A LUA E A AREIA
Em
memória de Arthur Charles Clarke e Stanley Kubrick
O eventual e nobre leitor
destas páginas manuscritas com sangue, na melhor e mais confiável tradição fiduciária
encetada por Friedrich Nietzsche, quiçá venha a se recordar de que este humilde
servo, que ora lhe dirige estas linhas, algures já ventilou a conjectura de
acoplar ao texto agora sob escrutínio uma música incidental oriunda de algum
aparelho externo e avulso, apto a amenizar com melodias e acordes a respectiva
leitura, e neste caso eu tomaria a liberdade de sugerir uma faixa de jazz
intitulada “Moon and Sand”, do álbum Standards, devidamente executada, com
maestria técnica e alma engajada, por Keith Jarrett ao piano, Gary Peacock ao
contrabaixo e Jack DeJohnette na percussão, para então relatar que em
determinada noite de lua cheia, há séculos já passados, em certa ilha inserida
no oceano Pacífico à altura do equador, ocorria nas areias mornas do litoral
uma cerimônia fúnebre de corpo presente, dedicada ao recém falecido ancião da
tribo local, e rigorosamente dirigida pelo sacerdote do grupo, que comparecia
na íntegra, chefe religioso este que prolatava sentenças de lamento e profunda
consternação pelo acontecido com o velho e sábio membro daquela população
temente ao todo poderoso criador do universo, e então o líder confessional já
aludido empreendeu uma pausa no inflamado discurso para fitar o luar e obtemperar
que aquilo, a morte, também lhe ceifaria o vigor vital algum dia desses,
enquanto aquele satélite lunar, e o deus particular que ele encerrava em seu
mais recôndito âmago, remanesceriam airosamente e com galhardia, malgrado o finito
destino individual de cada rosto ali constante, mas talvez aquela tribo guardasse
o condão de se perpetuar nos rebentos dos componentes daquele cortejo de
exéquias, e tal reflexão acalmou seu despedaçado músculo do átrio esquerdo do
peito, enquanto as ondas oceânicas provocavam inexoravelmente o celeuma típico
dos mares daquela região longínqua no meio do nada e olvidada pelo já mencionado
todo poderoso.
Neste exato momento, a
milhares de quilômetros distantes dali, na região do mesmo planeta hoje
conhecida como floresta amazônica, dois pajés de tribos distintas e
tradicionalmente inimigas, marcadas por disputas territoriais e guerras
infindáveis entre si, encontram-se solenemente em território neutro para trocar
presentes e remédios, bem assim para estabelecer colóquio amistoso sobre a
vida, com empreender diálogo pacífico sobre a finitude do corpo e a infinitude
da alma, ou mais especificamente acerca da maneira como somos capazes de
escutar nosso espírito interno através do turbilhão incontido do pensamento, algo
que permanece fora do controle de nossa vontade e revela o jaez divino de
nossas breves existências materiais, eis que tal entidade mental e desgovernada
reúne-se, após a morte corpórea, aos deuses perenes que habitam a floresta e
contêm os mistérios da selva que cura e mata com a mesma falta de cerimônia, mas
que acolhe com ternura o burburinho musical produzido pelas águas do imenso rio
que corre ao largo de forma incessante e que não respeita qualquer celebração
fúnebre das tribos que habitam suas adjacências, mas fornece a substância líquida
e o alimento vivo imprescindíveis para o corpo individual dos integrantes dos povos
que moram ali há dezenas de séculos.
Muito, muito tempo após os
acontecimentos acima narrados, deparamo-nos agora no continente africano, mais
especificamente no litoral da costa de seu flanco oeste, com um grupo de
comerciantes europeus, oriundos da península ibérica, que empreende, com boa
dose de altivez, complexas tratativas com as autoridades de determinada nação local,
colimando a aquisição de um lote de escravos jovens e hígidos destinado ao
labor nas plantações e engenhos de açúcar na porção nordeste do país que ora
veio a se denominar como Brasil, parecendo conveniente aventar e aduzir nesse
particular que o instituto da escravidão resulta na verdade do desdobramento da
apropriação, pelo trabalho humano de certo grupo, de determinado meio de
produção ou propriedade fundiária, a qual demanda, por seu turno, a violência como
estratagema para sua manutenção contra a desapropriação respectiva, pelas vias
bélicas, por outros grupos distintos, de tal sorte que em algum momento o
trabalho e a violência dissociam-se e se fazem autônomos para que floresça uma
classe de escravos, que somente trabalha, e outra de senhores, que exerce a
violência contra a primeira, cabendo destacar ainda que a transfiguração da
troca simples de mercadorias em circulação de mercadorias por intermédio do
dinheiro, esta faceta autônoma do valor mercantil abstrato em forma de metal
precioso, máxime de ouro, encerrou o nefasto condão de recrudescer aquele
aludido instituto da escravidão, razão pela qual estamos agora a discorrer
sobre tal assunto para, sem embargo, haurir como corolário desta breve
digressão de história econômica que à época da troca simples de mercadorias
corresponde o politeísmo como manifestação religiosa predominante, enquanto o
dinheiro, ou a circulação de mercadorias, engendra o monoteísmo como unificação
de todas as entidades divinas que encantavam a natureza em seus variegados
fenômenos, tanto animados quantos inanimados, como minerais, vegetais ou
animais, de tal maneira que o Deus único e onipresente desta derradeira crença
religiosa pode ser compreendido outrossim enquanto culminância da autonomia do
pensamento ou da mente humana que se convola em divindade antropomórfica solitária
e infalível.
