terça-feira, 29 de agosto de 2023

ENTREVISTA: AGNALDO DOS SANTOS

O Núcleo de Estudos do Capital do Partido dos Trabalhadores tem a grande honra e a grata satisfação de trazer aos seus leitores uma entrevista com um de seus mais destacados intelectuais e militantes, o professor Agnaldo dos Santos, Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e pesquisador do Grupo de Pesquisa e Estudos da Globalização (GPEG) da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, e do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), autor dos livros JUVENTUDE METALÚRGICA E SINDICATO - ABC PAULISTA, 1999-2001 (Agbook - Edição do Autor, 2010) e ENTRE O CERCAMENTO E A DÁDIVA - INOVAÇÃO, COOPERAÇÃO E ABORDAGEM ABERTA EM BIOTECNOLOGIA (Blucher Acadêmico, 2017, 2ª edição), que nos concedeu gentilmente esta conversa, conduzida por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, por meio de aplicativo de mensagens, aos cinco de agosto do corrente ano. Vamos à entrevista, sem mais delongas:

NEC: Camarada Agnaldo, discorra por gentileza sobre sua militância política prévia à adesão ao NEC-PT. 

Agnaldo: Camarada, como muitos brasileiros, venho de uma família católica. Desde criança, acompanhava meus pais às celebrações dominicais, às quermesses juninas e demais festas religiosas. Contudo, durante minha infância, era um contato com o lado mais tradicional do catolicismo. Em meados dos anos 1980, minha família muda-se para Sapopemba, um bairro periférico de São Paulo. Lá, a atuação da Igreja era distinta da que eu tinha conhecido quando menino: os padres e religiosas estimulavam debates sobre nossa situação socioeconômica, à luz da Teologia da Libertação. Logo, além de frequentar missas, comecei a participar da Pastoral da Juventude. Foi nesse momento que comecei a me interessar por história e filosofia. Já no ensino médio, ajudei a fundar e fui o primeiro presidente do grêmio estudantil da minha escola. E comecei a participar das reuniões do núcleo de base do PT em meu bairro. Em 1988 e 1989, participei ativamente das campanhas de Luiza Erundina à prefeitura e de Lula à presidência, quando tirei meu título e votei pela primeira vez. Como fiz serviço militar obrigatório entre 1991 e 1992, fiquei um pouco afastado da militância. Mas em 1992 ingressei (ainda no serviço militar) no curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, onde fiquei por dois anos até minha transferência para a USP. Foi nesse momento, iniciando meu curso de graduação, que participei de uma festa de candidatura à deputado federal do companheiro José Martins, alinhado a grupos mais à esquerda do PT, que conheci o companheiro Luís Fernando (à época, respondia pelo sobrenome Franco), que me convidou a participar das reuniões do Núcleo de Estudos de O Capital, em 1994. 

N: Seu contato com a obra de Marx aconteceu inicialmente pela via da teologia da libertação, então?

A: Exatamente, quando ainda terminava o ensino fundamental e ingressava no ensino médio, minha participação na Pastoral da Juventude me levou a conversar com seminaristas, padres, irmãs e colegas que já estavam na universidade, e que falavam muito da importância de estudar autores clássicos, Marx entre eles. Na ocasião, não me preocupava muito o fato de que o marxismo era uma filosofia materialista, nesse sentido antagônica à abordagem religiosa. A teologia da libertação não focava nisso, mas na necessidade dos cuidados com a alma serem os mesmos com o corpo, logo viver bem e em fraternidade era sua máxima. Mas, aos poucos, comecei a ter os primeiros textos de Marx em mãos, e alguns questionamentos começaram a surgir, claro. Como muitos, comecei lendo o Manifesto do Partido Comunista, fragmentos de A ideologia alemã, o 18 Brumário. Foi nesse momento que percebi que a crença no transcendental era incompatível com uma filosofia materialista. Mas mantive minha amizade com os companheiros da igreja, e falo com alguns deles até hoje. Respeito-os, mas não compartilho mais da visão religiosa. Já na universidade, começo a ler de forma sistemática outros textos de Marx, e meu primeiro contato com O Capital. 

