Desterro enraizado. 20 anos sem um intérprete.
Lidiane S. Rodrigues[1]
Há 20 anos
perdíamos Florestan Fernandes para um transplante de fígado seguido de erro
médico que o conduziu à morte. Tinha 75 anos e uma obra: a constituição da moderna sociologia em São
Paulo, uma interpretação do Brasil, uma militância política incansável.
As peripécias
titânicas do moço de origens modestíssimas em sua sofrida ascensão social são
recorrentemente assinaladas por seus biógrafos e comentaristas. Trata-se de
ligar o ponto inicial dessa curva social – seja o menino pobre que precisou dos
favores da madrinha, seja o garçom do Bar Bidu, na Rua Libero Badaró, nos anos
1930 – ao ponto final dela, isto é, o primeiro e maior sociólogo moderno
brasileiro. Este percurso é
indissociável das oportunidades titubeantes abertas pela então recém-instituída
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFCL-USP, 1934). Em seções como a de Sociologia, Roger Bastide, membro da segunda
missão francesa e incumbido de inaugurar os cursos e dotar a instituição de
condições autônomas de funcionamento, foi sensível ao estilo plebeu de
estudantes como Florestan, cuja única chance de carreira social se atrelava à
da própria Sociologia moderna. Bastide
colocou sua energia, capacidade de trabalho e dedicação à prova, convidando-o
para participar da pesquisa encomendada pela Unesco a respeito da “democracia
racial no Brasil”[2].
Florestan demonstrou-a. Outros professores estrangeiros, juntamente com Fernando
de Azevedo, reconheceram nele a disposição para o trabalho necessária ao
enraizamento das novas modalidades de prática científica – avessas ao estilo
diletante e grã-fino do ensaísmo de fases anteriores. A construção de si próprio, da jovem disciplina
e da instável instituição se confundiram desde que assumiu a regência da
cátedra em 1954. Datam deste período obras seminais da antropologia e da
sociologia brasileiras, ainda hoje no centro de alguns debates[3]. Assumido o posto, Florestan formou a equipe
mais dinâmica e coesa do cenário– jovens, “pelo menos” com a mesma capacidade
de trabalho que ele, dispostos a atuar em conjunto e com uma agenda de pesquisa
articulada em torno do tema da passagem da sociedade escravista à sociedade de
classes no Brasil. Este programa esteve na base da formação e da titulação dos
membros mais destacados da sociologia paulista. O círculo de seus assistentes
foi meticulosamente calculado – considerando competências específicas e recursos
econômicos e sociais – e conformava, hierarquicamente, os seguintes membros:
Fernando Henrique Cardoso, Renato Moreira Jardim, Octavio Ianni, Maria Sylvia
Carvalho Franco e Marialice Mencarini Foracchi. Junto com eles, Florestan esteve
à frente do eixo paulista da Campanha pela Escola Pública – o envolvimento com
as questões desta ordem nunca se dissociou das estratégias de disputa de seu
grupo no interior do espaço científico[4].
Em 1969, seu
projeto institucional e sua aposta intelectual no racionalismo científico e na
modernidade capitalista sofreram um forte abalo. Com outros colegas, foi
aposentado compulsoriamente pela ditadura civil-militar. Durante anos a fio,
Florestan amargou o desfecho desta experiência. No plano de sua vivência
pessoal, o drama se revestiu de lances surpreendentes e mesquinhos de um ou
outro que esperaria ter como aliado e não teve. Numa perspectiva macro
histórica e de longa duração, o episódio
coloca em tela o zigue-zague da autonomia e da heteronomia entre os
campos político e científico – com saldo em geral favorável ao primeiro,
especialmente em países periféricos, ainda engatinhando no mundo da ciência,
como o Brasil.
Entre
sua aposentadoria (1969) e o ingresso no Partido dos Trabalhadores (1986), ele passou
três anos no Canadá e refez o percurso da interpretação da modernidade
brasileira. Nos anos anteriores, suas esperanças políticas se dirigiam ao
estabelecimento da ordem social competitiva, e no papel civilizador e
progressista que ela poderia ter face à herança estamental e escravista – tanto para as elites quanto para as camadas
pauperizadas. Relendo sua própria obra e respondendo seus antigos alunos e
colaboradores da Sociologia I, desfez-se destas apostas, doravante vistas como
ilusórias. Eis o élan de sua última obra de fôlego A revolução burguesa no Brasil, publicada em 1975. Nos anos 19700, suas atividades atrelaram-se
a editoras. Destacam-se a coordenação da coleção Grandes Cientistas Sociais,
junto à Editora Ática; bem como a direção da coleção Pensamento Socialista,
junto à Editora Hucitec. Idealizou ainda as revistas Debate e Crítica e Contexto. Fez
incursões esporádicas na docência, já sem os compromissos de juventude: na
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), em 1977-1978, ofereceu um curso
sobre a revolução cubana e outro sobre a natureza sociológica da
sociologia. Nesses anos, retornaria ao
tipo de atividade desenvolvida brevemente nos anos quarenta junto aos
trotskistas, preterida pelo trabalho no interior da Universidade, de
oposicionismo ao regime autoritário, dando contribuições a diversos periódicos
– oficiais e “alternativos” – como Leia
Livros, Voz da Unidade, Nova Escrita Ensaio, Opinião, Movimento, Senhor, Senzala, Folhetim. A partir de 1983,
escreve periodicamente na Folha de S. Paulo.
