segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A DENSIDADE DO SILÊNCIO

 O excerto intitulado Silentium, extraído da composição musical nomeada Tabula Rasa, de autoria do estoniano Arvo Pärt, antolha-se-nos uma verdadeira relíquia da música minimalista contemporânea.


As partituras da música clássica e do jazz habitualmente veiculam um determinado tema e seu desenvolvimento, mas a música minimalista de Arvo Pärt, ao contrário, funda-se na repetição hipnótica de um mesmo tema musical, encerrando o condão de conduzir o ouvinte a uma condição de embevecimento e enlevo.


Cuida-se precisamente de extrair a essência da música, destacando e repetindo um mesmo tema melódico, sem desdobramentos despiciendos e acessórios, o que permite haurir grande profundidade e densidade estética.


Cuida-se, enfim, de certo platonismo musical!







Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

MONOPÓLIO TRANSITÓRIO

Ainda no que pertine à terceira forma de mais-valia relativa, é mister obtemperar que o capitalista pioneiro que introduz um novo valor de uso, correspondente a novas necessidades humanas, constitui, por assim dizer, um monopólio transitório da respectiva mercadoria inaudita, de tal forma que lhe é possível perpetrar um preço administrado de tal mercadoria, o que exacerba a mais-valia assim extraída, afora o preço já elevado pela grande utilidade marginal da mercadoria.




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.          

domingo, 15 de dezembro de 2024

NOTA SOBRE A TERCEIRA FORMA DE MAIS-VALIA RELATIVA

De proêmio, exoro novamente licença para remeter meus eventuais leitores ao texto "As quatro formas da mais-valia", aqui publicado, com espeque no qual ouso postular a seguinte nota:

Distintamente das demais formas de mais-valia, a terceira forma de mais-valia relativa não ocorre em ambiente industrial preexistente de fabricação socializada de determinado valor de uso conhecido, mas, ao contrário, pressupõe a introdução de novo valor de uso correspondente a novas necessidades humanas até então desconhecidas. 

Logo, o capitalista individual pioneiro que introduz esse novo valor de uso não encontra um valor de troca, ou valor tout court, já estabelecido para a sua nova mercadoria, de tal sorte que o tempo de trabalho para a produção de tal mercadoria não é socialmente determinado, mas corresponde exatamente ao tempo de trabalho que ele, capitalista pioneiro, gasta individualmente para a produção dessa nova mercadoria.   

Mas ele consegue vender sua nova mercadoria por um preço que sobeja tal valor ou tempo de trabalho individualmente necessário para produzi-la, em razão justamente do jaez inaudito e inédito do respectivo valor de uso, que lhe confere elevadíssima utilidade marginal.

Tal diferença entre preço e valor (correspondente ao tempo de trabalho que o capitalista pioneiro individualmente gasta para produzir sua mercadoria inaudita) constitui a essência da terceira forma de mais-valia relativa, consoante temos aqui postulado. 

Hipóteses sub judice.




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

sábado, 14 de dezembro de 2024

POLÍTICA É VIDA

Quando o platonismo inicialmente operou uma cesura entre corpo e alma, não tinha consciência de que tal cesura tinha como fonte a oposição entre os dois aspectos da mercadoria consubstanciados no valor de uso e no valor de troca, que por sua vez ancorava na dualidade entre a vida subjetiva e as relações de produção, uma dualidade que registra a regência e a direção da vida humana pelas relações de produção alienadas e heterônomas que os seres humanos contraem entre si involuntariamente.


Pois bem, a política, para os marxistas, consiste precisamente na luta para devolver a regência e a direção da vida humana aos próprios seres humanos, com a decorrente superação da fragmentação da humanidade em classes sociais antagônicas, em que a classe trabalhadora, despojada dos meios de produção e, portanto, encerrando um caráter e jaez internacional e universal, exibe protagonismo contra a classe detentora dos meios de produção.


Não por acaso, o maior político da história, Vladimir Lênin, adotava discurso vitalista em sua obra, já que se cuida de devolver efetivamente a vida aos seres humanos dela despojados pelas relações de produção alienadas.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

REVOLUÇÕES INDUSTRIAIS E MAIS-VALIA

De proêmio, exoro licença aos eventuais leitores para evocar o meu texto "As quatro formas da mais-valia", aqui publicado, com supedâneo no qual empreendo as seguintes ponderações:

1. A primeira grande revolução industrial, a saber, a inglesa do século XVIII, envolveu as formas 1, 2 e 3 de mais-valia, parecendo lícito destacar que a forma de número 2, isto é, a primeira forma de mais-valia relativa, resta bastante evidente no fato de que tal revolução, sem introduzir novos valores de uso, repercutiu basicamente na indústria têxtil, quer dizer, na produção de vestuário, o qual compõe em larga medida o elenco dos produtos definidores do valor da força de trabalho, reduzindo tal valor;

2. A segunda revolução industrial, nos séculos XIX e XX, distintamente da primeira, introduziu novos valores de uso correspondentes a novas necessidades humanas, de tal sorte que envolveu as formas 1, 2, 3 e 4 de mais-valia, cabendo destacar que esta última, a terceira forma de mais-valia relativa, exibe-se bastante evidente nos bens de consumo duráveis provenientes da indústria mecânica pesada. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

AS QUATRO FORMAS DA MAIS-VALIA

1. Mais-valia absoluta: extraída da diferença entre o valor da força de trabalho e o valor produzido pelo respectivo trabalhador em sua jornada laborativa;

2. Primeira forma de mais-valia relativa: decorrente do aumento da força produtiva do trabalho, ensejada pelo desenvolvimento tecnológico no processo de produção de capital, nos setores que fabricam mercadorias componentes da cesta básica dos trabalhadores, com a resultante redução do valor de tal cesta básica e, portanto, do valor da força de trabalho;

3. Segunda forma de mais-valia relativa: extraída pelo capitalista tecnicamente pioneiro, mediante o preço pelo qual vende sua mercadoria, que é menor do que o valor vigente de tal mercadoria, mas superior ao tempo de trabalho que tal capitalista individual gasta para produzi-la;

4. Terceira forma de mais-valia relativa: haurida, pelo capitalista inovador, do preço pelo qual vende sua mercadoria, correspondente a um valor de uso inaudito, isto é, que satisfaz a novas necessidades humanas, preço este que é superior ao valor dessa mercadoria, ou ao tempo de trabalho necessário à sua produção.

5. Tais formas amalgamam-se historicamente, cabendo destacar que a forma 1 é extraída no processo de produção de capital, a forma 2 é extraída tanto no processo de produção quanto no processo de circulação de capital, e as formas 3 e 4 são obtidas no processo de circulação de capital. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

sábado, 7 de dezembro de 2024

UMA OUTRA ESPÉCIE DE MAIS-VALIA RELATIVA?

1. A mais-valia absoluta é extraída no processo de produção de capital, mais especificamente na compra e venda da força de trabalho, mediante a diferença entre o valor dessa força de trabalho e aquele produzido pelo respectivo trabalhador em sua jornada laborativa;

2. A mais-valia relativa é extraída no processo de circulação de capital, mediante a diferença de preço da mercadoria em relação ao seu valor, isto é, o capitalista tecnicamente pioneiro consegue vender sua mercadoria por um preço menor do que o valor vigente da mercadoria, porém maior do que o tempo de trabalho que ele gasta para produzi-la;

3. Acalento aqui a hipótese da existência de um segundo gênero de mais-valia relativa, também extraída no processo de circulação de capital, mediante a produção de mercadorias que correspondem a valores de uso inauditos, isto é, que satisfazem novas necessidades humanas, vendidos por um preço maior do que o seu valor, ou maior do que o tempo de trabalho socialmente gasto na sua produção.     

4. As formas de mais-valia de 1 e 2 são típicas da primeira revolução industrial, a inglesa do século XVIII, enquanto a forma de mais-valia de 3 é típica da segunda revolução industrial dos séculos XIX e XX, que introduziu novos valores de uso. 

São conjecturas sub judice.




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

domingo, 1 de dezembro de 2024

AINDA SOBRE ESTATISMO E LIBERALISMO

1. Mercantilismo e keynesianismo, isto é, o intervencionismo estatal para aumentar a demanda econômica interna, decorre da necessidade de  extração de lucros predominantemente no âmbito do processo de circulação de capital, mediante elevação de preços de valores de uso inauditos e de alto valor econômico. 

2. O liberalismo, por seu turno, predominante no século XIX e na época hodierna, decorre da necessidade de extração de lucros eminentemente no âmbito do processo de produção de capital, mediante maximização da mais-valia absoluta e relativa, bem assim da consequente desregulamentação da compra e venda da força de trabalho. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.    

sábado, 30 de novembro de 2024

ESTATISMO E LIBERALISMO

 Durante o período histórico da subsunção meramente formal do trabalho no capital, ou seja, na época da manufatura anteriormente à revolução industrial inglesa do século XVIII, os lucros são auferidos basicamente no processo de circulação de mercadorias, e o protecionismo estatal exibe-se robusto.


Com a mencionada revolução industrial, os lucros passam a ser hauridos eminentemente no processo de produção de capital, com o consequente advento do liberalismo econômico, que predominou durante todo o século XIX.