N: No início você combinava militância no núcleo de bairro e no núcleo temático do NEC?

A: Sim, mas não durou muito tempo, pois comecei a participar do NEC em 1994, e nesse período o partido começava um processo de reestruturação interna que esvaziava os núcleos de base, em favor dos diretórios zonais. Isso daria uma conversa à parte, que nosso camarada Lincoln descreve bem em seu História do PT, mas as mudanças no mercado de trabalho, quedas nas taxas de sindicalização, contraofensiva do Vaticano sobre a teologia da libertação etc. esvaziou as organizações de bairro do partido. Assim, gradativamente, e concomitantemente com minha vivência na USP, fui me afastando do partido na região e aumentando minha presença nas reuniões do NEC, que naquele momento ocorriam no prédio da FATEC, onde estudavam ou haviam estudado outros camaradas do núcleo, como Ciro Seiji, Carlos Punk, Flávio Perez e outros.

N: Esse estiolamento dos núcleos de base teve repercussão na democracia interna do partido?

A: Na minha opinião, foi uma convergência entre mudanças estruturais na sociedade brasileira e decisões equivocadas da cúpula do partido. Então, muitas dessas mudanças foram fruto das mudanças que citei acima, a avalanche neoliberal dos anos 1990, o fim da União Soviética (que, em termos simbólicos, afetou a esquerda no mundo todo, mesmo a não comunista) etc. Mas seria possível ter preservado as instâncias democráticas do início do partido? Talvez, mas a análise precisa ser vista sempre em perspectiva histórica. O PT é o partido mais bem sucedido dos últimos 40 anos, vencendo cinco eleições presidenciais. Por outro lado, batemos em um teto no parlamento, elegemos deputados e senadores em quantidade insuficiente às necessidades de uma agenda de esquerda. Em grande parte, devido ao esvaziamento das instâncias decisórias internas, que criaram estruturas de poder em torno dos mandatos parlamentares, impedindo o surgimento de mais lideranças. Repetimos as mazelas da democracia burguesa. Por outro lado, o sucesso eleitoral em disputas majoritárias, muito em função da figura ímpar de Lula, torna muito difícil o questionamento dessa estrutura. 

N: Desculpe minha insistência camarada, mas esse "centralismo interno" do partido não foi eficiente na vitória eleitoral de 2002?

A: Como mencionei, em termos eleitorais essas mudanças internas parecem ter sido providenciais. Mas o questionamento não é tanto em termos de eficiência eleitoral, mas de agenda estratégica. O NEC surgiu exatamente porque entendia naquele momento que a formação política deixava a desejar, e que seria preciso disputar a agenda do partido, para além da democracia formal burguesa. Claro que sempre fomos orientados pelas reflexões de Florestan Fernandes, que insistia no fato de que reformas tímidas em um país atrasado como o Brasil poderiam adquirir contornos revolucionários. E isso se confirmou, dada a reação dos endinheirados contra Lula e Dilma. Mas ainda falta ao partido maior "ousadia" em defender bandeiras claramente de esquerda, romper com uma falsa "realpolitik" que nos deixa reféns da Faria Lima. Vitórias  eleitorais da esquerda precisam ser pedagógicas para a classe trabalhadora, não mero meio de carreira política tradicional. 

N: Como o NEC desempenha esse papel de contribuição para a estratégia revolucionária e difusão do marxismo?

A: Inicialmente, usávamos as reuniões de leitura de O Capital, dos clássicos do marxismo e eventos com sumidades da esquerda brasileira, como Jacob Gorender e Paul Singer, para atrair militantes e simpatizantes petistas. Depois, começamos a editar pequenos jornais em formato de fanzine, para distribuir nos encontros partidários. Chegamos e enviar delegados com direito a voto nos congressos do partido, para defender nossas pautas. Mas creio que o meio mais longevo e eficaz dessa ação foi a criação da Mouro - Revista Marxista, que existe desde 2009. 

