terça-feira, 14 de outubro de 2025

A LUA E A AREIA

 A LUA E A AREIA

 

Em memória de Arthur Charles Clarke e Stanley Kubrick 

 

 

 

O eventual e nobre leitor destas páginas manuscritas com sangue, na melhor e mais confiável tradição fiduciária encetada por Friedrich Nietzsche, quiçá venha a se recordar de que este humilde servo, que ora lhe dirige estas linhas, algures já ventilou a conjectura de acoplar ao texto agora sob escrutínio uma música incidental oriunda de algum aparelho externo e avulso, apto a amenizar com melodias e acordes a respectiva leitura, e neste caso eu tomaria a liberdade de sugerir uma faixa de jazz intitulada “Moon and Sand”, do álbum Standards, devidamente executada, com maestria técnica e alma engajada, por Keith Jarrett ao piano, Gary Peacock ao contrabaixo e Jack DeJohnette na percussão, para então relatar que em determinada noite de lua cheia, há séculos já passados, em certa ilha inserida no oceano Pacífico à altura do equador, ocorria nas areias mornas do litoral uma cerimônia fúnebre de corpo presente, dedicada ao recém falecido ancião da tribo local, e rigorosamente dirigida pelo sacerdote do grupo, que comparecia na íntegra, chefe religioso este que prolatava sentenças de lamento e profunda consternação pelo acontecido com o velho e sábio membro daquela população temente ao todo poderoso criador do universo, e então o líder confessional já aludido empreendeu uma pausa no inflamado discurso para fitar o luar e obtemperar que aquilo, a morte, também lhe ceifaria o vigor vital algum dia desses, enquanto aquele satélite lunar, e o deus particular que ele encerrava em seu mais recôndito âmago, remanesceriam airosamente e com galhardia, malgrado o finito destino individual de cada rosto ali constante, mas talvez aquela tribo guardasse o condão de se perpetuar nos rebentos dos componentes daquele cortejo de exéquias, e tal reflexão acalmou seu despedaçado músculo do átrio esquerdo do peito, enquanto as ondas oceânicas provocavam inexoravelmente o celeuma típico dos mares daquela região longínqua no meio do nada e olvidada pelo já mencionado todo poderoso.

Neste exato momento, a milhares de quilômetros distantes dali, na região do mesmo planeta hoje conhecida como floresta amazônica, dois pajés de tribos distintas e tradicionalmente inimigas, marcadas por disputas territoriais e guerras infindáveis entre si, encontram-se solenemente em território neutro para trocar presentes e remédios, bem assim para estabelecer colóquio amistoso sobre a vida, com empreender diálogo pacífico sobre a finitude do corpo e a infinitude da alma, ou mais especificamente acerca da maneira como somos capazes de escutar nosso espírito interno através do turbilhão incontido do pensamento, algo que permanece fora do controle de nossa vontade e revela o jaez divino de nossas breves existências materiais, eis que tal entidade mental e desgovernada reúne-se, após a morte corpórea, aos deuses perenes que habitam a floresta e contêm os mistérios da selva que cura e mata com a mesma falta de cerimônia, mas que acolhe com ternura o burburinho musical produzido pelas águas do imenso rio que corre ao largo de forma incessante e que não respeita qualquer celebração fúnebre das tribos que habitam suas adjacências, mas fornece a substância líquida e o alimento vivo imprescindíveis para o corpo individual dos integrantes dos povos que moram ali há dezenas de séculos.  

Muito, muito tempo após os acontecimentos acima narrados, deparamo-nos agora no continente africano, mais especificamente no litoral da costa de seu flanco oeste, com um grupo de comerciantes europeus, oriundos da península ibérica, que empreende, com boa dose de altivez, complexas tratativas com as autoridades de determinada nação local, colimando a aquisição de um lote de escravos jovens e hígidos destinado ao labor nas plantações e engenhos de açúcar na porção nordeste do país que ora veio a se denominar como Brasil, parecendo conveniente aventar e aduzir nesse particular que o instituto da escravidão resulta na verdade do desdobramento da apropriação, pelo trabalho humano de certo grupo, de determinado meio de produção ou propriedade fundiária, a qual demanda, por seu turno, a violência como estratagema para sua manutenção contra a desapropriação respectiva, pelas vias bélicas, por outros grupos distintos, de tal sorte que em algum momento o trabalho e a violência dissociam-se e se fazem autônomos para que floresça uma classe de escravos, que somente trabalha, e outra de senhores, que exerce a violência contra a primeira, cabendo destacar ainda que a transfiguração da troca simples de mercadorias em circulação de mercadorias por intermédio do dinheiro, esta faceta autônoma do valor mercantil abstrato em forma de metal precioso, máxime de ouro, encerrou o nefasto condão de recrudescer aquele aludido instituto da escravidão, razão pela qual estamos agora a discorrer sobre tal assunto para, sem embargo, haurir como corolário desta breve digressão de história econômica que à época da troca simples de mercadorias corresponde o politeísmo como manifestação religiosa predominante, enquanto o dinheiro, ou a circulação de mercadorias, engendra o monoteísmo como unificação de todas as entidades divinas que encantavam a natureza em seus variegados fenômenos, tanto animados quantos inanimados, como minerais, vegetais ou animais, de tal maneira que o Deus único e onipresente desta derradeira crença religiosa pode ser compreendido outrossim enquanto culminância da autonomia do pensamento ou da mente humana que se convola em divindade antropomórfica solitária e infalível.

