segunda-feira, 6 de julho de 2015

História:

Publicado em: O Estado de São Paulo, 04 de julho de 2015.


Há 91 anos, o governador se exilava na Penha, o presidente bombardeava civis, que, famintos, comiam pombos e ratos

Em um 5 de julho como hoje, numa madrugada enevoada de inverno paulistano, 91 anos atrás, a cidade começava a viver uma história que a conduziria a uma das maiores batalhas travadas em solo urbano da América Latina: a Revolta Tenentista de 1924. O saldo desse episódio seria sangrento: 503 mortos, 4.864 feridos (dois terços eram civis), quase 2.000 prédios destruídos, o êxodo de cerca de 300 mil moradores da capital, que contava então 700 mil habitantes e alguns vestígios de destruição que podem ser vistos ainda hoje.
No início, foi uma surpresa. Ninguém entendeu nada quando tropas rebeldes do Exército, aliadas com a Força Pública Estadual (atual Polícia Militar), um verdadeiro exército regional na época, com artilharia e aviação, começaram a atacar alvos civis. E entendeu-se menos ainda quando uma bomba caiu no Mosteiro de São Bento exatamente no momento em que se celebrava uma missa em homenagem aos revolucionários de 1922. Houve pânico, correria. Então, outro morteiro, agora lançado da torre da Estação da Luz, tombou sobre o Liceu Coração de Jesus, deixando um aluno ferido. Alvo errado, porque a bomba se destinava ao Palácio de Campos Elísios, logo ali na frente, na Avenida Rio Branco, residência oficial do presidente do Estado (como se chamavam os governadores na época) Carlos de Campos. E esse foi só o primeiro dia.
Destruição do Cotonifício Crespi, na Mooca
Destruição do Cotonifício Crespi, na Mooca

