Publicado em: O Estado de São Paulo, 04 de julho de 2015.
Há 91 anos, o governador se exilava na Penha, o presidente bombardeava civis, que, famintos, comiam pombos e ratos
Em um 5 de julho como hoje, numa madrugada enevoada de
inverno paulistano, 91 anos atrás, a cidade começava a viver uma
história que a conduziria a uma das maiores batalhas travadas em solo
urbano da América Latina: a Revolta Tenentista de 1924. O saldo desse
episódio seria sangrento: 503 mortos, 4.864 feridos (dois terços eram
civis), quase 2.000 prédios destruídos, o êxodo de cerca de 300 mil
moradores da capital, que contava então 700 mil habitantes e alguns
vestígios de destruição que podem ser vistos ainda hoje.
No início, foi uma surpresa. Ninguém entendeu nada
quando tropas rebeldes do Exército, aliadas com a Força Pública Estadual
(atual Polícia Militar), um verdadeiro exército regional na época, com
artilharia e aviação, começaram a atacar alvos civis. E entendeu-se
menos ainda quando uma bomba caiu no Mosteiro de São Bento exatamente no
momento em que se celebrava uma missa em homenagem aos revolucionários
de 1922. Houve pânico, correria. Então, outro morteiro, agora lançado da
torre da Estação da Luz, tombou sobre o Liceu Coração de Jesus,
deixando um aluno ferido. Alvo errado, porque a bomba se destinava ao
Palácio de Campos Elísios, logo ali na frente, na Avenida Rio Branco,
residência oficial do presidente do Estado (como se chamavam os
governadores na época) Carlos de Campos. E esse foi só o primeiro dia.
Destruição do Cotonifício Crespi, na Mooca
Foi na manhã seguinte que a população soube com mais clareza
que os atacantes eram tenentes do Exército sob a liderança dos irmãos
Távora (Joaquim e Juarez), Eduardo Gomes, Custódio de Melo e outros.
Todos haviam participado do levante dos 18 do Forte de Copacabana
ocorrido dois anos antes no Rio contra o então presidente da República
Arthur Bernardes. Vencidos na capital federal, os tenentes rebeldes
vieram se esconder em São Paulo, onde passaram a viver camuflados sob
nomes falsos. Para retomar a tentativa de deposição de Bernardes, aqui
encontraram como aliado o major fiscal da Força Pública, Miguel Costa.
Aos poucos, os rebeldes foram tomando pontos estratégicos da
cidade, como os quartéis da Luz, as estações da Luz e Sorocabana e os
Correios, enquanto atacavam a casa do governador. A cidade literalmente
parou. Os poucos bondes que circulavam traziam exemplares minguados de
jornais como o Estado, Correio Paulistano e Fanfulla (da comunidade italiana) com pedidos desesperados de informações sobre pessoas desaparecidas.
Depois da paralisia veio a acefalia. O presidente Carlos de
Campos, há apenas dois meses no cargo, saiu dos Campos Elísios depois
que rebeldes, posicionados nos altos do Araçá, acertaram o alvo e
bombardearam o Palácio. Campos, primeiro, foi para a Secretaria de
Justiça, no atual Páteo do Colégio, e, quando esta também foi atacada
com tiros de canhão, refugiou-se em Guaiaúna, na época uma aprazível
vila cercada de montanhas ao lado do atual bairro da Penha, na Zona
Leste. Uma enorme ironia da história: enquanto o “governador” fugia, no
dia 9 de julho, data cara para a história paulista, um emissário de
Miguel Costa o procurava para entregar uma carta, propondo a rendição
dos rebeldes, em troca de anistia. Quando chegou ao palácio e o
encontrou desabitado, o soldado comunicou o fato a Costa, que mandou o
tenente João Cabanas ocupá-lo imediatamente – no popular “foi pra roça
perdeu a carroça”.
O plano dos tenentes, que não se concluiu, era tomar a cidade
rapidamente e embarcar uma tropa de soldados do Exército e da Força
Pública para o Rio, onde derrubariam Bernardes. No entanto, acabaram
ficando isolados e cercados em São Paulo. De seu refúgio na Penha, então
um importante entroncamento ferroviário, Campos, com apoio do ministro
da Guerra, Setembrino de Carvalho, conseguiu reunir 18 mil homens,
canhões com alcance de 11 quilômetros e tanques franceses (uma arma
jamais usada no Brasil) e aviões bombardeiros Breguet. Esse poderoso
arsenal entrou em ação apenas seis dias após o início da revolta.
Naquela semana, tropas da Marinha conseguiram destruir o QG rebelde
instalado onde hoje fica o quartel da Rota, na avenida Tiradentes.
Atiravam usando como referência e mira para os canhões a chaminé da
antiga usina eletricidade da Rua João Teodoro, que ainda guarda marcas
de estilhaços. Palco de combates renhidos, a Igreja da Glória, no
Cambuci, também preserva uma marca daqueles tempos. O anjo sobre a porta
principal perdeu parte do braço nos combates – e assim permanece. A
Igreja da Glória, com seu jeitão de castelo fortificado, era
estratégica: ficava em posição privilegiada numa elevação do terreno.
Foi defendida por imigrantes húngaros e até ganhou um poema de Menotti
Del Picchia, que diz assim: “Também nós temos – ó paulistas – nossa
martirizada igreja, a nossa heroica e santa catedral de Rheims. Ela se
alteia carbonizada, roída pelas balas de carabinas, mordida pelos
estilhaços das granadas, furadas pelos obuses, no alto de uma colina,
dominando a Mooca longínqua e o fagulheiro do Brás. Está de pé ainda.
Parece um soldado baleado, morto no seu posto.”