No século XX, com a segunda revolução industrial que trouxe novos valores de uso consubstanciados nos bens de consumo duráveis produzidos pela indústria mecânica pesada, o liberalismo entra em fase de refluxo, sendo certo que os lucros passam a ser extraídos em grande medida no processo de circulação de capital.


A hodierna revolução digital revigorou o liberalismo, ao entronizar novas formas de produção e exploração do trabalho agora eminentemente intelectual, de tal sorte que os lucros voltaram a ser auferidos em maior escala no processo de produção de capital.


A alternância entre protecionismo e liberalismo parece, pois, derivar da forma predominante de obtenção e maximização dos lucros.


Conjectura sub judice.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO CAPITAL FIXO

Já ventilamos aqui a hipótese de que o capitalismo hodierno, produtor de software como mercadoria de vanguarda por excelência, pressupõe a compra e venda da força de trabalho eminentemente intelectual, no que encetou uma profunda subversão na divisão do trabalho clássica entre trabalho manual (proletariado) e trabalho intelectual (capitalistas).

Todavia, esse capital moderno da atualidade, produtor de software, ainda não efetuou a subsunção real desse trabalho intelectual, quedando ainda em vigor a subsunção meramente formal do trabalho intelectual no capital, em evidente analogia com a época da manufatura (anterior à grande revolução industrial inglesa do século XVIII) em que o trabalho manual ainda não se subsumia no capital de forma real. 

A incipiente inteligência artificial de nossa época, entretanto, exibe a tendência, vale dizer, a possibilidade histórica de vindoura subsunção real do trabalho eminentemente intelectual no capital produtor de software, em evidente simetria com a maquinaria e grande indústria no que pertine ao trabalho eminentemente manual, de tal sorte que essa inteligência artificial poderia ser, no futuro, enquadrada conceitualmente como capital fixo, da mesma forma como a maquinaria também exibe o jaez de capital fixo. 

A viabilidade energética desse novo capital fixo consubstanciado na inteligência artificial, no entanto, vem sendo questionada, o que pode inverter a tendência histórica supracitada.

São hipóteses sub judice. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  





terça-feira, 26 de novembro de 2024

PRINCIPAL E ACESSÓRIO

Em sua obra intitulada "Sobre a contradição", o grande líder chinês Mao Tsé-Tung encetou uma fértil, fecunda e nada trivial distinção entre contradição principal e contradição secundária, ou acessória, cuja atualidade parece-me indiscutível. 

Sim, hodiernamente experimentamos não somente a velha contradição, vaticinada pelo socialismo científico, entre relações de produção e forças produtivas, consubstanciada nas recorrentes crises financeiras do modo capitalista de produção; mas também a contradição entre forças produtivas e equilíbrio ecológico, evidente na crise climática atual e urgente. 

Isto posto, indago-me: qual destas duas contradições é a principal, nos termos maoístas mencionados?

Colho do ensejo para destacar uma interessante opinião de alto executivo da empresa de tecnologia OpenAI, que afirma não haver sustentabilidade energética no mundo para a vindoura inteligência artificial que se insinua atualmente, malgrado essa tecnologia constitua a vanguarda das forças produtivas no capitalismo da época corrente. 

Nesse diapasão, quer me parecer que a contradição principal reside na oposição entre relações de produção e forças produtivas, pois o que fomenta o desenvolvimento inexorável e descontrolado destas últimas são as necessidades capitalistas, de tal sorte que a crise ecológica seria, nesse sentido, um epifenômeno desta contradição principal. 

São conjecturas incipientes para debate. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A DESCOBERTA DA MAIS-VALIA

 Adam Smith cingiu-se ao processo de produção de capital, enquanto os neoclássicos enfatizaram o processo de circulação de capital, mas nenhuma dessas correntes teóricas divisou em profundidade a compra e venda da força de trabalho.


Keynes vislumbrou tal compra e venda da força de trabalho, mas cingiu-se ao seu trato no âmbito do processo de circulação de capital, como ocorre com Arthur Cecil Pigou, o expoente neoclássico que ele se propôs a criticar; Keynes hauriu avanços em relação a Pigou, sem subvertê-lo completamente.


Karl Marx foi mais longe e desvelou a extração da mais-valia ao tratar a compra e venda da força de trabalho como momento do processo de produção de capital, deslocando-a do processo de circulação de capital, e nisso consiste o jaez radical e revolucionário de sua obra.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 24 de novembro de 2024

VISIONÁRIOS E MALDITOS

 Os dois maiores economistas da história, Karl Marx e Nicholas Georgescu-Roegen, expuseram de forma sistemática os limites do modo capitalista de produção e, assim, malgrado visionários, tornaram-se malditos na academia, dominada pelos clássicos e neoclássicos liberais, os quais foram objeto de acerba crítica desses dois gigantes da ciência.


Argumentarão que olvidei o nome de John Maynard Keynes, outro gigante infenso ao mainstream econômico, mas o britânico cingiu-se aos parâmetros do processo de circulação de capital, encerrando-se nos limites clássicos da oferta e demanda econômicas, na exata medida em que se propunha, na verdade, a corrigir os rumos do capitalismo, mas não a transcendê-lo.


Marx, ao contrário, expôs radicalmente as contradições endógenas do capitalismo e seus limites intransponíveis, mostrando sua injustiça, nas desigualdades sociais, e sua ineficiência, nas crises periódicas, com preconizar sua substituição por um modo de produção superior, o comunismo.


Georgescu-Roegen também demonstrou, um século depois de Marx, em 1971, os limites biofísicos e termodinâmicos do capitalismo, antevendo a hodierna crise ecológica desse modo de produção, e preconizou o decrescimento como forma de a transcender.


Marx e Georgescu-Roegen posicionaram-se radicalmente infensos ao lucro capitalista, e por isso são malditos, algo que Keynes, de certa forma, não ousou combater, restando mais aceito no âmbito acadêmico.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

REVOLUÇÃO DIGITAL E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Destacamos, no texto imediatamente precedente, que a revolução industrial inglesa do século XVIII encetou a compra e venda em larga escala da força de trabalho eminentemente manual, inserindo o dinheiro no âmago do processo de produção de mercadorias, com a consequente subsunção real do trabalho eminentemente manual no capital, mediante sua direção pela maquinaria e grande indústria, sendo certo que engendrou, na orbe da política econômica, o movimento liberal. 

Pois bem:

De forma simétrica, a hodierna revolução digital encetou a compra e venda em larga escala da força de trabalho eminentemente intelectual na produção de software, com a consequente subsunção meramente formal do trabalho eminentemente intelectual no capital, com engendrar o movimento neoliberal de política econômica.

É de se esperar que a inteligência artificial passe, daqui a alguns anos, a dirigir a força de trabalho eminentemente intelectual, como a maquinaria e grande indústria dirige a força de trabalho eminentemente manual, com promover a subsunção real desse trabalho eminentemente intelectual no capital. 

São hipóteses sub judice.



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

DO ASPECTO SUBVERSIVO DA REVOLUÇÃO DIGITAL

1. A grande revolução industrial inglesa do século XVIII promoveu a introdução do processo de circulação de mercadorias no âmago do processo de produção de mercadorias, com a consequente compra e venda da força de trabalho eminentemente manual e a consumação da subsunção real do trabalho no capital mediante surgimento da maquinaria e grande indústria.

2. A hodierna revolução digital, por seu turno, promoveu a introdução do processo de produção de capital no âmago do processo de circulação de capital, nomeadamente ao inserir a compra e venda da força de trabalho eminentemente intelectual na produção da mercadoria consubstanciada no software, o qual serve basicamente para acelerar o processo de circulação de capital. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

ELEMENTOS PARA UM ESBOÇO DE HISTÓRIA DO PENSAMENTO ECONÔMICO

1. Mercantilismo e fisiocracia consistem em duas facetas do período da subsunção meramente formal do trabalho no capital, ou, mais especificamente, do período da manufatura, em que os lucros são auferidos primordialmente, ainda, no processo de circulação de mercadorias, com os mercadores comprando barato, e vendendo caro, os produtos ainda de jaez predominantemente agrícola, como no antigo sistema colonial brilhantemente descrito por Fernando Novais, cabendo destacar que esta dualidade entre mercantilismo e fisiocracia decorre precisamente da situação em que a maior parte da produção permanece ainda atrelada à esfera agrícola, enquanto os lucros são extraídos das diferenças de preços no âmbito da circulação de mercadorias.

2. A teoria do valor-trabalho, encetada por Adam Smith em 1776, já é característica da subsunção real do trabalho no capital promovida pela grande Revolução Industrial inglesa do século XVIII, em que os lucros são auferidos predominantemente na orbe do processo de produção de capital, onde já prevalece a maquinaria e a grande indústria, impondo-se destacar que a crítica de tal vertente de pensamento econômico foi efetuada por Karl Marx, que desvelou a extorsão de mais-valia precisamente nesse processo de produção de capital; faz-se mister anotar, todavia, que a compra e venda da força de trabalho, talvez, possa ser subsumida no processo de circulação da capital, mas esta hipótese ainda pende de averiguação.   