N: Qual é a atual linha editorial da revista e como ela se sustenta financeiramente?

A: A revista Mouro, menção ao apelido familiar de Marx, segue nossa premissa de fundação do NEC: os marxistas não formam um partido à parte da classe trabalhadora, mas deve atuar onde ela está. Por isso, procuramos usar a revista para resgatar temas clássicos do marxismo e da história socialista, questões contemporâneas que desafiam o legado marxista e temas de interesse da classe trabalhadora. Assim, mesmo com a presença de militantes e intelectuais petistas, a revista publica também contribuições de companheiros de fora do partido. Isso é possível porque mantemos a revista por meio da contribuição financeira dos membros do NEC. Ela não está subordinada a nenhuma instância burocrática partidária. Isso confere liberdade editorial e política para fazer a disputa dentro e fora do PT. 

N: Como você avalia a atuação do NEC diante da nova conjuntura política que se estabeleceu, ao que parece, a partir do ovo da serpente das jornadas de junho de 2013?

A: Naquela ocasião, no calor dos acontecimentos, fizemos uma análise que, modéstia à parte, mostrou-se correta: os movimentos iniciais foram puxados pelos "filhos de petistas", uma geração que era bebê ou não havia nascido em meados da década de 1990. Defendiam a tarifa zero, bandeira do próprio PT na gestão Erundina na prefeitura paulistana. Houve erros tanto do PT (que não entendeu isso, e poderia ter atendido parte dessa reivindicação, mesmo que fosse derrotada no parlamento) quanto da turma do MPL, que não esperava que a extrema direita tomaria as ruas em seu lugar. Houve muita ingenuidade do partido em acreditar nas "instituições republicanas", que levou à perseguição dos quadros petistas no chamado Mensalão e depois na operação Lava Jato. Se os dirigentes petistas levassem a sério a premissa de que o Estado é, no limite, o gabinete executivo da burguesia, poderia ter se antecipado a muitos dos movimentos dos endinheirados. Poderíamos ter evitado o impeachment e a eleição de Bolsonaro? Não se faz análise política na base do "se", mas talvez as dores do processo tivessem sido menores. Creio que a esquerda e o país tiveram muita sorte de contar com a figura do Lula nesse contexto. O processo de corrosão social poderia ter sido muito maior sem a presença do PT e de seu carismático líder. 

N: Como o NEC tem avaliado esses primeiros meses do terceiro mandato de Lula?

A: Qualquer analista atento sabia que um governo de coalizão, como o que venceu em 2022, teria muitas limitações. A situação em 2023 é pior do que aquela de 2003, que já não era fácil. Considerando tudo, o início de governo não é ruim, pelo contrário. Mas não significa que não será necessário romper com as limitações desse semi presidencialismo disfarçado, que dificulta muitas ações do Executivo, e que levam a formar maiorias na base das coalizões ao gosto do sistema multipartidário do país. O maior desafio nos próximos anos será conter a onda fascista, e só conseguirá com algum sucesso no campo econômico. Os endinheirados sabem disso, daí a dificuldade imposta pelas ações do Banco Central erroneamente chamado de independente, pelas sabotagens na dinâmica parlamentar etc. Como disse Paulo Arantes, se Lula e a esquerda conseguirem evitar a desagregação social, já será uma vitória civilizatória. Cabe aos marxistas puxar a agenda mais à esquerda, em um contexto mundial de crise permanente do capitalismo, que não pode oferecer mais nada para a humanidade neste século. 

N: Muito obrigado, camarada Agnaldo. 

Um comentário:

  1. Muito boa a entrevista! Parabéns ao Agnaldo pelo depoimento e ao Luís pela iniciativa e perguntas.

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