quarta-feira, 8 de julho de 2015

Análise:

Liberismo, libertários, liberais

"aguardamos até hoje um instrumento mais adequado para implementar programas políticos do que os partidos no comando das máquinas públicas."





O que pode haver em comum entre o terrorista estadunidense Timothy MacVeigh, o grupo republicano Tea Party nos EUA, o divulgador do software livre Eric Raymond, o líder anarquista Mikhail Bakunin, o grupo de hackers Anonymus e o darwinista social Herbert Spencer? O fato de que todos, em épocas e com motivações distintas, acusarem o Estado e a centralização das grandes corporações como os maiores inimigos dos indivíduos. Não se trata apenas de defender as garantias individuais em uma sociedade moderna: todos estes personagens e instituições estavam (e estão) convencidos do caráter maligno da centralização da vida moderna em instituições, tipificada tanto no Estado quanto nas corporações.
E alguns deles, como o MacVeigh, Bakunin, o grupo Anonymus e o programador Raymond não tinham (e não tem) dúvidas sobre o papel que cabe aos indivíduos na garantia de seus direitos inalienáveis, por meio da ação direta. A ideia básica é: não espere que outros façam o que deve ser feito tão somente por você, único interessado em seus próprios interesses - o texto de Raymond, A Catedral e o Bazar, é hoje um clássico desta premissa, aplicada ao mundo da informática. Os outros (Estado, grandes empresas e grandes instituições - como partidos e sindicatos) farão de tudo para mantê-lo sob um rígido cabresto, de modo a garantir a passividade necessária para manter o status quo.
Os argumentos tendem a ser muito tentadores: quem haveria de ser contra o monopólio, por exemplo, das grandes corporações de informática, que impõem produtos e processos cobertos por uma forte proteção de propriedade intelectual? Tanto os difusores do software livre quanto os hackers militam nessa trincheira, em que muitos progressistas estão inclinados a engrossar o coro - inclusive este escriba. Quem, conhecendo as estruturas burocratizadas dos partidos políticos e dos sindicatos, não seria contra ao centralismo antidemocrático de instituições que, em princípio, deveriam ser exatamente o seu oposto?
Ocorre que grassa no seio da esquerda, desde a Grande Revolução de 1789, um debate acerca dos papéis das lideranças e dos militantes nestas organizações, bem como a própria inserção do indivíduo na sociedade moderna. O debate é extenso e esse opúsculo não pretende tratá-los, apenas nominar alguns: os debates entre os pais fundadores estadunidenses representados na coletânea de textos conhecida como "O Federalista" (interesse individual x interesse coletivo); a disputa entre marxistas e bakuninistas no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (organização x ação direta); o conflito entre autonomistas e bolcheviques após a Revolução de 1917 na Rússia (conselhos x centralismo democrático); o conflito de anarquistas e trotskistas contra as forças soviéticas na Guerra Civil Espanhola (exército popular x exército profissional). Em todas essas disputas, emergia o dilema que acompanha até hoje as forças identificadas com a esquerda: até onde vai a autonomia individual e onde deve cessar a centralização das lideranças?
Convêm lembrar que esse dilema faz pouco eco do outro lado da trincheira: mesmo contra a intervenção de instituições estatais, os liberais sempre aceitaram a premissa da premiação daqueles considerados mais capacitados e a penalização dos incompetentes (vide os argumentos spencerianos, ressuscitados nos ataques conservadores atuais contra programas sociais como o Bolsa Família). Mas curiosamente, sempre foi um tabu na esquerda. Por quê?
Antes de mais nada, porque aquilo que chamamos de esquerda é irmão siamês da direita, ou seja, nasceram juntos com o advento da sociedade moderna. Um dos pilares do Renascimento e do Iluminismo é a importância atribuída ao indivíduo. Foi somente na modernidade que se passou a valorizar os diretos "inalienáveis" das pessoas, sem a interferência da tradição, da família e da religião. Sociedades que conseguiram absorver o ideário liberal forjaram cidadãos conscientes de serem portadores de direitos. Isso explica porque, em determinadas conjunturas do século XIX e durante a 2ª Guerra Mundial, esquerda e direita se uniram contra inimigos comuns (a reação medievalista, o fascismo etc).
Mas ambas possuem seus "pré-conceitos", que os faz entrar permanentemente em confronto: a direita sente ojeriza por qualquer força que induza ao igualitarismo; a esquerda vê com desconfiança as tentativas de garantir a liberdade entre desiguais. Norberto Bobbio diz, inclusive, que é aí que reside a diferença fundamental entre ambos. Ocorre que tanto o capitalismo precisa de mecanismos mínimos de equalização para garimpar talentos em qualquer classe social como o projeto socialista precisa garantir a existência de mecanismos para a liberdade individual.
Nesse sentido, a tradição política italiana foi muito feliz em instituir em seu idioma a distinção entre "liberalismo" e "liberismo": o primeiro associado às garantias individuais e o segundo relacionado à liberdade irrestrita do mercado. Ocorre que esta distinção, utilíssima para esse debate, acaba sempre borrada nos enfrentamentos concretos entre as forças políticas. Desse modo, reivindicações autênticas no campo da esquerda podem confundir liberdade com imposição, e organização com subtração dos direitos das minorias.
Na opinião deste escriba é aí que surge o dilema, sempre renovado, do papel do individuo e do coletivo na tradição de esquerda. Se a experiência soviética já comprovou as mazelas do centralismo, urge a necessidade de confrontar o outro tabu da esquerda - a liberdade. Se, na qualidade de indivíduo, não consigo negociar meus interesses, tenho o direito de fazê-los valer de qualquer maneira? Não caímos aí no aporismo hobbesiano do "todo contra todos"? As perguntas são pertinentes, porque as personagens e instituições supracitados responderiam positivamente à primeira pergunta e daria de ombros para a segunda.
É irônico que a sociedade estadunidense seja a melhor expressão de ambas as tendências: extremamente centralizadora, com o Estado militar mais poderoso do mundo, foi engendrada por meio do discurso descentralizador puritano do small is beautiful, daí o surgimento de tempos em tempos de grupos de extrema-direita com um discurso... libertário! Mas, se para os norte-americanos o pior problema é o surgimento de um veterano de guerra explodindo prédios (sem abalar o status quo), para a esquerda o enfrentamento desse dilema põe em jogo não só a tática da ação imediata, mas o horizonte societário que se procura atingir. Afinal, o descolamento entre direção e base em todos os partidos de esquerda hoje são evidentes por si só, contudo aguardamos até hoje um instrumento mais adequado para implementar programas políticos do que os partidos no comando das máquinas públicas.

Agnaldo dos Santos

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