadas????
A resposta das classes dominantes é previsível e sabemos o quanto pode custar em vidas e em trabalho e mais valia. A classe trabalhadora deve perceber que será responsabilizada pelo ônus da crise, com mais impostos, mais trabalhos, mais pauperização.   A resposta do trabalho deve ser outra: tal qual a Máscara Rubra ataca e destrói o príncipe Próspero, os seus aliados e o seu castelo. Cabe, então, ao trabalho saber que os trabalhadores e os pobres herdarão o mundo, e para tanto têm que se comportar como herdeiros e destruir o Estado neoliberal.
*Doutor em História Econômica/USP. Professor de Sociologia/Desoc/UFMA.

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