Foi na manhã seguinte que a população soube com mais clareza que os atacantes eram tenentes do Exército sob a liderança dos irmãos Távora (Joaquim e Juarez), Eduardo Gomes, Custódio de Melo e outros. Todos haviam participado do levante dos 18 do Forte de Copacabana ocorrido dois anos antes no Rio contra o então presidente da República Arthur Bernardes. Vencidos na capital federal, os tenentes rebeldes vieram se esconder em São Paulo, onde passaram a viver camuflados sob nomes falsos. Para retomar a tentativa de deposição de Bernardes, aqui encontraram como aliado o major fiscal da Força Pública, Miguel Costa.
Aos poucos, os rebeldes foram tomando pontos estratégicos da cidade, como os quartéis da Luz, as estações da Luz e Sorocabana e os Correios, enquanto atacavam a casa do governador. A cidade literalmente parou. Os poucos bondes que circulavam traziam exemplares minguados de jornais como o Estado, Correio Paulistano e Fanfulla (da comunidade italiana) com pedidos desesperados de informações sobre pessoas desaparecidas.
Depois da paralisia veio a acefalia. O presidente Carlos de Campos, há apenas dois meses no cargo, saiu dos Campos Elísios depois que rebeldes, posicionados nos altos do Araçá, acertaram o alvo e bombardearam o Palácio. Campos, primeiro, foi para a Secretaria de Justiça, no atual Páteo do Colégio, e, quando esta também foi atacada com tiros de canhão, refugiou-se em Guaiaúna, na época uma aprazível vila cercada de montanhas ao lado do atual bairro da Penha, na Zona Leste. Uma enorme ironia da história: enquanto o “governador” fugia, no dia 9 de julho, data cara para a história paulista, um emissário de Miguel Costa o procurava para entregar uma carta, propondo a rendição dos rebeldes, em troca de anistia. Quando chegou ao palácio e o encontrou desabitado, o soldado comunicou o fato a Costa, que mandou o tenente João Cabanas ocupá-lo imediatamente – no popular “foi pra roça perdeu a carroça”.
O plano dos tenentes, que não se concluiu, era tomar a cidade rapidamente e embarcar uma tropa de soldados do Exército e da Força Pública para o Rio, onde derrubariam Bernardes. No entanto, acabaram ficando isolados e cercados em São Paulo. De seu refúgio na Penha, então um importante entroncamento ferroviário, Campos, com apoio do ministro da Guerra, Setembrino de Carvalho, conseguiu reunir 18 mil homens, canhões com alcance de 11 quilômetros e tanques franceses (uma arma jamais usada no Brasil) e aviões bombardeiros Breguet. Esse poderoso arsenal entrou em ação apenas seis dias após o início da revolta. Naquela semana, tropas da Marinha conseguiram destruir o QG rebelde instalado onde hoje fica o quartel da Rota, na avenida Tiradentes. Atiravam usando como referência e mira para os canhões a chaminé da antiga usina eletricidade da Rua João Teodoro, que ainda guarda marcas de estilhaços. Palco de combates renhidos, a Igreja da Glória, no Cambuci, também preserva uma marca daqueles tempos. O anjo sobre a porta principal perdeu parte do braço nos combates – e assim permanece. A Igreja da Glória, com seu jeitão de castelo fortificado, era estratégica: ficava em posição privilegiada numa elevação do terreno. Foi defendida por imigrantes húngaros e até ganhou um poema de Menotti Del Picchia, que diz assim: “Também nós temos – ó paulistas – nossa martirizada igreja, a nossa heroica e santa catedral de Rheims. Ela se alteia carbonizada, roída pelas balas de carabinas, mordida pelos estilhaços das granadas, furadas pelos obuses, no alto de uma colina, dominando a Mooca longínqua e o fagulheiro do Brás. Está de pé ainda. Parece um soldado baleado, morto no seu posto.”
O governo federal, com a cumplicidade do estadual, usava, para combater a revolta, o método de ataque conhecido como “bombardeio terrificante”, em que os tiros são disparados a esmo, sem destino certo, para fazer a população se revoltar contra os ocupantes. Esse mesmo método havia sido usado pelos alemães contra os franceses e belgas na I Guerra e condenado pelo mundo civilizado. Aqui, o Estado o utilizou contra seus próprios cidadãos. Resultado óbvio: dois terços dos mortos e feridos eram civis, sem relação com a revolta.
Postados no pátio da Igreja da Penha e nas colinas da Vila Matilde, locais de topografia alta em uma cidade que ainda não tinha edifícios, os canhões atiravam impiedosamente. Miravam, principalmente, fábricas, como o Cotonifício Crespi, na Mooca (hoje um hipermercado), a Duchen e a Antarctica, mas também residências. Por isso, as maiores vítimas não eram os militares rebeldes, mas os civis, que viviam nos cortiços da região do Tamanduateí, na Várzea do Carmo (atual Parque D. Pedro II), uma área alagada de terrenos baratos, onde haviam se instalado imigrantes italianos e espanhóis, operários das numerosas fábricas da região.
Eram os “carcamanos”, como os chamavam os paulistas antigos. Entre as vítimas estavam, por exemplo, os De Giani, italianos do Bom Retiro. Quando dois filhos do casal morreram sob impacto das bombas, a mãe, traumatizada, não conseguiu mais amamentar os dois caçulas gêmeos, que morreram de inanição. Um terceiro filho sobreviveu, mas perdeu o pé. Ficou infame também o “massacre do Theatro Olympia”, localizado na atual Avenida Rangel Pestana, e usado como abrigo por moradores do Brás, Mooca e Belenzinho expulsos de suas casas pelos combates. Uma bomba do exército legal destruiu o lugar, matando 30 pessoas.
Com a intensificação dos ataques, a fome começou a assombrar as casas dos paulistanos. Nas regiões proletárias, muitos sobreviviam escondidos em porões, comendo pombos, ratos e o que aparecesse. E não demoraram a surgir os saques por parte da população faminta. Foram saqueados, em alguns casos com apoio dos rebeldes, o Mercado Municipal da Rua 25 de Março, os armazéns Puglisi e Gamba, na Mooca, e os Armazéns Matarazzo, no Largo do Arouche. No Brás, espanhóis esfomeados carnearam, ainda vivos, bois de uma manada desgarrada que passou por lá. Segundo uma testemunha, “os gritos dos bois pareciam gritos humanos”.
À certa altura, uma comissão composta pelo prefeito Firmiano Pinto, que os rebeldes permitiram continuar no cargo, o presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, o arcebispo metropolitano D. Duarte Leopoldo e Silva, os diretores do Estado, Julio Mesquita, e da Liga Nacionalista, Frederico Steidel, tentou negociar com o governo, pedindo a “intervenção caridosa” do presidente Arthur Bernardes para cessar o bombardeio, sob risco de que a cidade fosse riscada do mapa. Não adiantou.
Enterrar os mortos era uma impossibilidade. Por absoluta falta de condições de se deslocar até os cemitérios do Araçá e da Consolação, os mais importantes da época, muita gente foi inumada em quintais e praças. A fuga desesperada da cidade foi uma opção só até as passagens serem fechadas. Os que puderam debandaram em automóveis, bicicletas, trens de carga, a pé e até em carros funerários. Somente Campinas abrigou 50 mil fugitivos da capital. 
Em 26 de julho, aviões governamentais jogaram panfletos que convidavam a população a abandonar a cidade, largando os rebeldes à própria sorte, já que seria executado um bombardeio ainda mais drástico. No mesmo dia, o general rebelde Isidoro Dias Lopes publicou nos jornais um texto em que assegurava que não seria “o coveiro de São Paulo.” No dia 28, os revoltosos embarcaram em 11 trens de carga com 3,5 mil homens, artilharia, comida, cavalos e gêneros alimentícios em direção a Bauru. Na mesma data, Carlos de Campos retomou o Palácio dos Campos Elísios. Estava encerrada a Revolução Tenentista de 1924.
Aos rebeldes coube ainda um lugar a mais na história. Refugiados no Paraná, juntaram-se a tropas vindas do Sul e formaram a famosa Coluna Prestes, que percorreria 25 mil quilômetros pelo Brasil enfrentando forças federais. À cidade, além dos vestígios na Luz e no Cambuci, restaram lembranças como a carta que Francisca Spinelli, moradora sitiada no Brás, enviou a sua amiga Leopoldina Ferreira, de Piracicaba: “Durante todo a noite e o dia de hoje têm se dado bombardeios horríveis! As balas passam sobre nossas cabeças, assobiando terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítimas dessas monstruosas granadas. O bairro atingido agora pelas forças do governo é esse. Já morreram diversas pessoas aqui na rua, e aqui ficam, sem o auxílio de ninguém. As granadas caem, impiedosas, por estas redondezas. Temos nos escondido no porão. Fugir não posso. Além das ruas estarem intransitáveis, eu não tenho para onde ir. Imagina que 10 mil homens do governo cercaram a cidade e despejam sobre ela tiros e mais tiros de canhão”. 
MOACIR ASSUNÇÃO É JORNALISTA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU. ESTE MÊS LANÇA SÃO PAULO DEVE SER DESTRUÍDA – A HISTÓRIA DO BOMBARDEIO À CAPITAL NA REVOLTA DE 1924 (RECORD)

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