Foi eleito duas vezes como deputado federal, pelo Partido dos Trabalhadores
(PT) – ao qual se filiou em 1986, com o intuito precípuo de participar da
elaboração da Constituinte. Nela,
integrou a Sub-comissão de Educação, cultura e esportes; apresentou 93 emendas;
atuou com o antigo aluno, Fernando Henrique Cardoso, então líder do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no Senado. Quem o acompanhasse na grande imprensa nesses
anos notaria o esforço heroico de tentar mobilizar seus esquemas
interpretativos macro históricos para a explicação da conjuntura política[5].
Na ocasião dos
dez anos da morte de Florestan Fernandes, a Escola Nacional do Movimento dos
Trabalhadores sem Terra o homenageou, batizando-se com seu nome. Heloisa
Fernandes, sua filha, afirmou que o nome de seu pai dá “voz a um sem número de
aspirações de mudança da sociedade brasileira, essa que ele costumava batizar
de capitalista selvagem”[6].
Trata-se da melhor súmula de sua figura, pois põe em relevo a raridade de sua
integridade e do compromisso político incorruptível com as forças
progressistas. A formulação parece-me
perfeita também por algo mais sutil: Florestan é o mandatário de uma anônima
delegação coletiva atravessada pelas ambições simbólicas tanto das elites (a
tal integridade que forjam sem ter) quanto das camadas destituídas (a
respeitabilidade, o prestígio, o saber que desejam sem ousarem fingir).
Entrementes, foi
a posição de exceção junto aos grupos de referência que o constituiu. Como o
isolamento só se produz socialmente, a chave de sua singularidade se encontra
nessa solidão coletiva. Leitor entre
garçons em sua adolescência, reconhecido por alguns professores mas sem
muitos amigos entre seus colegas de turma; acadêmico
puro
entre polígrafos (jornalistas, médicos) nos anos 1940, quando se
aventurou pelo trotskismo; plebeu entre grã-finos e sociólogo científico entre críticos da
cultura, quando aluno e assistente da FFCL-USP, no início dos anos 1950. Aa
entusiástica integração social de Florestan se dá na constituição de sua equipe
de ex-alunos e de sua bela família. Mas a equipe se estilhaça e a posição-exceção
se repete. Exilado no Canadá quando a configuração de referência se situava no
Chile/França ou no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap);
resistindo a se filiar ao PT, quando ela se dirigia a ele; uma vez no PT,
pertencia a muitas e a nenhuma corrente[7].O
arco histórico de sua trajetória abarca mudanças profundas no capitalismo e na
sociedade de classes brasileira – selvagem, injusta e capaz de multiplicar a
tragédia da anomia social, sem compensações que se conhece em outras
experiências históricas[8]. É
compreensível que seu nome seja voz de um “sem número de aspirações”, não
exclusivamente políticas, mas, sobretudo, à integração social.
[1] Professora do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.
[2] Florestan Fernandes; Roger
Bastide. Negros e brancos em São Paulo.
Ensaio sociológico sobre aspectos da
formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade
paulistana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
[3] Destacam-se: A organização social dos Tupinambá. São
Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949; A função social da guerra na
sociedade tupinambá. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1970. A etnologia e a
sociologia no Brasil: ensaio sobre aspectos da formação e desenvolvimento das
Ciências Sociais no Brasil. São Paulo, Anhembi, 1958. Ensaios de sociologia
geral e aplicada. São Paulo, Pioneira, 1960; Folclore e mudança
social na cidade de São Paulo. São Paulo, Anhembi, 1961; 2a ed.
Petrópolis, Vozes, 1979.
[4] Contra a perspectiva inocente e
encantada que em geral se adota a respeito do envolvimento dele e de sua equipe
na vida política nacional, alguns dos
nexos que apresento acima foram demonstrados na minha tese de doutorado (“A
produção social do marxismo em São Paulo: mestres, discípulos e um seminário
(1958-1978)”. FFLCH-USP, 2012). Retiro o
básico do presente texto do capítulo 2 deste trabalho, no qual consta também a
bibliografia especializada no assunto, impossível de ser discutida aqui.
[5] Este empenho
ficou documentado nos livros: Apontamentos
sobre a teoria do autoritarismo. São
Paulo, HUCITEC, 1980; Brasil em compasso de espera. São Paulo, HUCITEC,
1980. (Coleção Pensamento Socialista); Movimento
socialista e partidos políticos. São Paulo, HUCITEC, 1980; A ditadura em
questão. São Paulo, T. A. Queiroz, 1982; Que tipo de República? São
Paulo, Brasiliense, 1986; Nova República? Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
(Brasil: os anos do autoritarismo); A constituição inacabada: vias
históricas e significado. São Paulo, estação Liberdade, 1989; Pensamento
e Ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo, Brasiliense, 1989.
[6]
Heloisa Fernandes. “Florestan Fernandes, Universidade e MST”. Caros amigos, n. 96, março de 2005.
[7] Cf. “O coração do desterro”,
capítulo 2 da tese mencionada anteriormente.
[8]
Pierre Bourdieu. Sur l’État. Paris: éditions
du Seuil, 2012, p. 238-257.
Olá LIDIANE,
ResponderExcluirParabéns por seu belo texto, expressão do carinho e importância que MESTRE FLORESTAN FERNADES merece de todos nós!
Beijos,
EDU
Oi Edu, só sua msg fofa agora. Eu é que lhe agradeço.
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