No entanto, o dinheiro monoteísta ainda se exibia deveras arraigado na mercadoria politeísta, na exata medida em que resultava da autonomia completa da faceta mercantil como valor abstrato, bem assim funcionava como mera circulação de tais objetos satisfativos de necessidades humanas, de tal sorte que algum dia o dinheiro seria inapelavelmente compelido a descer dos píncaros onde reinava e se reintegrar ao mundo da produção da vida material dos seres humanos, da mesma forma como o Deus monoteísta seria instado a se comunicar com o homo sapiens novamente, o que Prometeu fez com o Olimpo ao entregar o fogo aos mortais, bem assim o Fausto medieval efetuou ao estabelecer contrato com Mefistófeles, mas a mais acabada manifestação religiosa da ascensão do abstrato ao concreto, ou da aliança entre o Deus monoteísta e os homens finitos, foi decerto a figura grandiloquente de Jesus Cristo, esse Deus onipresente que se fez ser humano, representando o mais acabado e lapidado vaticínio daquilo que seria um dia denominado pelo Mouro de Trier como capital, ou seja, a reintrodução do dinheiro no mundo de carne e osso dos seres humanos, a saber, na produção e reprodução da vida material dos reles mortais, que teve como acontecimento culminante a Revolução Industrial inglesa do século dezoito da era cristã, solenemente saudado e perenizado, por aquele mesmo Mouro de Trier, na imagem do Prometeu desacorrentado.   

Cabe obtemperar que esta ascensão do abstrato ao concreto do dinheiro no mundo, denominada capital, correspondente no âmbito religioso à corporificação do Deus monoteísta em forma de ser humano, consiste na verdade numa massa disforme de máquinas que submete o corpo dos trabalhadores para extrair o lucro, mas a história ulterior demonstrará que também a mente deste operário será subsumida no capital para extração de lucro, sendo certo asseverar que tal subsunção adquirirá a forma de um programa de computação denominado inteligência artificial, que regerá e acelerará o pensamento humano para os fins colimados de enriquecer a classe dos detentores destes meios de produção de coisas ou pensamentos, de tal sorte que, agora, a divisão entre senhores e escravos convolou-se em antagonismo entre capitalistas e trabalhadores, mas esta dissociação e divisão dos seres humanos em classes sociais distintas e inimigas alcançará, como vaticinado pelo Mouro de Trier acima citado, um dia derradeiro, quando então os trabalhadores subsumidos no capital tomarão de assalto as máquinas e a inteligência artificial dos capitalistas numa revolução mundial que restabelecerá a harmonia e a irmandade entre os mortais.

Esta harmonia mundial, que nosso Mouro de Trier uma vez denominou comunismo, não encerrará, contudo, o condão de afastar aquela dicotomia entre a finitude do corpo e a infinitude da alma, tão característica do mundo dominado pela mercadoria, e os seres humanos remanescerão aflitos com a morte, que castiga cruelmente o fluxo contínuo e incontido de seu pensamento, mas eis que alguém logrou a ideia de derrotar a finitude do corpo mediante a fusão dos cérebros humanos com a inteligência artificial, de tal maneira que todos os indivíduos da espécie do homo sapiens teriam suas sinapses cerebrais devidamente mapeadas e copiadas para serem introduzidas em um único e monumental dispositivo algorítmico que contemplará todas as mentes do mundo, e então esses seres humanos renunciarão ao seu corpo físico para cingirem-se a pensamento puro introduzido naquele grande dispositivo algorítmico que abroquelará todos os indivíduos da espécie, os quais lograrão enfim derrotar a morte e a finitude física para ganhar a Lua e as estrelas deste universo tão belo quanto desconcertante, e este seres humanos fundidos no algoritmo gigantesco concederão um novo nome para toda a humanidade vitoriosa contra a morte: DEUS.

 

 

Por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA 

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