A produção e reprodução material da vida humana bifurca-se em dois vértices fundamentais:
1. O âmbito da reprodução sexuada;
2. O âmbito do trabalho.
A literatura de alta indagação reflete, grosso modo, tal bifurcação, sendo certo que, no caso do âmbito da reprodução sexuada, os escritores, durante muito tempo, edulcoraram e suavizaram tal universo desde uma perspectiva do amor romântico e sentimental, de certa forma fantasioso por ter como fulcro certa liberdade de escolha individual, com desconsiderar as ingerências de jaez fisiológico, social e psicológico que concorrem nessa espécie de reprodução e que sobrepujam o suposto livre arbítrio do indivíduo humano.
Gustave Flaubert revelou-se decerto um dos precursores da crítica do amor romântico com sua obra intitulada Madame Bovary, que lhe custou inclusive um processo judicial, em que a protagonista Emma desfaz abruptamente todas as veleidades burguesas e todas as fantasiosas esperanças associadas a esse amor romântico.
Franz Kafka, por seu turno, não se debruçou sobre o tema da reprodução sexuada, mas aniquilou todas as esperanças atreladas ao âmbito do trabalho: seus protagonistas são, de fato, trabalhadores como o caixeiro-viajante Gregor Samsa, o bancário Josef K. e o agrimensor K.
Muita tinta já foi dispendida para tratar do tema da alienação do trabalho sob a égide do capital, mas talvez seja de interesse, aqui, discorrer um pouco mais a propósito.
É precisamente o trabalho abstrato, que determina o valor econômico das mercadorias, o responsável por tornar a vida do trabalhador um vácuo existencial, um vazio de conteúdo e esperança cujo curso do tempo conduz ao nada.
Kafka delineou artisticamente tal falta de esperança em romances como O processo e O castelo, mas foi na novela intitulada A metamorfose que a levou às últimas consequências:
Como já antecipamos algures, a transfiguração do caixeiro viajante Gregor Samsa em inseto monstruoso proclama a falência da noção burguesa de indivíduo, identificando tal suposta realidade como um absurdo típico das contradições inerentes ao modo capitalista de produção.
Flaubert e Kafka são, definitivamente, algozes eficientes do romantismo literário.
Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.
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