Liberismo, libertários, liberais
"aguardamos até hoje um instrumento mais
adequado para implementar programas políticos do que os partidos no comando das
máquinas públicas."
O
que pode haver em comum entre o terrorista estadunidense Timothy MacVeigh, o
grupo republicano Tea Party nos EUA, o divulgador do software livre Eric Raymond, o líder anarquista
Mikhail Bakunin, o grupo de hackers Anonymus e o darwinista social Herbert
Spencer? O fato de que todos, em épocas e com motivações distintas, acusarem o
Estado e a centralização das grandes corporações como os maiores inimigos dos
indivíduos. Não se trata apenas de defender as garantias individuais em uma
sociedade moderna: todos estes personagens e instituições estavam (e estão)
convencidos do caráter maligno da centralização da vida moderna em
instituições, tipificada tanto no Estado quanto nas corporações.
E
alguns deles, como o MacVeigh, Bakunin, o grupo Anonymus e o programador
Raymond não tinham (e não tem) dúvidas sobre o papel que cabe aos indivíduos na
garantia de seus direitos inalienáveis, por meio da ação direta. A ideia básica
é: não espere que outros façam o que deve ser feito tão somente por você, único
interessado em seus próprios interesses - o texto de Raymond, A Catedral e o Bazar, é hoje
um clássico desta premissa, aplicada ao mundo da informática. Os outros
(Estado, grandes empresas e grandes instituições - como partidos e sindicatos)
farão de tudo para mantê-lo sob um rígido cabresto, de modo a garantir a
passividade necessária para manter o status
quo.
Os
argumentos tendem a ser muito tentadores: quem haveria de ser contra o
monopólio, por exemplo, das grandes corporações de informática, que impõem
produtos e processos cobertos por uma forte proteção de propriedade
intelectual? Tanto os difusores do software livre quanto os hackers militam nessa trincheira, em que
muitos progressistas estão inclinados a engrossar o coro - inclusive este
escriba. Quem, conhecendo as estruturas burocratizadas dos partidos políticos e
dos sindicatos, não seria contra ao centralismo antidemocrático de instituições
que, em princípio, deveriam ser exatamente o seu oposto?
Ocorre que grassa no seio da esquerda,
desde a Grande Revolução de 1789, um debate acerca dos papéis das lideranças e
dos militantes nestas organizações, bem como a própria inserção do indivíduo na
sociedade moderna. O debate é extenso e esse opúsculo não pretende tratá-los,
apenas nominar alguns: os debates entre os pais fundadores estadunidenses
representados na coletânea de textos conhecida como "O Federalista"
(interesse individual x interesse coletivo); a disputa entre marxistas e
bakuninistas no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (organização
x ação direta); o conflito entre autonomistas e bolcheviques após a Revolução
de 1917 na Rússia (conselhos x centralismo democrático); o conflito de
anarquistas e trotskistas contra as forças soviéticas na Guerra Civil Espanhola
(exército popular x exército profissional). Em todas essas disputas, emergia o
dilema que acompanha até hoje as forças identificadas com a esquerda: até onde
vai a autonomia individual e onde deve cessar a centralização das lideranças?
Convêm lembrar que esse dilema faz pouco
eco do outro lado da trincheira: mesmo contra a intervenção de instituições
estatais, os liberais sempre aceitaram a premissa da premiação daqueles
considerados mais capacitados e a penalização dos incompetentes (vide os
argumentos spencerianos, ressuscitados nos ataques conservadores atuais contra
programas sociais como o Bolsa Família). Mas curiosamente, sempre foi um tabu
na esquerda. Por quê?
Antes
de mais nada, porque aquilo que chamamos de esquerda é irmão siamês da direita,
ou seja, nasceram juntos com o advento da sociedade moderna. Um dos pilares do
Renascimento e do Iluminismo é a importância atribuída ao indivíduo. Foi
somente na modernidade que se passou a valorizar os diretos
"inalienáveis" das pessoas, sem a interferência da tradição, da
família e da religião. Sociedades que conseguiram absorver o ideário liberal
forjaram cidadãos conscientes de serem portadores de direitos. Isso explica
porque, em determinadas conjunturas do século XIX e durante a 2ª Guerra
Mundial, esquerda e direita se uniram contra inimigos comuns (a reação
medievalista, o fascismo etc).
Mas ambas possuem seus
"pré-conceitos", que os faz entrar permanentemente em confronto: a
direita sente ojeriza por qualquer força que induza ao igualitarismo; a
esquerda vê com desconfiança as tentativas de garantir a liberdade entre
desiguais. Norberto Bobbio diz, inclusive, que é aí que reside a diferença
fundamental entre ambos. Ocorre que tanto o capitalismo precisa de mecanismos
mínimos de equalização para garimpar talentos em qualquer classe social como o
projeto socialista precisa garantir a existência de mecanismos para a liberdade
individual.
Nesse sentido, a tradição política
italiana foi muito feliz em instituir em seu idioma a distinção entre
"liberalismo" e "liberismo": o primeiro associado às
garantias individuais e o segundo relacionado à liberdade irrestrita do
mercado. Ocorre que esta distinção, utilíssima para esse debate, acaba sempre
borrada nos enfrentamentos concretos entre as forças políticas. Desse modo,
reivindicações autênticas no campo da esquerda podem confundir liberdade com
imposição, e organização com subtração dos direitos das minorias.
Na opinião deste escriba é aí que surge o
dilema, sempre renovado, do papel do individuo e do coletivo na tradição de
esquerda. Se a experiência soviética já comprovou as mazelas do centralismo,
urge a necessidade de confrontar o outro tabu da esquerda - a liberdade. Se, na
qualidade de indivíduo, não consigo negociar meus interesses, tenho o direito
de fazê-los valer de qualquer maneira? Não caímos aí no aporismo hobbesiano do
"todo contra todos"? As perguntas são pertinentes, porque as
personagens e instituições supracitados responderiam positivamente à primeira
pergunta e daria de ombros para a segunda.
É
irônico que a sociedade estadunidense seja a melhor expressão de ambas as
tendências: extremamente centralizadora, com o Estado militar mais poderoso do
mundo, foi engendrada por meio do discurso descentralizador puritano do small is beautiful, daí o surgimento de tempos em
tempos de grupos de extrema-direita com um discurso... libertário! Mas, se para
os norte-americanos o pior problema é o surgimento de um veterano de guerra
explodindo prédios (sem abalar o status
quo), para a esquerda o enfrentamento desse dilema põe em jogo não só a
tática da ação imediata, mas o horizonte societário que se procura atingir.
Afinal, o descolamento entre direção e base em todos os partidos de esquerda
hoje são evidentes por si só, contudo aguardamos até hoje um instrumento mais
adequado para implementar programas políticos do que os partidos no comando das
máquinas públicas.
Agnaldo dos Santos
Agnaldo dos Santos
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