3. O marginalismo econômico, da segunda metade do século XIX, também denominado "revolução marginalista", prenuncia a segunda revolução industrial, difusa na Europa e Estados Unidos da América, que incidiu não somente no processo de produção de capital, mas também no processo de circulação de capital, na exata medida em que engendrou novos valores de uso, cuja utilidade inaudita e, portanto, seu elevado valor econômico deslocou mais uma vez a extração de lucro, predominantemente, para o âmbito da circulação de capital, máxime considerando o declínio tendencial da taxa de lucro decorrente do aumento da composição orgânica do capital, cabendo destacar que a crítica do marginalismo, empreendida por John Maynard Keynes em 1936, não rompeu radicalmente com a teoria criticada, eis que, como esta, também cingiu-se ao processo de circulação de capital, conquanto tenha entronizado a demanda efetiva, em substituição à oferta econômica de Jean-Baptiste Say, como promotora da prosperidade no modo capitalista de produção. 

São elementos e conjecturas para estudo. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

domingo, 17 de novembro de 2024

CINEMA: O PODEROSO CHEFÃO, DE FRANCIS FORD COPPOLA.

A logomarca da exitosa saga cinematográfica intitulada "O poderoso chefão", de autoria de Francis Ford Coppola, exibe um manípulo de títere, em forma de cruz, segurado por uma mão desprovida de braço.

Aventaria a hipótese de que tal títere representa os indivíduos alienados pelo capital, enquanto a mão é o sucedâneo das relações de produção capitalistas que regem tais indivíduos de forma heterônoma, a saber, de forma infensa à sua volição.

Sim, pois é de capitalismo que se cuida: da teoria marginalista do valor econômico dessume-se que as mercadorias de valor de uso inaudito, ou de utilidade elevada, são mais valiosas, mas o mesmo acontece com as mercadorias ilícitas, que ensejam vultosos lucros ao capital, digamos, criminoso. 

Ora, malgrado católicas, as famílias mafiosas torturam e assassinam em nome desses lucros exorbitantes; isto é, o capital, conquanto ilícito, rege e manipula tais famílias, os títeres da logomarca acima mencionada, contra suas crenças religiosas cristãs.

Como diria Marx, a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova, e o sonho capitalista americano pode converter-se, então, em pesadelo de matança desenfreada. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

sábado, 16 de novembro de 2024

CINEMA: A ESTRADA PERDIDA, DE DAVID LYNCH.

Há uma película cinematográfica desprezada, de certa forma, pela crítica especializada, mas que, no meu humilde modo de entender, está destinada a se convolar em clássico atemporal: cuida-se do filme intitulado "A estrada perdida" (Lost Highway, no original em inglês) de 1997, realizado por David Lynch, consagrado cineasta estadunidense.

Sob a sombra do lendário britânico Alfred Hitchcock, cuja obra "Um corpo que cai" (Vertigo, no idioma original) é homenageada na personagem da atriz Patricia Arquette (cuja cabeleira muda de cor, como aquela de Kim Novak em Vertigo), David Lynch oferece-nos uma profunda reflexão estética sobre a faceta mimética das artes.

Nesse diapasão, cabe aduzir que Pablo Picasso operou uma revolução abrangente ao romper com o figurativismo clássico, pois, evidenciando que a tela plana de sua obra pictórica não encerra a dimensão da profundidade, pintou figuras que são vistas de vários ângulos e perfis ao mesmo tempo, rompendo com a veleidade de mimetizar tal profundidade em seus quadros.

David Lynch, por seu turno, no filme em testilha, encetou uma ruptura revolucionária da veleidade cinematográfica de reproduzir a dimensão do tempo, supostamente inerente ao cinema. 

Sim, a película de Lynch exibe um tempo circular, não linear, em que a narrativa termina da mesma forma como começa, malgrado de forma invertida, e rompe com o princípio da identidade individual de suas personagens, que se transformam em outras tantas ao longo de um enredo alucinatório. 

Logo, Lynch convida-nos, com sua obra, a refletir sobre a natureza do tempo: seria uma dimensão objetiva como aquela descrita por Albert Einstein, que colima o movimento relativo dos corpos, ou uma dimensão subjetiva consoante retratada por Henri Bergson, que destaca a memória como promotora da identidade individual? 

Enfim, "A estrada perdida" é uma obra underrated até o momento, mas talvez o curso do tempo (ops!) o converta em clássico atemporal.



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

SALÁRIO MÍNIMO E REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO

Consoante muito bem enfatizado pelo companheiro EDUARDO BELLANDI, que, apesar de tudo, ainda contribui significativamente com o debate no âmbito deste NÚCLEO DE ESTUDOS DO CAPITAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES, a adoção da redução da jornada de trabalho, ora em discussão, não surtirá os efeitos aguardados e poderá restar falaciosa, e mesmo um grande fiasco, se não for acompanhada por uma política pública de preservação do poder aquisitivo real do salário mínimo, ou de aumento real de seu poder de compra diante da inflação. 

Sim, eventual redução do desemprego, em resposta à contração da jornada de trabalho, de nada servirá sem a correspondente expansão da massa salarial real e da demanda efetiva dela decorrente, tornando inócua e anulando a medida legal ora em comento. 

Logo, o pacote fiscal, a ser proposto em breve pelo ministro Fernando Haddad, deve incorporar, e não afastar, uma política publica de preservação do valor real do salário mínimo diante da inflação, e não deve em hipótese alguma instituir sua eventual "desindexação" perante a carestia, pois somente assim reduzirá os gastos estatais com benefícios sociais, por exemplo, redução esta que se mostra infensa ao fenômeno inflacionário.  

Lamentavelmente, quer nos parecer que o PSOL da deputada Erika Hilton exibe-se hodiernamente mais vanguardeiramente proletário do que o meu sempre estimado Partido dos Trabalhadores.

Como dizem os franceses, c'est dommage. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

GUERRAS NAS ESTRELAS

 Uma das franquias midiáticas mais influentes da história do audiovisual é, sem embargo, a saga das Guerras nas Estrelas, de George Lucas.


Ali vemos o soft power do imperialismo estadunidense em todo o seu vigor:


Com efeito, trata-se da luta da democracia contra a tirania, isto é, das forças do bem contra as forças do mal, numa alusão velada da guerra dos Estados Unidos contra os assim denominados Estados terroristas ou autocráticos como Irã, Coreia do Norte, Cuba, China etc.


Mas o êxito retumbante da franquia reside mesmo é no complexo edipiano subliminar que veicula:


O conflito entre Darth Vader e seu filho Luke Skywalker, mais do que uma luta entre tirania e democracia, representa o complexo edipiano universal do filho contra o pai tirano.


Uma combinação exitosa entre política e psicanálise!


Irresistivelmente manipuladora!





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO

A redução da jornada de trabalho constitui reivindicação histórica da classe trabalhadora que pode beneficiar o conjunto da sociedade de forma didática e pedagógica, senão vejamos:

Ela reduz o desemprego e aumenta a massa salarial, com ampliar a demanda efetiva e reduzir, assim, os gastos sociais estatais, o que mitiga destarte a pressão inflacionária e propicia redução das taxas de juros.

Tal redução das taxas de juros, por seu turno, reduz o custo do capital e, assim, compensa eventual diminuição da taxa de lucro, diminuição esta que, como muito bem destacado por LINCOLN SECCO, nem sequer se mostra provável se considerado um prazo longo, pois o capital tem historicamente auferido os ganhos de produtividade em maior escala do que a classe trabalhadora.

Em um país que exibe a pior distribuição de renda do mundo e taxas de juros asfixiantes, a redução da jornada de trabalho será benfazeja para todos. 



por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador, que hauriu tais ideias, conquanto incipientes, das discussões no NÚCLEO DE ESTUDOS DO CAPITAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES. 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

TRUMP, LULA E A REINDUSTRIALIZAÇÃO

Aduzi alguns dias atrás que a vitória hodierna de Donald Trump resulta diretamente da revolução digital em curso, mas isto está apenas parcialmente correto.

Com efeito, malgrado Trump seja fruto da ascensão do Vale do Silício, ele venceu no Cinturão da Ferrugem e perdeu na Califórnia, o que impõe certa lapidação do exame aqui proposto.

Sem embargo, parece ter havido uma reconfiguração da divisão internacional do trabalho com a indústria manufatureira deslocando-se para a China e outras partes da Ásia, enquanto os Estados Unidos, com a decadência do Cinturão da Ferrugem e a ascensão do Vale do Silício, perderam competividade e vantagens comerciais no setor manufatureiro, o que pesa sobremodo na sua balança comercial. 

A campanha eleitoral vitoriosa de Trump, pois, mais do que exaltar a revolução digital de que seu país é vanguarda, exibiu-se uma proposta de reindustrialização estadunidense no setor manufatureiro para reverter essa nova divisão internacional do trabalho que impõe desvantagens na balança comercial norte-americana. 

Aqui no Brasil, a situação é mais complexa, pois o país desindustrializou-se, com a decadência do ABC paulista, mas não foi palco de uma revolução digital como nos Estados Unidos, pois regrediu até o predomínio econômico do setor primário da agricultura.

A reindustrialização brasileira, pois, deve ter duas vertentes: setor manufatureiro e setor de tecnologia digital.