O governo federal, com a cumplicidade do estadual, usava, para
combater a revolta, o método de ataque conhecido como “bombardeio
terrificante”, em que os tiros são disparados a esmo, sem destino certo,
para fazer a população se revoltar contra os ocupantes. Esse mesmo
método havia sido usado pelos alemães contra os franceses e belgas na I
Guerra e condenado pelo mundo civilizado. Aqui, o Estado o utilizou
contra seus próprios cidadãos. Resultado óbvio: dois terços dos mortos e
feridos eram civis, sem relação com a revolta.
Postados no pátio da Igreja da Penha e nas colinas da Vila
Matilde, locais de topografia alta em uma cidade que ainda não tinha
edifícios, os canhões atiravam impiedosamente. Miravam, principalmente,
fábricas, como o Cotonifício Crespi, na Mooca (hoje um hipermercado), a
Duchen e a Antarctica, mas também residências. Por isso, as maiores
vítimas não eram os militares rebeldes, mas os civis, que viviam nos
cortiços da região do Tamanduateí, na Várzea do Carmo (atual Parque D.
Pedro II), uma área alagada de terrenos baratos, onde haviam se
instalado imigrantes italianos e espanhóis, operários das numerosas
fábricas da região.
Eram os “carcamanos”, como os chamavam os paulistas antigos.
Entre as vítimas estavam, por exemplo, os De Giani, italianos do Bom
Retiro. Quando dois filhos do casal morreram sob impacto das bombas, a
mãe, traumatizada, não conseguiu mais amamentar os dois caçulas gêmeos,
que morreram de inanição. Um terceiro filho sobreviveu, mas perdeu o pé.
Ficou infame também o “massacre do Theatro Olympia”, localizado na
atual Avenida Rangel Pestana, e usado como abrigo por moradores do Brás,
Mooca e Belenzinho expulsos de suas casas pelos combates. Uma bomba do
exército legal destruiu o lugar, matando 30 pessoas.
Com a intensificação dos ataques, a fome começou a assombrar
as casas dos paulistanos. Nas regiões proletárias, muitos sobreviviam
escondidos em porões, comendo pombos, ratos e o que aparecesse. E não
demoraram a surgir os saques por parte da população faminta. Foram
saqueados, em alguns casos com apoio dos rebeldes, o Mercado Municipal
da Rua 25 de Março, os armazéns Puglisi e Gamba, na Mooca, e os Armazéns
Matarazzo, no Largo do Arouche. No Brás, espanhóis esfomeados
carnearam, ainda vivos, bois de uma manada desgarrada que passou por lá.
Segundo uma testemunha, “os gritos dos bois pareciam gritos humanos”.
À certa altura, uma comissão composta pelo prefeito Firmiano
Pinto, que os rebeldes permitiram continuar no cargo, o presidente da
Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, o arcebispo
metropolitano D. Duarte Leopoldo e Silva, os diretores do Estado,
Julio Mesquita, e da Liga Nacionalista, Frederico Steidel, tentou
negociar com o governo, pedindo a “intervenção caridosa” do presidente
Arthur Bernardes para cessar o bombardeio, sob risco de que a cidade
fosse riscada do mapa. Não adiantou.
Enterrar os mortos era uma impossibilidade. Por absoluta falta
de condições de se deslocar até os cemitérios do Araçá e da Consolação,
os mais importantes da época, muita gente foi inumada em quintais e
praças. A fuga desesperada da cidade foi uma opção só até as passagens
serem fechadas. Os que puderam debandaram em automóveis, bicicletas,
trens de carga, a pé e até em carros funerários. Somente Campinas
abrigou 50 mil fugitivos da capital.
Em 26 de julho, aviões governamentais jogaram panfletos que
convidavam a população a abandonar a cidade, largando os rebeldes à
própria sorte, já que seria executado um bombardeio ainda mais drástico.
No mesmo dia, o general rebelde Isidoro Dias Lopes publicou nos jornais
um texto em que assegurava que não seria “o coveiro de São Paulo.” No
dia 28, os revoltosos embarcaram em 11 trens de carga com 3,5 mil
homens, artilharia, comida, cavalos e gêneros alimentícios em direção a
Bauru. Na mesma data, Carlos de Campos retomou o Palácio dos Campos
Elísios. Estava encerrada a Revolução Tenentista de 1924.
Aos rebeldes coube ainda um lugar a mais na história.
Refugiados no Paraná, juntaram-se a tropas vindas do Sul e formaram a
famosa Coluna Prestes, que percorreria 25 mil quilômetros pelo Brasil
enfrentando forças federais. À cidade, além dos vestígios na Luz e no
Cambuci, restaram lembranças como a carta que Francisca Spinelli,
moradora sitiada no Brás, enviou a sua amiga Leopoldina Ferreira, de
Piracicaba: “Durante todo a noite e o dia de hoje têm se dado
bombardeios horríveis! As balas passam sobre nossas cabeças, assobiando
terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítimas dessas
monstruosas granadas. O bairro atingido agora pelas forças do governo é
esse. Já morreram diversas pessoas aqui na rua, e aqui ficam, sem o
auxílio de ninguém. As granadas caem, impiedosas, por estas redondezas.
Temos nos escondido no porão. Fugir não posso. Além das ruas estarem
intransitáveis, eu não tenho para onde ir. Imagina que 10 mil homens do
governo cercaram a cidade e despejam sobre ela tiros e mais tiros de
canhão”.
MOACIR ASSUNÇÃO É JORNALISTA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU. ESTE MÊS LANÇA SÃO PAULO DEVE SER
DESTRUÍDA – A HISTÓRIA DO BOMBARDEIO À CAPITAL NA REVOLTA DE 1924
(RECORD)
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