quarta-feira, 31 de maio de 2023

A DOBRA

 Jean Piaget, em sua epistemologia genética, descreveu o desenvolvimento cognitivo do indivíduo como processo de descentração: indistinção entre sujeito e objeto do conhecimento na fase do pensamento pré-operatório; distinção entre realidade interna e externa ao indivíduo, com decorrente diferenciação entre sujeito e objeto do conhecimento, na fase do pensamento operatório concreto; finalmente, o que denomino “dobra”, a saber, o indivíduo que já pode colocar a si próprio como objeto do conhecimento, na fase do pensamento operatório formal.


Arriscaria que tal evolver, tal descentração acontece também na história do conhecimento ou da ciência da humanidade em geral, de sorte que, nesse caso, por assim dizer, a ontogênese recapitula mais uma vez a filogênese.


Tomemos como exemplo o pensamento de Hegel: ele foi um dos pioneiros a atribuir inteligibilidade à história social, ou das sociedades, com sua dialética idealista. Todavia, esse idealismo absoluto adstringe a inteligibilidade à história do ser humano, porquanto somente o homem exibiria o atributo da razão de que o real é fruto, de tal sorte que resta impossível a inteligibilidade da história natural ou do universo, anteriores ao advento do homo sapiens.


O materialismo de Darwin e Marx já representa uma evolução ou salto de qualidade em relação ao idealismo absoluto de Hegel, pois permite apreender a inteligibilidade da história anterior ao advento da humanidade, vez que o ser humano deixa de estar no centro do universo: eis o nítido processo de descentração, observável também, verbi gratia, na história da suplantação das teorias geocêntrica e heliocêntrica, ou na superação da gravidade de Newton pela relatividade de Einstein.


Em todos esses casos, a humanidade foi capaz de se deslocar do centro do universo e colocar-se como o próprio objeto do conhecimento, realizando uma dobra sobre si mesma.


(Por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador)


Este texto é dedicado ao camarada Carlos César Félix Vieira, o Punk.

4 comentários:

  1. Um belo texto, companheiro.

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  2. Muito interessante o uso do conceito de Piaget. Acrescentaria que a humanidade deixou de ser apenas objeto das transformações ambientais para ser um dos sujeitos delas. Sendo o mais recente estágio dessa transformação a fase sugerida pelo conceito de antropoceno. Mas, por enquanto, trata-se de um sujeito muito desastrado. Abraço

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    1. Muitíssimo grato camarada Serginho, excelente comentário, como sói acontecer, grande abraço fraterno!

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