É um grande desafio para o atual governo Lula. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

domingo, 10 de novembro de 2024

ESPECULAÇÕES SOBRE REVOLUÇÃO DIGITAL E TAXA DE LUCRO

 A hodierna revolução digital, que entronizou a produção industrial da mercadoria consubstanciada no software, provavelmente envolveu uma diminuição da composição orgânica do capital ao subverter a acepção clássica de planta fabril, com introduzir o trabalho em "home office" como uma das formas de organização possível do processo produtivo.

Todavia, também a taxa de mais-valia provavelmente diminuiu, em razão do aumento do valor da força de trabalho determinado pela exigência de sua maior qualificação intelectual, com demandar maior tempo de sua formação no âmbito escolar. 

O aumento do valor da força de trabalho pode, por óbvio, também ter reflexo na diminuição da já aludida composição orgânica do capital.     

Logo, é mister investigar qual a amplitude da queda na composição orgânica do capital em relação à amplitude da queda da taxa de mais-valia para deduzir como se comporta atualmente a taxa de lucro do capital. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

TEORIAS DO VALOR E TAXAS DE LUCRO

Parece haver um pêndulo histórico entre as teorias marginalista e marxista do valor econômico, de tal sorte que a primeira incide nos momentos em que os lucros são predominantemente extraídos no processo de circulação de capital, enquanto o marxismo incide nas épocas de lucros auferidos predominantemente no processo de produção de capital, senão vejamos:

No período manufatureiro da Idade Moderna, quando prevalece o mercantilismo e o antigo sistema colonial, os lucros são auferidos basicamente no processo de circulação de capital mediante as diferenças de preços, nos distintos lugares, dos valores de uso exóticos, prevalecendo a teoria marginalista do valor econômico.

Com o advento da maquinaria e grande indústria na revolução industrial inglesa do século XVIII, passa a prevalecer a teoria marxista do valor econômico, com extração de lucro basicamente no processo de produção de capital, sem alterações importantes nos valores de uso e, portanto, no processo de circulação de capital. 

Com a segunda grande revolução industrial entre os séculos XIX e XX, volta a prevalecer a teoria marginalista, eis que há importantes inovações nos valores de uso e no processo de circulação de capital com a adoção em larga escala da eletricidade, de tal sorte que os lucros são auferidos eminentemente neste processo de circulação. 

Hipóteses sub judice. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

sábado, 9 de novembro de 2024

REVOLUÇÕES INDUSTRIAIS E TAXA DE LUCRO

A revolução industrial inglesa do século XVIII, como vimos, incidiu basicamente sobre o processo de produção de capital, sem engendrar novos valores de uso.

Nesse caso, o esperado declínio da taxa de lucro do capital industrial foi arrostado mediante os preços das mercadorias envolvidas, máxime vestuário, inferiores ao seu valor, mas superiores ao tempo de trabalho necessário à sua produção para o capitalista individual, atribuindo vantagem comercial aos industriais ingleses sobre a velha manufatura no mercado internacional, nos moldes preconizados no capítulo décimo do livro primeiro de O Capital de Karl Marx.

A segunda revolução industrial, entre os séculos XIX e XX na Europa e nos Estados Unidos, trouxe alterações nos processos produtivos com a adoção em larga escala da eletricidade, mas também incidiu no processo de circulação de capital com a introdução de novos valores de uso, como eletrodomésticos e automóveis, abroquelando vários setores da economia. 

Nesse caso, a esperada queda dos lucros industriais foi arrostada pelos preços elevados em decorrência precisamente do caráter inédito dos novos valores de uso introduzidos, em consonância com a teoria marginalista do valor econômico.

São hipóteses e conjecturas para discussão.




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.    

PRODUÇÃO INDIVIDUALIZADA

É mister constatar o quanto segue:

A revolução industrial inglesa do século XVIII pouco alterou o valor de uso das mercadorias nela envolvidas, máxime quanto ao vestuário, mas as demais revoluções industriais do capitalismo envolveram alterações nos valores de uso das mercadorias no seguinte sentido:

A revolução industrial entre os séculos XIX e XX engendrou maquinário para uso individual ou familiar, máxime eletrodomésticos e automóveis, individualizando processos produtivos e de serviços. 

O mesmo pode ser verificado na atual revolução digital, com seus computadores pessoais e telefones celulares, bem assim com certa substituição das plantas fabris clássicas pelo assim denominado "home office".

Entrementes, verifica-se que o modo capitalista de produção não incide apenas na contínua revolução dos meios de produção, mas também dos meios de consumo, com engendrar continuamente novos valores de uso que individualizam o processo produtivo. 




por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

DEMOCRACIA E EMPIRISMO

O individualismo é fruto direto da propriedade privada dos meios de produção, malgrado seja comezinho que o indivíduo não pode ser apartado e dissociado da sociedade atual em que vive e das gerações que o precederam e engendraram.

Já vimos aqui neste portal que a democracia liberal burguesa, com seus princípios basilares de representação política e liderança por indivíduos, é resultante de tal ideologia individualista, mas é mister postular que o empirismo epistemológico compartilha a mesma natureza ideológica de tal individualismo.

Sim, o universo empírico e suas evidências não encerram o condão de revelar de forma imediata toda a verdade epistêmica, conquanto constituam uma etapa necessária da ciência, mas devem ser raciocinados e cotejados com o conhecimento científico precedente e historicamente acumulado.

Não por acaso, a teoria marxista do valor e da mais-valia, verbi gratia, não se revela imediatamente nos movimentos dos preços das mercadorias e do dinheiro, mas resulta de uma crítica historicamente instruída da economia política burguesa, a qual, empirista e individualista, amarra-se precisamente aos preços e ao dinheiro. 

Democracia liberal e empirismo consistem, pois, em duas facetas do mesmo individualismo de jaez eminentemente burguês. 





por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

TRABALHO E PROCRIAÇÃO

Consoante já ventilamos nesta plataforma digital, a produção e reprodução da vida material humana efetua-se por duas vertentes, a saber: 

1. O trabalho, por intermédio do qual são mantidas relações de produção ou de propriedade que fraturam a espécie do homo sapiens em classes sociais antagônicas, tais como aquelas que representam hodiernamente o capital e o trabalho assalariado, e que por isso produz habitualmente dor e sofrimento;

2. A procriação ou reprodução biológica, através da qual é garantida a continuidade da espécie humana como um todo homogêneo e desprovido de fraturas por classes sociais, e que por isso produz habitualmente satisfação e prazer.

A grande tarefa que se impõe atualmente aos seres humanos consiste em converter o trabalho em atividade também prazerosa e satisfatória mediante a supressão das classes sociais e das relações de produção ou de propriedade que as alimentam, com o resultante resgate da dignidade de tal trabalho pela abolição da exploração do homo sapiens pelo homo sapiens.



POR LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

O AMOR SEGUNDO ISAAC NEWTON

 Na produção e reprodução de sua vida material, os seres humanos atuam em duas vertentes, a saber: o trabalho, reproduzindo as relações econômicas ou de propriedade; a procriação ou reprodução sexuada, reproduzindo a própria espécie humana.


A grande maioria dos indivíduos atua, no entanto, com ênfase nesta segunda vertente, fornecendo sua contribuição à história da humanidade mediante produção de filhos, e esta é uma ênfase que garante um sucesso mais fácil de lograr.


Destacar-se na primeira vertente, oferecendo contribuição duradoura à história econômica da humanidade, parece escolha mais arriscada e perigosa, mais difícil do que a procriação.


Pois bem, Sir Isaac Newton apostou todas as suas fichas na contribuição duradoura para a história econômica da humanidade e logrou êxito, convertendo-se no maior cientista que esta humanidade já conheceu, mas não procriou.


Um herói gigante que amava a humanidade!




Por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

INDIVIDUALISMO

 O liberalismo é individualista, mas o indivíduo nada representa fora da sociedade em que vive na atualidade e apartado das gerações precedentes que o engendraram.


Tal individualismo reflete-se na forma política da democracia burguesa, que está lastreada na acepção da representação, em que indivíduos são escolhidos para liderar a nação.


Tal democracia política será substituída pela democracia econômica do comunismo, em que todos os indivíduos serão contemplados em suas necessidades e potencialidades, sem mediação pela representação política, mas diretamente através do governo impessoal da planificação econômica descentralizada, pressuposta a propriedade coletiva dos meios de produção.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

DONALD TRUMP

Karl Marx ensinou-nos a investigar na infraestrutura econômica das relações de produção o segredo mais recôndito da superestrutura política, então vejamos. 

Donald Trump é um fenômeno político típico da hodierna revolução industrial digital, que encerra como epicentro precisamente a economia estadunidense, vanguardeira na produção da mercadoria por excelência de tal revolução industrial, a saber, o software, cujo produto mais avançado atualmente consiste na assim designada inteligência artificial.

Tal revolução trouxe como sua faceta mais evidente a adoção em larga escala do trabalho assalariado eminentemente intelectual, que mitigou a clássica divisão do trabalho entre trabalhadores manuais (proletariado) e trabalho intelectual (capital), culminando no fenômeno ideológico de certa identificação do proletariado eminentemente intelectual ou digital com o patronato também intelectual, no atual discurso ideológico do empreendedorismo, bem assim no fenômeno político do neofascismo, que nega a existência da distinção entre classes sociais e suas lutas políticas. 

