terça-feira, 28 de maio de 2024

A revolução industrial na União Soviética

 A Revolução Industrial na União Soviética

Lincoln Secco

Os comentários que se seguem foram feitos a partir da leitura de Farm to Factory: a Reinterpretation of the Soviet Industrial Revolution (Princeton, 2003). Mas não é uma resenha, pois não abordo a maioria dos temas da obra, tais como demografia, história populacional, desenvolvimento, história da Rússia anterior à Revolução etc. Além disso, faço comentários baseados em outros livros que li para escrever minha obra História da União Soviética (Maria Antônia, 2 ed, 2023).

Forma Socialista

Em outubro de 2017 os bolcheviques tinham vários desafios, dentre eles havia dois que nos interessam aqui: assumir o comando das fábricas e dos serviços públicos urbanos; e socializar a propriedade rural.

No primeiro caso, dois obstáculos se interpunham: a propriedade privada e o controle operário da produção. As empresas foram rapidamente estatizadas em 1918. Já os operários que assumiram o controle de algumas empresas opuseram uma resistência que só foi superada pela designação de gestores do partido. Segundo Robert Allen o decreto de 27 novembro 1917 deu aos conselhos de fábrica o controle das empresas, mas durante uma Guerra Civil a planificação era incompatível com a democracia de base. Em Junho de 1918 havia 487 firmas nacionalizadas e em setembro eram 4 mil.

Pode-se dizer, portanto, que exteriormente a forma socialista se estabeleceu, visto que o Estado era dirigido pelos comunistas; mas no interior da fábrica persistiu a divisão do trabalho e o despotismo da gerência. De acordo com Engels em seu texto “Da Autoridade” e também de acordo com as concepções de Lenin, a autogestão era incompatível com a planificação econômica, embora as ferrovias, por exemplo, tivessem sido autogeridas até março de 1918.

O Debate Econômico

Depois da Guerra Civil (1919-1921) o Partido lançou uma Nova Política Econômica que estabilizou o rublo, segundo Lenina Pomeranz em seu excelente livro Do Socialismo Soviético ao Capitalismo Russo (Ateliê, 2 ed, 2023).

Todavia, o debate estava aberto. A indústria estava socializada, mas a agricultura e grande parte do comércio eram privados e isso tinha repercussões no regime de classes sociais. Camponeses médios e ricos não tinham sido hostis ao processo revolucionário em grande medida porque haviam feito sua própria revolução no campo, redistribuindo propriedades e ignorando apelos à coletivização. Diante de tarefas mais urgentes os bolchheviques não tentaram coletivizar a terra. Na Guerra Civil os víveres foram obtidos mediante exação forçada, mas isso não podia continuar. Depois de 1921 o Exército Vermelho estava exausto e diminuiu seus efetivos. Soluções no interior da ecoomia de mercado foram testadas.

De acordo com Allen (pp. 54-5) o Estado soviético tinha grande poder de mercado, uma vez que era o principal fornecedor de bens de consumo produzidos em fábricas e um comprador de grãos. Era quase um oligopsônio. Preobajensky propôs que se aumentasse o preço dos bens de consumo e se diminuísse o preço pago pelos grãos, a fim de extrair o excedente agrícola e pagar o investimento industrial.

Bukharin defendeu o inverso. Estimular o campo aumentaria sua demanda por bens industriais. Medidas para aumento da produtividade rural seriam tomadas. Por exemplo: remover proibições ao uso de mão de obra contratada na agricultura para incentivar o investimento dos camponeses ricos. Sua palavra de ordem foi a de Guizot: “Enriquecei-vos”. Cooperativas seriam estimuladas em competição pacífica com o “agronegócio”.

Citando outros modelos explicativos Allen (p. 60) considerou que havia a possibilidade de uso da poupança camponesa. Ele distinguiu camponeses produtivos e improdutivos (primos, irmãos,


sobrinhos) que aumentavam o autoconumo das unidades agrícolas. Sem os improdutivos a poupança potencial se tornaria efetiva. A mão de obra liberada se tornaria produtiva em construção civil, irrigação, drenagens, fábricas etc.