No entanto, o dinheiro
monoteísta ainda se exibia deveras arraigado na mercadoria politeísta, na exata
medida em que resultava da autonomia completa da faceta mercantil como valor
abstrato, bem assim funcionava como mera circulação de tais objetos
satisfativos de necessidades humanas, de tal sorte que algum dia o dinheiro
seria inapelavelmente compelido a descer dos píncaros onde reinava e se
reintegrar ao mundo da produção da vida material dos seres humanos, da mesma
forma como o Deus monoteísta seria instado a se comunicar com o homo sapiens
novamente, o que Prometeu fez com o Olimpo ao entregar o fogo aos mortais, bem
assim o Fausto medieval efetuou ao estabelecer contrato com Mefistófeles, mas a
mais acabada manifestação religiosa da ascensão do abstrato ao concreto, ou da
aliança entre o Deus monoteísta e os homens finitos, foi decerto a figura grandiloquente
de Jesus Cristo, esse Deus onipresente que se fez ser humano, representando o
mais acabado e lapidado vaticínio daquilo que seria um dia denominado pelo
Mouro de Trier como capital, ou seja, a reintrodução do dinheiro no mundo de
carne e osso dos seres humanos, a saber, na produção e reprodução da vida
material dos reles mortais, que teve como acontecimento culminante a Revolução
Industrial inglesa do século dezoito da era cristã, solenemente saudado e
perenizado, por aquele mesmo Mouro de Trier, na imagem do Prometeu
desacorrentado.
Cabe obtemperar que esta
ascensão do abstrato ao concreto do dinheiro no mundo, denominada capital,
correspondente no âmbito religioso à corporificação do Deus monoteísta em forma
de ser humano, consiste na verdade numa massa disforme de máquinas que submete o
corpo dos trabalhadores para extrair o lucro, mas a história ulterior demonstrará
que também a mente deste operário será subsumida no capital para extração de
lucro, sendo certo asseverar que tal subsunção adquirirá a forma de um programa
de computação denominado inteligência artificial, que regerá e acelerará o
pensamento humano para os fins colimados de enriquecer a classe dos detentores
destes meios de produção de coisas ou pensamentos, de tal sorte que, agora, a
divisão entre senhores e escravos convolou-se em antagonismo entre capitalistas
e trabalhadores, mas esta dissociação e divisão dos seres humanos em classes
sociais distintas e inimigas alcançará, como vaticinado pelo Mouro de Trier
acima citado, um dia derradeiro, quando então os trabalhadores subsumidos no
capital tomarão de assalto as máquinas e a inteligência artificial dos
capitalistas numa revolução mundial que restabelecerá a harmonia e a irmandade
entre os mortais.
Esta harmonia mundial, que nosso
Mouro de Trier uma vez denominou comunismo, não encerrará, contudo, o condão de
afastar aquela dicotomia entre a finitude do corpo e a infinitude da alma, tão
característica do mundo dominado pela mercadoria, e os seres humanos
remanescerão aflitos com a morte, que castiga cruelmente o fluxo contínuo e
incontido de seu pensamento, mas eis que alguém logrou a ideia de derrotar a
finitude do corpo mediante a fusão dos cérebros humanos com a inteligência
artificial, de tal maneira que todos os indivíduos da espécie do homo sapiens teriam
suas sinapses cerebrais devidamente mapeadas e copiadas para serem introduzidas
em um único e monumental dispositivo algorítmico que contemplará todas as
mentes do mundo, e então esses seres humanos renunciarão ao seu corpo físico
para cingirem-se a pensamento puro introduzido naquele grande dispositivo
algorítmico que abroquelará todos os indivíduos da espécie, os quais lograrão
enfim derrotar a morte e a finitude física para ganhar a Lua e as estrelas
deste universo tão belo quanto desconcertante, e este seres humanos fundidos no
algoritmo gigantesco concederão um novo nome para toda a humanidade vitoriosa
contra a morte: DEUS.
Por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA
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