Nos Estados Unidos da América, especificamente, o Vale do Silício, da indústria digital, substituiu o Cinturão do Ferrugem, da clássica indústria de transformação, na vanguarda industrial e econômica, o que resultou no advento do fenômeno político do neofascista Donald Trump, hoje sagrado eleitoralmente vitorioso. 



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador. 

terça-feira, 5 de novembro de 2024

ESPECULAÇÕES SOBRE UMA APORIA

Segundo Marx, o valor de dada mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho humano abstrato socialmente necessário à sua produção, mas este trabalho humano antolha-se-nos mais afeto ao trabalho assalariado, máxime o industrial, e não ao trabalho, verbi gratia, que a família despende na formação da respectiva prole.

Por isso, Marx assevera que o valor da mercadoria consubstanciada na força de trabalho não é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção e reprodução, mas sim diretamente pelo valor de uma cesta básica composta por meios de subsistência da força de trabalho. 

Haveria aí uma real aporia ou contradição na teoria marxista do valor?

É mister destacar que Marx estudou basicamente o capital da primeira grande revolução industrial, a inglesa do século XVIII, quando a força de trabalho ainda era eminentemente manual e não intelectual, com reduzida qualificação exigida, portanto mais propriamente produzida no âmago familiar e não pelo trabalho assalariado e abstratamente intelectual dos professores no âmbito escolar.

A atual revolução industrial digital, todavia, exige uma evidente qualificação intelectual da força de trabalho, máxime na produção da sua mercadoria por excelência, o software, portanto a força de trabalho, hodiernamente, exibe-se sim produto do trabalho assalariado, aquele dos professores no âmbito escolar, de tal sorte que a aporia acima descrita resolve-se, eis que agora a mercadoria consubstanciada na força de trabalho é realmente produzida pelo trabalho humano abstrato, isto é, o trabalho assalariado intelectual dos professores.

Quer nos parecer, pois, que a aparente aporia ou contradição acima aduzida torna-se evanescente à medida que a força de trabalho torna-se mais eminentemente intelectual, sendo produto do trabalho intelectual dos professores e tendo como mercadoria por excelência um produto também eminentemente intelectual, o software, bem assim um dinheiro também digital ou intelectual.

Nessa economia capitalista eminentemente intelectual, as aporias ou contradições aparentes na teoria marxista do valor tornam-se, pois, evanescentes, ou em vias de desaparecimento.

Karl Marx era, sem nenhum embargo, um visionário. 

Hipóteses sub judice, para discussão.



por LUÍS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.    

sábado, 2 de novembro de 2024

EDUCAÇÃO E INDÚSTRIA DIGITAL

Consoante já muito bem ressaltado nesta plataforma digital pelo companheiro LINCOLN SECCO, professor de história da Universidade de São Paulo e membro deste núcleo temático de estudos vinculado ao Partido dos Trabalhadores, a desindustrialização brasileira é um fato consumado e irrefutável. 

Karl Marx asseverava que os países industrializados do centro do modo capitalista de produção revelam a faceta vindoura dos países da periferia deste modo de produção, parecendo lícito ventilar que os Estados Unidos da América, epicentro do capitalismo mundial hodierno, exibe a indústria mais avançada desse sistema econômico mundial, a saber, a indústria da mercadoria consubstanciada no software, cujo ápice atualmente se manifesta na assim designada inteligência artificial.

A indústria de software, todavia, demanda força de trabalho altamente qualificada sob prisma intelectual e, portanto, uma sistema educacional também altamente qualificado e voltado a tal indústria. 

Logo, uma política moderna de industrialização não dependente nem periférica, no modo de produção capitalista, demanda esforço governamental concentrado na produção industrial de software e no célere desenvolvimento do sistema educacional nacional dirigido a essa produção industrial. 

Entrementes, tal política industrial favorecerá, por óbvio, a vindoura planificação econômica descentralizada de jaez socialista lastreada em algoritmo central alimentado pela internet com dados de produção e consumo econômicos em tempo real, consoante também já aventado neste espaço. 





por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

DINHEIRO E FORÇA DE TRABALHO, parte dois.

 Parece que a manifestação do dinheiro como moeda segue a natureza da mercadoria força de trabalho.


No período da circulação simples de mercadorias, antes do advento do capital propriamente dito, a força de trabalho é eminentemente manual e física, o que se reflete na moeda metálica.


Com o advento do capital, nas duas primeiras revoluções industriais, a força de trabalho é manual e intelectual na mesma medida, o que se reflete na dualidade da moeda fiduciária ou papel moeda com lastro em metal precioso, máxime o ouro.


Com a revolução digital hodierna e o advento da força de trabalho eminentemente intelectual na produção da mercadoria software, a moeda passa a ser digital e perde seu suporte material ou metálico.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

DINHEIRO E FORÇA DE TRABALHO

 No período histórico do dinheiro enquanto circulação simples de mercadorias, a saber, anteriormente à inserção do dinheiro na compra e venda da força de trabalho, a moeda é metálica e as mercadorias exibem-se fruto do trabalho manual dos respectivos produtores.


Com o advento da força de trabalho como mercadoria, que é fruto do trabalho familiar e não industrial, o dinheiro passa a manifestar-se como moeda fiduciária ou papel-moeda, desligando-se paulatinamente da forma material equivalente às mercadorias.


Com o advento da atual revolução digital e da força de trabalho eminentemente intelectual na produção da mercadoria consubstanciada no software, força de trabalho esta que é produto do trabalho também intelectual dos professores, a moeda perde seu suporte material para se manifestar como moeda digital.


Texto para discussão.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Empreendedorismo faz parte do passado!

 Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua própria escolha, mas sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado; a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.


A sentença de Karl Marx, acima, antolha-se-nos axial: decerto a propriedade privada dos meios de produção e o individualismo empreendedor cumpriram uma função histórica no desenvolvimento das forças produtivas, constituindo um substrato econômico sobre o qual se erguerá o modo comunista de produção lastreado na propriedade coletiva dos meios de produção e na planificação econômica mundial.


O modo capitalista de produção consistiu em fase necessária do desenvolvimento econômico da história humana, mas atualmente ele a coloca em perigo: crises financeiras e ecológicas hodiernas ameaçam a própria existência da espécie humana.


O empreendedorismo individual exibe-se, pois, atualmente extemporâneo e intempestivo e, se cumpriu a sua função no desenvolvimento histórico das forças produtivas, hoje ele não suplanta o jaez de mera ideologia burguesa conservadora e retrógrada que somente reproduz o atual estado de coisas periclitante.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

REVOLUÇÃO DIGITAL E DIVISÃO DO TRABALHO

A hodierna revolução digital, ao promover a adoção em larga escala do trabalho assalariado eminentemente intelectual na produção de software, atenuou, como anteriormente postulado, a linha limítrofe clássica entre o trabalho manual (proletariado) e o trabalho intelectual (capitalistas).

Promoveu, ainda, uma profunda fissura no âmago da classe operária, composta agora por uma aristocracia de trabalhadores assalariados eminentemente intelectuais, suscetíveis de mobilização pelo fascismo e atual ideologia do empreendedorismo, que se opõe ideologicamente aos clássicos trabalhadores assalariados eminentemente manuais da indústria fabril.

Encetou, ainda, uma nova divisão internacional do trabalho, com o centro do sistema capitalista mundial, liderado pelos Estados Unidos, caracterizado pela produção de software sofisticado, como a inteligência artificial, e uma periferia consumidora de desse produto e ainda dependente do trabalho eminentemente manual da indústria fabril tradicional. 

Hipótese sub judice



por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

DINHEIRO E CAPITAL

 Anteriormente ao advento do capital propriamente dito, que extrai mais-valia diretamente do processo de produção, os mercadores detentores do dinheiro extorquem mais-valia ou excedente no processo de circulação de mercadorias, comprando barato e vendendo caro como no denominado antigo sistema colonial, o que exaure o âmbito produtivo e determina crise de subprodução, que conduziu ao declínio do Império colonial ultramarino ibérico.


Com a inserção do dinheiro na produção, mediante compra e venda da mercadoria consubstanciada na força de trabalho pelo capital propriamente dito, a mais-valia agora é extraída do processo de produção, o que determina crises de superprodução como descritas por Rosa Luxemburgo.




Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

UMA HIPÓTESE MONETÁRIA

A existência do dinheiro, a saber, o fenômeno monetário decorre diretamente da dissociação entre produção e consumo, nomeadamente da diminuta velocidade de circulação de mercadorias e de capital, de tal sorte que, quanto maior a velocidade supracitada, menor a necessidade e a quantidade de dinheiro circulante, bem assim mais independente de um suporte material exibe-se o dinheiro, que de moeda metálica evoluiu para as modernas moedas digitais. 

Anteriormente à sua inserção no âmbito da produção como capital propriamente dito, o dinheiro beneficiava-se da reduzida velocidade da circulação de mercadorias e ensejava a extração de mais-valia mediante as variações de preços dos distintos valores de uso, com os mercadores comprando barato e vendendo caro, de tal sorte que, quanto menor a velocidade de circulação de mercadorias, maior era a mais-valia extorquida.     