Stalinismo

Stalin, depois de se aliar a Bukharin, adotou o programa da Esquerda do partido, obviamente com métodos coercitivos. Mas há que se indagar se o abandono da perspectiva de Bukharin podia ser feito de outro modo, pois quem escolhe os fins, escolhe os meios. O stalinismo produziu milhões de presos e 826 mil execuções. A fome foi produzida pela luta entre camponeses e Estado provocada pela verdadeira guerra civil do Partido contra o campo. Os camponeses abateram o gado em vez de entregá-lo ao Estado e diminuíram as plantações. No entanto, o Estado continuou a requisitar grãos para exportar (p. 136).

Allen (p. 186), no entanto, diz que a vantagem que a coletivização, especialmente a coletivização forçada, tinha sobre outras políticas era que maximizava a taxa de migração rural-urbana. Todavia, a NEP também era um sistema viável para o desenvolvimento econômico.

Em 1922 imposto único agricola foi instituído. Em 1926 a produção industrial voltou ao nível de 1913. A fonte de financiamento da industrialização proveio de uma série de fatores: troca desigual entre campo e cidade e eficiência do campo mediante máquinas agrícolas. A diminuição da mão de obra na agricultura mitigou o autoconsumo médio. Também houve maiores ganhos de produtividade na indústria e serviços com a maior disponibilidade de operários recém chegados às cidades. Mas ainda assim o padrão de vida urbano melhorou e os salários aumentaram, embora a jornada de trabalho tivesse aumentado também.

Há um debate sobre o cálculo da produtividade e das taxas de crescimento do PIB. O autor discute os índices Laspeyres e Paasche de preços e prefere o índice de Fisher (média geométrica dos outros dois). Esses índices estabelecem um ano base e permitem calcular a evolução real de preços, salários, padrão de consumo etc. O Índice de Laspeyres é uma média ponderada.

De qualquer ponto de vista ou com qualquer método estatístico, é bastante evidente que a União Soviética realizou uma Revolução Industrial no decênio de 1930 e que depois da II Guerra Mundial, o país atingiu níveis de vida inferiores aos padrões ocidentais, porém muito superiores aos países subdesenvolvidos. O consumo real per capita cresceu 3% ao ano entre 1950 e 1980. O número de máquinas de lavar por 100 lares ascendeu de 21 em 1965 a 75 em 1990. Apenas dois exemplos.

Base Social

Trabalhadores qualificados e com maior nível educacional propiciado pela Revolução foram a base de apoio do regime. Stalin usou o inverso de um teto de gastos, promovendo um limite orçamentário móvel. Assim, permitiu gastos com setores que não eram “eficientes”. Mas Allen é taxativo ao dizer que as “bárbaras políticas do stalinismo acrescentaram pouco à produção industrial” (p.171).

Mas neste caso recorre-se a uma regressão linear. Para a história concreta nem sempre é o melhor e pode levar a uma perspectiva contrafactual metafísica que pouco acrescenta ao debate. E se prevalecesse a política de Bukharin? Haveria crescimento mais lento, porém o resultado seria muito próximo dos índices stalinistas? Talvez. Mas esse raciocínio abstrai o que seria o regime de classes sociais sem coletivização, os efeitos políticos, o armamento para a Guerra etc. Impossível saber como seria a sociedade soviética.

O problema da Era Stalin é histórico e político. Era certo promover a industrialização ao custo da coletivização forçada? Repressão de milhões de pessoas, eliminação dos dirigentes da própria Revolução etc, como justificar isso? Por outro lado, e isso é do domínio da História, a União Soviética se industrializou, venceu o nazismo de maneira épica, tornou-se uma potência militar, aumentou o padrão de vida de sua população e infuenciou a constituição do Welfare State, as lutas anticoloniais e a industrialização da periferia mundial. O desafio soviético moderou o imperialismo. Isso foi obra de sua classe trabalhadora, mas grande parte dela também ofereceu apoio racional aos seus dirigentes, o que é algo desconcertante para muitos analistas.


Em outras notas para este blog pretendo tratar da posição de Trotsky e Lange sobre o debate econômico soviético.

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