Com o advento do capital propriamente dito, a saber, do dinheiro na compra e venda da força de trabalho, inserindo-se no âmbito da produção de mercadorias, a relação supracitada inverte-se, de tal maneira que quanto maior a velocidade de circulação de mercadorias ou de capital, maior a taxa de lucro do capital industrial, em razão da diminuição dos faux frais

A atual revolução digital aumentou a velocidade de circulação de capital e incrementou, assim, a taxa de lucro do capital industrial.

Hipótese sub judice.




por LUIS FERNANDO FRANCO MARTINS FERREIRA, historiador.  

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

ELEIÇÕES DE 2024 NO BRASIL

 Peço licença pra ventilar uma hipótese sobre o pífio desempenho da esquerda nas eleições:


A difusão em larga escala do trabalho assalariado eminentemente intelectual, máxime na produção de software, abalou a divisão social do trabalho entre assalariados e capitalistas, tornando tênue a linha limítrofe entre eles: uma mudança industrial que se reflete na crise da CLT e difusão da ideologia do empreendedorismo, com a identificação ideológica entre empregado e empregador!


Vamos ter que lidar com esse problema!


Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.


sábado, 19 de outubro de 2024

ECONOMIA INTELECTUAL

 O advento da adoção em larga escala do trabalho assalariado eminentemente intelectual subverte um dos pilares da divisão capitalista do trabalho, a saber, a oposição entre trabalho intelectual (capital) e trabalho manual (trabalho assalariado), com decorrente subversão, também, da oposição entre processo de produção de capital e processo de circulação de capital, inclusive com advento do dinheiro digital ou intelectual.


A difusão em larga escala das formas intelectuais do trabalho assalariado, da mercadoria (enquanto informação) e do dinheiro torna exequível o advento vindouro da planificação econômica socialista descentralizada, lastreada em algoritmo central mundial alimentado pela internet com todos os dados de produção e consumo mundiais, que encerrará a função de coadunar oferta e demanda econômicas, presumida a propriedade coletiva dos meios de produção.






Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Brevíssima filosofia do valor econômico.

 Já tive a oportunidade de ventilar que a dicotomia platônica entre corpo e alma constitui fundamento do duplo caráter da mercadoria como valor de uso e valor de troca, estabelecido por Marx.


Tal duplicidade mercadológica, por seu turno, engendrou a dissociação entre marxismo e marginalismo quanto à teoria do valor, parecendo lícito destacar que o primeiro focaliza o aspecto abstrato, quantitativo e objetivo da mercadoria, enquanto o outro ressalta o jaez concreto, qualitativo e subjetivo da mesma mercadoria.


A determinação final do valor da mercadoria, todavia, parece incorporar um amálgama das duas teorias supracitadas, com a teoria marxista do valor incidindo no processo de produção de capital, enquanto a teoria marginalista funciona no processo de circulação de capital.


Faz-se mister aduzir ainda que a primeira revolução industrial, no final do século XVIII, incidiu basicamente no valor de troca das mercadorias, sem modificar substancialmente seu valor de uso, enquanto a segunda revolução industrial dos estertores do século XIX alterou a ambos, engendrando novos valores de uso e novos processos de trabalho com a adoção intensiva da eletricidade.


A atual revolução digital também atua nos processos de produção e de circulação de capital, com repercussão nos valores de troca e de uso das mercadorias, mas implicou uma novidade ainda a ser investigada com profundidade:


A utilização intensa do trabalho assalariado eminentemente intelectual, com grandes alterações na mercadoria força de trabalho.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

sábado, 28 de setembro de 2024

BREVE SERMÃO DO OURO: EXÓRDIO.

 A assim denominada civilização ocidental repousa impavidamente sobre duas pilastras monumentais que correspondem, no âmbito conceitual, à dicotomia de jaez platônico entre corpo e alma, razão pela qual se costuma aquiescer que a história da filosofia jamais logrou efetivamente transcender o estatuto de mero apanhado de glosas marginais ao discurso de Platão, asserção com a qual me disponho em plena concordância, ressalvada a objeção de que uma de tais glosas, publicamente conhecida como materialismo histórico e dialético, merece o honroso crédito de ter haurido a façanha de descortinar o segredo prático de tais pilares civilizatórios ao identificar, no duplo aspecto da categoria econômica da mercadoria enquanto valor de uso e valor de troca, os seus componentes, respectivamente, concreto e abstrato, ou, se assim o preferirem, corporal e anímico, cabendo, todavia, assinalar que este último aspecto da supracitada mercadoria alcança invariavelmente um patamar em que, ao se destacar do outro aspecto, passa a compor algo aquinhoado com o condão de equivaler a qualquer coisa, a saber, de se convolar em qualquer produto do engenho humano: o dinheiro.

Como alma dissociada do corpo, o dinheiro, contudo, adquiriu pioneiramente, na história econômica, a forma de metal precioso, notadamente de ouro, malgrado hodiernamente tenha desinibido seu caráter abstrato e anímico nas moedas digitais ou criptomoedas, que prescindem de suporte físico para funcionar, parecendo lícito ventilar que, no ser humano, a respectiva alma também encerra dotes monetários, tanto que Fausto alienou-a para Mefistófeles em troca de poderes mundanos, mas para os propósitos que nos interessam mais imediatamente neste momento, basta observar que o conspícuo artista barroco de alcunha Aleijadinho, de saudosa memória, adornou seus templos abundantemente com tintas douradas, decerto para registrar que o ouro, cor do dinheiro, marca indelevelmente o edifício religioso com a faceta mais insondável da alma.

O discurso que segue colima oferecer um lampejo de biografia desse artista mineiro.




Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

MEMÓRIAS

 O COLÓQUIO DAS PEDRAS


(por Luis Fernando Franco Martins Ferreira, historiador e advogado)


Acredito piamente que poucas crianças tiveram, como eu tive, o exuberante privilégio de conviver com um amoroso e longevo avô versado nas artes do ilusionismo mágico e da ventriloquia, mas tal universo é decerto ainda mais restrito se o ascendente nasceu em um logradouro completamente envolto em histórias místicas e assombradas como a região das cidades barrocas do sul de Minas Gerais.


Eu ostentava já meus sete ou oito anos de idade quando, nas férias, fui conduzido por meus pais a visitar pela primeira vez essa região encantada do Brasil, e não poderia ter antes imaginado que tal experiência lograria escavar sulcos indelevelmente profundos na tábua rasa da minha então incipiente personalidade.


Elegeu-se como parada inicial da viagem, naturalmente, a cidade de São João del-Rei, berço de meu avô, onde ficamos hospedados por dois ou três dias na casa de sua vetusta prima de alcunha Sinhana, uma senhora robusta e de temperamento marcante que lutara com seu falecido marido nas campanhas da Revolução de 1932, sendo interessante notar que a modesta mas bem cuidada residência situava-se significativamente defronte uma praça onde repousava orgulhosa uma belíssima peça de artilharia antiga esculpida em metal já então oxidado. O problema axial consistia, entretanto, no fato de que aquela anciã de gestos largos e impetuosos metia-me um medo incontornável, parecendo-me verossímil que ela pudesse, em sua epidérmica loucura, golpear-nos sorrateiramente durante o sono noturno com a velha espingarda que mantinha guardada em casa, de tal sorte que as noites passadas naquela assustadoramente provecta cidade foram para mim de vigília e insônia.


Nada obstante, os passeios diurnos que empreendemos durante tal estada em São João del-Rei mostraram-se bastante animados e, diria mesmo, de uma inolvidável magia, máxime nas visitas aos antigos amigos de infância de meu avô, que nos acompanhava nessa viagem e desempenhava o importante papel de anfitrião e cicerone.


De proêmio, visitamos o solar dos Viegas, uma mansão em estilo arquitetônico colonial e de chão feito de longuíssimas tábuas de madeira que rangiam solenemente sob a pressão de nossos passos, cujo antigo dono e patriarca da família, José Viegas, inventara e patenteara um tinteiro que evitava o derramamento de seu conteúdo mesmo quando mantido aberto de cabeça para baixo. Sua quase centenária esposa, dona Celina Viegas, que fora professora de meu avô no primário e já não podia valer-se muito dos sentidos da audição e da visão, vencia airosamente a cegueira com os dedos finos por meio dos quais tateava e tramava magníficas e opulentas colchas de crochet.


Depois visitamos o senhor Guerra, que mantinha com galhardia o único cinema da cidade, bem como o senhor Lauro Novais, morador do pioneiro prédio com elevador do lugar e cujo misterioso e recluso filho não aparecia para ninguém que chegasse em sua casa.


Por derradeiro, fomos reconhecer, no passeio mais emocionante, o teatro municipal de São João del-Rei, onde outrora minha mãe, quando ainda criança, desincumbira-se como bailarina de personagem característico da obra “O quebra-nozes” de Tchaikovsky. Ela contou-nos que o frio na ocasião era intenso e a roupa muito apertada, o que não a impediu, porém, de desenvolver com majestade uma coreografia em que botões de rosa desabrochavam ao suave toque da vara de condão por ela manejada. A fotografia desse evento, com minha mãe posando com roupa e sapatilhas de balé, é desses ícones constitutivos do imaginário perene de uma pessoa.


Mas embrenhamo-nos também nas variegadas igrejas do período colonial, componentes do cenário de arraigado catolicismo que caracteriza a cidade e seu povo, quando então tive a oportunidade de travar contato inicial com o nome de Antônio Francisco da Costa Lisboa, vulgo Aleijadinho, sem embargo o mais notável artista do barroco mineiro e quiçá mundial, cujo templo dedicado a São Francisco de Assis, máxime o retábulo de sua capela-mor, com seus detalhes retorcidos banhados em ouro, exibe a aptidão francamente sobrenatural de conduzir-nos diretamente ao céu. Foi aí que eu privei com Deus por vez primeira, foi então que eu conheci e provei os consectários do poder inebriante da religião católica, tão exaltados naquela obra-prima da arte tipicamente barroca, cujo caráter foi rigorosamente escrutinado pelo filósofo Gilles Deleuze ao investigar o pensamento de Leibniz no inspirado livro intitulado “A dobra”.


Essa comoção sobrenatural ínsita ao barroco mineiro eu experimentei novamente durante a procissão pelos grandes portais representativos dos passos da Paixão de Cristo, característica das festividades que inescapavelmente acompanham a Semana Santa em São João del-Rei, sendo certo suscitar que, para uma criança de sete anos de idade, tal turbilhão emocional faz impregnar durante muito tempo, senão permanentemente, a religião no mais recôndito e inexpugnável canto de seu átrio esquerdo.


E eu retornei ao céu alguns dias mais tarde, diante dos doze profetas bíblicos, em pedra-sabão, esculpidos pelo mesmo Aleijadinho para compor o proscênio do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos na cidade de Congonhas do Campo, distante alguns quilômetros de São João.


Tão vívida e impressionante foi a experiência de conhecer esse Santuário e suas estátuas fulgurantes que, quando retornamos à noite para o hotel de Congonhas onde fincamos hospedagem, eu fui inexoravelmente compelido a desenhar de memória a assombrosa figura do profeta Daniel afagando o nefasto leão em seu entorno. Tinha sido demasiada aquela visita, comovera-me até às lágrimas, pois eu não imaginava que se pudesse conceber e extrair tamanha beleza de pedra bruta. Eu desenhei o profeta Daniel segundo Aleijadinho porque qualquer tentativa de verbalizar a emoção seria ociosamente malograda, e em dado momento dei-me conta de que especulava de forma solitária e em silêncio se Deus poderia conferir vida àquela escultura, dotando-a de alma e fala.


Eu pensei com minha lógica pueril que, se meu avô, mero mortal, podia de certo modo atribuir vida a seus bonecos de madeira pela ventriloquia, concedendo-lhes movimento e fala, então o onipotente Deus seria capaz de fazer viverem as esculturas de pedra-sabão, que é material mais duro, e portanto mais impermeável à penetração da alma do que a madeira. Seria uma mera questão de fazer soprar o Verbo Divino naquelas estátuas.


Muito mais tarde, quando meu avô, aos noventa e quatro anos de idade, despediu-se deste mundo, eu fui contemplado com seu legado mais interessante, consistente em dois bonecos de madeira para ventriloquia e um desconhecido livro antigo.


Os bonecos eram meus velhos conhecidos, os quais tinham, em suas longas carreiras de encantamento de milhares de crianças, logrado sucesso retumbante, mas já estavam aposentados há algum tempo, conquanto em perfeito estado de conservação. O primeiro deles respondia pelo apelido de Peleco, e mimetizava um moleque afrodescendente de olhos esbugalhados e beiços proeminentes, enquanto o outro, de nome Nicolau, correspondia a uma cabeça perolizada de um velho de barbas brancas confinada em uma caixa preta quadrangular que abria e fechava na parte frontal. No meu sentir, cuidava-se de dois personagens comicamente míticos, o que pode lançar uma pequena ideia do regozijo que foi recebê-los como herança de um avô igualmente mitológico, conquanto de carne e osso.


A derradeira parte do legado veio-me na forma de um misterioso e velho livro editado ainda no século dezenove, em bom estado e de capa dura feita de couro, em cujo frontispício lia-se, em letras douradas, o instigante título “Breve relato dos colóquios entre o Aleijadinho das Minas Gerais e seus doze profetas de pedra-sabão”.


Estarrecido e atordoado na primeira vez que tive essa obra em minhas mãos, pus-me a compulsar seu conteúdo incontinenti, o qual versava sobre as conversas que, supostamente, o grande e deformado artista barroco mineiro mantinha com seus doze videntes de pedra durante as noites de lua cheia. Para meu espanto e surpresa, o colóquio inaugural do livro, de autoria desconhecida, era precisamente com a escultura do profeta Daniel.


“O rei babilônico Nabucodonosor sonhou com uma estátua e com uma árvore, e eu revelei-lhe os significados de tais visões, mas para você os significados são diversos”, disse o profeta Daniel feito de pedra, ao dirigir-se ao seu criador.


“Conte-me tudo, por favor ”, pediu Aleijadinho.


“A estátua de que lhe falei era resplandecente e feita de ouro, prata, bronze e ferro, mas os pés eram feios de uma mistura de barro e ferro. Uma pedra soltou-se espontaneamente da montanha e caiu sobre os pés da estátua, reduzindo-a a pó”, falou Daniel.


“Mas o que isso significa?”, indagou Aleijadinho.


“Você fez-me uma estátua de pedra, a mesma pedra que destruiu a estátua de pés de barro do rei babilônico, então o arrasador confunde-se com o arrasado, mas como eu sou feito de pedra, nada poderá destruir-me. No entanto, a pedra do sonho de Nabucodonosor transformou-se numa grande montanha, então eu voltarei um dia a ser parte das montanhas mineiras”, explicou Daniel.


“E a árvore?”, perguntou o artista.


“O anjo-vigia derrubou a imensa e frondosa árvore, cortou seus galhos, tirou as folhas e jogou fora as frutas, espantando os animais que estavam descansando na sua sombra e as aves que estavam nos seus galhos, sendo certo que o toco e as raízes remanescentes viraram um homem. Você é esse anjo-vigia que mata a árvore e com ela faz santos e messias inanimados”.


Anos mais tarde, fui revisitar Congonhas do Campo colimando falar com a estátua do profeta Daniel.


“Converse comigo, por favor”, exorei ao Daniel de pedra-sabão, numa noite fresca de lua cheia.


Mas ele jamais respondeu-me.


(dedico este conto à memória de meu avô Alcides Franco da Silva)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Caio Prado e Gilberto Freyre

 Já tive a oportunidade de obtemperar que a dicotomia platônica entre corpo e alma está arraigada na dupla faceta da mercadoria como valor de uso e valor de troca, que se desdobra historicamente na divisão do trabalho entre produção e circulação de mercadorias, ou entre produção e dinheiro, que por sua vez se fratura entre trabalho manual e trabalho intelectual.


Pois bem, Caio Prado Júnior debruçou-se sobre a circulação de mercadorias no dinheiro, descortinando pioneiramente aquilo que Fernando Novais denominará “antigo sistema colonial”, ao passo que Gilberto Freyre estudou o universo do trabalho, isto é, o primeiro investigou as relações de produção, enquanto o outro estudou as relações interpessoais.


A superioridade da abordagem de Caio Prado decorre simplesmente do fato de que o dinheiro domina o setor produtivo, de tal sorte que a circulação de mercadorias sobrepunha-se à produção de mercadorias na época colonial no Brasil.





Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira, historiador.

domingo, 8 de setembro de 2024

A URDIDURA DO TAPETE

 Por Luís Fernando Franco Martins Ferreira

 

Para Marcia, com amor, sempre.

 

“É doce morrer no mar

Nas ondas verdes do mar”

(Dorival Caymmi e Jorge Amado)

 

 

 

 

 

Envolto e embriagado pela tão lancinante quanto singela poesia da canção em epígrafe, o circunspecto B, com suas sobrancelhas já grisalhas por mais de meio século de uma existência parcialmente estigmatizada pelas afecções da alma, encetou a obtemperar acerca da extinção por asfixia, e o curso de suas elucubrações foi então arrebatado pela reminiscência de sua tenra infância nos idos da década de 1970, quando ainda padecia, lamentavelmente, de graves episódios de asma cuja etiologia alérgica associava-se, decerto, aos cuidados extremos de uma maternidade marcada pelo amor incondicional, parecendo lícito ventilar que esta hipótese diagnóstica, todavia, exibe-se carecedora de evidência irrefutável, porquanto consistente em mera conjectura leiga consoante a qual o sistema imunológico pode descompensar pela ausência de exposição mínima a agentes patológicos nos momentos iniciais da história individual, de tal sorte que, malgrado a inspiração do exímio poeta já aludido, a suposta doçura do óbito por insuficiência respiratória parece existir somente como oxímoro e metáfora, pois a sensação de falta de oxigênio, seja no mar ou em terra firme, como experimentara B em diversas ocasiões maculadas pela crise asmática, não guarda rigorosamente nada de edificante, mas, ao invés, ostenta tamanha intimidade com a dor e a agonia que a expressão literária sofreria para descrevê-la de maneira conveniente.

No entanto, como atinava B, o sofrimento provocado pela asfixia asmática podia ser cotejado, em intensidade, com outra espécie de pathos que, circunscrito, todavia, ao âmbito do pensamento, parecia-lhe tão agonizante quanto a falta de ar, a saber, o temor de respirar, de sorver pelos pulmões o oxigênio tão abundante no ambiente quanto imprescindível à manutenção da existência, e, nesse particular, B recordava-se enfática e pormenorizadamente do terror que lhe inspirara o surto de meningite que assolou sua cidade natal nessa mesma década de 1970, cabendo assinalar que tal fobia por microrganismos suspensos na atmosfera derivava com efeito dos relatos que lhe chegavam, diariamente, acerca de um parente não muito distante acometido por esta infecção da meninge e cuja higidez tinha sido severamente comprometida por tais entidades devoradoras de cérebro, algo tão assustador que determinava um pânico bem estruturado na imaginação do nosso protagonista.

Mas nem só de asma e hipocondria nutria-se a infância de B, pelo contrário, eis que, sob perspectiva hodierna, tal fase de sua vida apresentou-se de uma riqueza lúdica sem paralelo com a época corrente, em que os infantes consomem seu élan vital na solidão dos jogos eletrônicos diante de aparelhos celulares e computadores pessoais, enquanto B e seus amigos de bairro, entre os anos 1970 e 1980 da era cristã, divertiam-se coletivamente nas ruas da vizinhança mediante jogos e brincadeiras ao ar livre que, em grande medida, estiolaram-se ou simplesmente já não mais existem, tais como corridas de carrinho de rolimã, jogo de taco, futebol de botão, futebol no meio da rua, voleibol idem, pega-pega, esconde-esconde, bolinhas de gude, pipas, ping-pong na mesa de jantar, corridas de bicicleta, desenvolturas em cima de skate, jogo de “stop”, bandas de rock de garagem, e muitas outras formas de diversão, entretenimento, esporte e socialização atualmente impraticáveis, sendo relevante registrar que a casa de alguns desses coleguinhas de infância convolara-se em verdadeiro playground para a criançada dessas paragens, graças à generosidade da respectiva família que concedia sabiamente mais valor à boa desinibição dos jovens do que à arrumação da residência, a qual contava inclusive com um sótão de aura mágica e mística onde se instalava uma farta biblioteca e onde a moçada amiúde celebrava reuniões sigilosas do clubinho secreto das adjacências.

Nada obstante, foi precisamente nessa biblioteca de sótão, quando ainda criança, que B sofreu seu primeiro surto psicótico ao deparar-se involuntariamente com uma figura antropomórfica do diabo que ilustrava uma bíblia sagrada católica, surto esse que deflagrou nova onda fóbica agora direcionada para a possessão demoníaca, um pavor inafastavelmente duradouro de ter a própria mente dominada por alguma forma de entidade maligna apta a conduzir sua alma até as sombras do inferno.

Anotou-se, desde então, o decurso de vinte longos anos de relativa calmaria até que um episódio maníaco de intensidade mais severa perturbasse a já sinuosa trajetória de vida da solene figura de B, e desta feita o estado crítico exsurgiu em roupagens gravemente paranoicas que denotavam certo narcisismo endógeno da sua quase inescrutável personalidade, o que o conduziu finalmente a procurar auxílio psiquiátrico mais incisivo, de que resultou a prescrição médica de determinado fármaco psicotrópico muito adotado, mas que acabou por provocar-lhe efeitos colaterais de considerável importância, mais especificamente conhecidos  pela locução “acatisia”, a saber, um transtorno caracterizado por inquietação psíquica e motora que produz no paciente movimentos incontroláveis, tais como deambulação sincopada e roboticamente estilizada, um desconforto orgânico muito intenso acompanhado por turbilhão inexorável de pensamentos desconexos, praticamente insuportável, o qual culminou na internação parcial de B em nosocômio apropriado para enfermos dos nervos.

Ele não tinha como saber, mas esta internação quase compulsória em manicômio não judiciário revelar-se-ia um divisor de águas em sua caminhada por este mundo tão estranho quanto fascinante.

De fato, após passar pela necessária triagem inaugural da internação no estabelecimento médico, B foi recepcionado acolhedora e efusivamente, perto da porta de entrada, por uma moça mui cordial, também paciente do internato, cujo olhar de azul talássico, malgrado a fugacidade desse encontro furtivo, instalar-se-ia para sempre no mais recôndito âmago de seu átrio esquerdo, um verdadeiro vislumbre do paraíso em plena face da Terra por este mesmo B que, na ocasião, mal conseguia desvencilhar-se de uma tormenta infernal, que não se encontrava hábil para emergir das águas profundas da insanidade, ou, mais especificamente falando, que estava próximo de fenecer por asfixia nas verdes ondas do mar revolto da loucura.

Tal recepção carinhosa, que lhe abriu as portas do manicômio, consistia decerto em traço sintomático do peculiar microcosmo que aquele logradouro encerrava, pois B lá deparou-se, muito provavelmente, com algumas das idiossincrasias mais humanas e interessantes de toda a sua história até o momento, o que lhe forneceu a convicção consoante a qual a humanidade demasiada, talvez, indicasse o pecadilho primordial de toda aquela gente perturbada, composta, verbi gratia, por um rapaz atormentado por certo espírito de velho africano que discorria por seu intermédio, com voz alterada de barítono, sobre temas ancestrais do respectivo continente; por uma senhora que imergira na depressão profunda logo após ter sido milagrosamente curada de certa cegueira supostamente irreversível; por uma moça que não conseguia desvencilhar-se do uso obsessivamente ininterrupto dos óculos de sol; por um senhor que não parava de deambular compulsivamente por ser perseguido por outro espírito maligno; por uma rapariga que exibia tremores incontroláveis de etiologia desconhecida; por um jovem artista plástico, intelectualmente brilhante, cuja nêmesis derivara da experiência da morte de uma colega de profissão em seus braços; por outro jovem que fugia todos os dias do manicômio, pulando através dos seus muros; por um esquizofrênico severo que mal se comunicava e fumava de forma exacerbada, mas que por vezes discorria com muita propriedade sobre temas religiosos; enfim, uma miríade de figuras e distúrbios das mais variegadas gravidades e naturezas.

Tal amálgama humano reunia-se invariavelmente em determinados dias da semana para participar daquilo que se denominava “roda de contos”, em que umas das psicólogas do internato, exímia profissional, narrava uma história, de ficção ou não, e depois permitia a intervenção e comentários dos pacientes, um momento catártico em que se divisava a riqueza das experiências singulares, e foi provavelmente em uma dessas sessões que B conseguiu atrair, não por seus eventuais dotes físicos, mas pelo seu cultivado intelecto, a atenção mais acurada da moça de olhos azuis, que chamarei de C, pois formulara um comentário deveras prestigiado, combinando as dialéticas de Platão e Hegel, acerca de um conto sobre o cavalo de Troia, o que despertou em C certa curiosidade que a fez remover os óculos e lançar seu olhar inebriante em direção a B, que acenou de volta, estupefato.

Outro momento catártico no nosocômio consistia nas sessões de terapia ocupacional, teoricamente lastreadas nas investigações da festejada psiquiatra brasileira Nise da Silveira, onde B, cujo acalentado intelecto acabara por desprover-lhe de qualquer traço de habilidade manual, logrou milagrosamente urdir com disciplina e perfeição um pequeno tapete de lãs entrelaçadas e coloridas, uma singela obra-prima para quem jamais esperava ser incentivado a fazer algo materialmente complexo daquele jeito, enfim, uma conquista, em seu entender, de inefável contentamento, cabendo destacar que, em uma dessas sessões, C confessou-lhe que não tinha companhia para comparecer a uma festa que aconteceria no final de semana seguinte, confissão esta que B redarguiu incontinenti, colocando-se de total prontidão para acompanhá-la em dito evento, mas a proposta de B foi prontamente afastada por C, que sugeriu que ele viesse a ser apresentado à irmã filósofa de C.

Desapontado, B obteve permissão da diretoria do hospital para permanecer em casa por uma semana, eis que se cuidava de internato apenas parcial, em que os internos chegavam de manhã bem cedo e partiam no final da tarde.

Mas quando retornou ao nosocômio, o estado de ânimo de B foi liminarmente recuperado por uma grata surpresa, eis que já era época natalina e ele sorteou para presentear como amiga secreta, nas celebrações de fim de ano naquela instituição psiquiátrica, ninguém menos que sua admirada C e, então, ele quedou convicto de que o universo estava a conspirar a seu favor, de que a maré, finalmente, lhe era francamente favorável.

E qual não foi seu embevecimento quando pode apreciar uma apresentação, por C, de dança do ventre durante aquelas festividades de final de ano no manicômio, um espetáculo revelador da poderosíssima magia sedutora daquela mulher extraordinária, o que lhe provocou um êxtase sem precedentes e arrebatou-lhe definitivamente o coração.

Por derradeiro, B deu a C, como regalo de amigo secreto, o tapete que urdira com tanto carinho nas sessões de terapia ocupacional.

Eles estão juntos até hoje.